A reunião num mesmo movimento de diversos segmentos que em geral estão em campos antagônicos foi uma das principais características dos atos realizados na manhã desta quinta-feira (11/8) na Faculdade de Direito (FD) da USP.

No primeiro deles, realizado no salão nobre da faculdade, foi lido o manifesto “Em Defesa da Democracia e da Justiça”, iniciativa encabeçada pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e à qual aderiram mais de cem organizações, entre elas as três universidades estaduais paulistas, várias centrais sindicais, a União Nacional dos Estudantes (UNE) e entidades empresariais.

“Queremos um país próspero, justo e solidário, guiado pelos princípios republicanos expressos na Constituição, à qual todos nos curvamos, confiantes na vontade superior da democracia. Ela se fortalece com união, reformando o que exige reparos, não destruindo; somando as esperanças por um Brasil altivo e pacífico, não subtraindo-as com slogans e divisionismos que ameaçam a paz e o desenvolvimento almejados”, diz o texto.

O jurista Oscar Vilhena Vieira, representante da Comissão Arns e integrante do comitê do manifesto, salientou que o documento não tem caráter partidário, mas expressa “um momento solene no qual as principais entidades da sociedade civil brasileira vêm celebrar o seu compromisso maior com a democracia e com o Estado de Direito, sobretudo com a soberania popular, porque é esta que está sendo questionada de maneira vil neste momento”.

“Estão aqui representados nada menos do que 60 milhões de trabalhadores pelas centrais sindicais que aderiram a este manifesto. Aqui estão representados os setores mais vibrantes de nossa economia. Temos aqui também os principais movimentos sociais que hoje lutam por dignidade e por direitos no Brasil, além das organizações não governamentais que defendem os direitos humanos. Dada a gravidade do momento que vivemos, todos foram capazes, de uma maneira sublime, generosa, de transcender as suas diferenças e as suas lutas para se juntar numa única luta, que é a luta pela democracia”, afirmou, numa espécie de resumo do tom geral das manifestações.

O mesmo espírito esteve presente na breve fala com a qual o advogado José Carlos Dias, ministro da Justiça entre 1999 e 2000, no governo FHC, e conselheiro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, antecedeu a leitura do manifesto, ao final do ato. “É um momento talvez inédito em que capital e trabalho se juntam em defesa da democracia”, avaliou, talvez com certo exagero.

Tentativas de interferência no processo eleitoral vêm de “gente sem competência jurídica e moral”, diz diretor da FD

Foto: Daniel Garcia

Professora Michele Schultz, presidenta da Adusp, durante manifestação no MASP em 11/8

Na plateia que lotou o salão nobre, composta apenas por pessoas previamente credenciadas, havia juristas, docentes, estudantes, representantes dos movimentos e centrais que endossaram o manifesto, artistas e políticos de um amplo leque de correntes e partidos: de Marcos Boulos (PSOL), Fernando Haddad (PT), Márcio França (PSB) e Tabata Amaral (PSB) a Marina Silva (Rede), Coronel Tadeu (PL) e até Joice Hasselmann, eleita deputada federal pelo PSL na onda bolsonarista de 2018, hoje filiada ao PSDB e crítica feroz do ex-aliado, de cujo governo chegou a ser líder no Congresso Nacional.

Bolsonaro “é um ser repugnante, que odeia a democracia, que quer que as liberdades sejam todas cassadas”, declarou Joice à imprensa na FD.

O caráter “ecumênico” e a configuração de uma espécie de frente ampla nos atos foram aspectos ressaltados pelas análises da imprensa nesta sexta-feira (12/8). Editoriais, colunistas e articulistas convidado(a)s repisaram o tom dos manifestos lidos na tradicional faculdade do Largo de São Francisco em defesa do “Estado Democrático de Direito Sempre!”, como brada a carta assinada por mais de um milhão de pessoas e quase 500 entidades, cuja leitura ocorreu no segundo momento do ato.

“A democracia é um valor inegociável, o patamar mínimo imprescindível”, sentenciou o editorial do jornal O Estado de S. Paulo.

De fato, é preciso lembrar que muitas das manifestações da(o)s oradora(e)s do dia se voltavam à necessidade de lutar pela garantia do “patamar mínimo” dos procedimentos formais de uma democracia que queira fazer jus ao nome: haver eleições livres nas quais o eleitorado vota, os tribunais responsáveis apuram e proclamam os resultados, e a(o)s eleita(o)s tomam posse.

Na formulação do diretor da FD, Celso Campilongo, “o controle da legalidade e da publicidade é feito pelas instituições com competência para fazê-lo”. “No caso das nossas eleições, uma e apenas uma: o Tribunal Superior Eleitoral. O resto é gente sem competência jurídica e sem competência moral para se intrometer no processo eleitoral brasileiro”, prosseguiu.

Em tom bem mais altissonante, o mesmo editorial do Estadão conclui que, “apesar de toda a escalada de violência de Jair Bolsonaro contra a democracia, continua havendo um País altivo, que não deseja ser refém dos autoritários e que lutará para defender suas instituições, suas eleições, sua democracia”.

Bolsonaro, que já havia qualificado a “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito” de “cartinha”, voltou a criticar a iniciativa da FD e o manifesto encabeçado pela Fiesp em sua live semanal, na tarde de quinta-feira. “Alguém acha que outro pedaço de papel substitui isso daqui?”, disse, segurando um exemplar da Constituição.

De acordo com várias reportagens publicadas pela imprensa, as redes de fake news distribuídas pelo bolsonarismo, principalmente pelos aplicativos de mensagens, subiram o tom de agressividade e de ataques ao sistema eleitoral e aos tribunais superiores desde a divulgação dos manifestos e das crescentes adesões a eles.

Reitor lembra vítimas da Ditadura Militar ligadas à USP

Na abertura, o reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior lembrou que a USP perdeu “vidas preciosas” durante um período de exceção, referindo-se à Ditadura Militar de 1964 a 1985. “Nesse período perdemos 47 pessoas que eram parte de nossa comunidade. Nós não esquecemos e não esqueceremos”, afirmou.

Carlotti defendeu “um processo eleitoral sem fake news , pós-verdade ou intimidações” e disse que no marco dos duzentos anos da independência do Brasil, no próximo Sete de Setembro, é preciso pensar “em nosso futuro, em como resolver problemas graves, por exemplo, da educação, da saúde e da economia”. No momento, lamentou, estamos “voltados a impedir retrocessos”.

Encarregado também de encerrar a cerimônia no salão nobre, o reitor ecoou o tom adotado pela maioria da(o)s oradora(e)s e arriscou-se a dizer que a demonstração dada pela união de diversos setores “certamente inibe qualquer pensamento, qualquer tentativa de tirar do rumo o nosso país, a nossa democracia e o processo eleitoral”.

Poucas falas no ato realizado no salão nobre da FD tocaram em outras questões centrais para a real consolidação de uma democracia no Brasil. A mais contundente foi a de Beatriz Lourenço do Nascimento, que representou a Coalizão Negra por Direitos.

“Enquanto houver racismo, não haverá democracia. Qualquer projeto ou articulação pela democracia no país exige o firme e real compromisso de enfrentamento ao racismo”, afirmou.

Beatriz citou mazelas que a sociedade precisa enfrentar para garantir a grandes parcelas da sociedade direitos ainda negados e acesso a um regime de fato democrático. “Não há democracia sem enfrentar o racismo, a violência policial, o sistema judiciário que encarcera desproporcionalmente a população negra. Não há cidadania sem garantir redistribuição de renda, trabalho, saúde, terra, moradia, educação, cultura, mobilidade, lazer e participação da população negra em espaços de poder. Não há justiça social sem que as necessidades e os interesses de 55,7% da população brasileira sejam plenamente atendidos”, afirmou.

Raimundo Bonfim, da Central de Movimentos Populares (CMP), também enfatizou que é “só por meio do regime democrático que podemos caminhar rumo à superação da desigualdade social”.

“Para nós, nunca foi tão importante a união da sociedade civil e dos movimentos populares na defesa do sistema eleitoral, da democracia, da liberdade de imprensa e de todas as formas de expressão. A democracia é nosso farol e alicerce para lutarmos por trabalho, renda, comida, moradia, saúde e educação”, prosseguiu.

A presidenta da UNE, Bruna Brelaz, que ressaltou ser “a primeira mulher negra nortista” a comandar a entidade, também mencionou estudantes mortos pela ditadura e disse que “não pode mais haver espaço para o autoritarismo” no país.

“Não aceitamos as sanhas de uma tentativa de golpismo que flerta com o esgoto mais sombrio de nossa história”, afirmou.

Também falaram no ato Armínio Fraga e Horácio Lafer Piva, representando os empresários; Telma Aparecida Andrade Vitor, Francisco Canindé Pegado e Miguel Torres, pelas centrais sindicais; Neca Setúbal, representando o chamado terceiro setor; e Patrícia Vanzolini, presidenta da seccional São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

A professora Michele Schultz, presidenta da Adusp, e o professor César Minto estiveram no salão nobre, representando a entidade e o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN). Outra(o)s docentes da universidade acompanharam os atos dentro e fora do prédio da faculdade.

Presidenta do CA XI de Agosto evoca a(o)s esquecida(o)s pelo Estado de Direito

O segundo momento da manhã ocorreu no pátio da FD, mesmo local da leitura da “Carta aos Brasileiros” em 1977.

Antes da leitura, foram chamados ao palco 21 remanescentes dos signatários originais da Carta de 45 anos atrás, que foi redigida e lida na ocasião pelo professor Goffredo da Silva Telles. Entre eles estava o constitucionalista e professor aposentado da FD José Afonso da Silva, de 97 anos, a quem Campilongo havia feito uma menção especial – amplamente aplaudida – ainda no salão nobre.

No pátio, a presidenta do Centro Acadêmico XI de Agosto, Manuela Morais, fez um discurso no qual também lembrou a(o)s estudantes assassinada(o)s pela Ditadura Militar e afirmou que a união de diversos setores da sociedade deve “defender as liberdades e os direitos pelos quais uma geração inteira de lutadores deu a vida para conquistar”. “Em nome de todos eles, conclamamos: ditadura nunca mais!”

Manuela ressaltou que a universidade antes era para poucos, mas atualmente “novos rostos, cores e saberes diversificam os espaços de poder político e intelectual no Brasil”.

“Nós, que éramos os outros, agora fazemos parte dessa nova carta. Somos jovens, negros, periféricos, uma nova intelectualidade que é fruto da escola pública, das quebradas e da favela”, disse, sendo bastante aplaudida.

“Não queremos a democracia da fome, a democracia das chacinas e tampouco a democracia dos ricos. Queremos a democracia da diversidade, dos trabalhadores, uma democracia real”, disse. “Sabemos que o caminho para esse projeto passa pela luta contra qualquer retrocesso na nossa atual ordem política.”

A presidenta do XI de Agosto afirmou que Bolsonaro não ataca as liberdades democráticas apenas quando questiona a segurança das urnas ou quando vocifera contra as instituições.

“Os cortes bilionários nos recursos da educação também são um ataque à democracia. A democracia sangra quando o governo nomeia interventores nas reitorias das nossas universidades. A democracia é sequestrada quando faltam vacinas, quando em meio ao crescimento do desemprego e da desigualdade não há taxação de grandes fortunas”, apontou.

Manuela defendeu ainda a necessidade de lembrar “de todos aqueles que foram esquecidos pelo Estado de Direito”, como a “juventude negra e periférica que teve os seus corpos e os seus sonhos assassinados pela violência do Estado”.

“É uma enorme honra ao XI de Agosto continuar sendo construtor da estrada da liberdade da qual Luís Gama foi pedra fundamental. Viva a juventude, os estudantes e o movimento estudantil!”, concluiu.

“Muito ainda há de ser feito” na democracia brasileira, reconhece Carta

A leitura da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito” foi feita pelas professoras Eunice Prudente, Maria Paula Dallari Bucci e Ana Elisa Bechara e por Flavio Flores da Cunha Bierrenbach, ex-deputado e ex-ministro do Superior Tribunal Militar.

“Nossa democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito. Vivemos em país de profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública. Temos muito a caminhar no desenvolvimento das nossas potencialidades econômicas de forma sustentável. O Estado apresenta-se ineficiente diante dos seus inúmeros desafios. Pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual ainda estão longe de ser atendidos com a devida plenitude”, diz o texto.

“Ao invés de uma festa cívica, estamos passando por momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições”, prossegue o documento. “Assistimos recentemente a desvarios autoritários que puseram em risco a secular democracia norte-americana. Lá as tentativas de desestabilizar a democracia e a confiança do povo na lisura das eleições não tiveram êxito, aqui também não terão.”

Após a leitura da Carta, foi executado o Hino Nacional, ao qual se seguiu um coro de “Fora Bolsonaro” entoado em peso pelo público que lotava o pátio e os corredores das Arcadas e pelas pessoas que estavam concentradas do lado de fora, no Largo São Francisco.

Além de mais de um milhão de assinaturas de indivíduos, a Carta também foi aberta na última semana para a adesão de entidades, recebendo centenas de apoios, entre eles o da Adusp e de outros sindicatos de docentes. Essas entidades, porém, acabaram não sendo citadas nos atos.

Carta motivou manifestações que se espalharam pelo Brasil

A iniciativa da FD acabou dando origem a uma multiplicidade de atos programados em todo o país. De acordo com Campilongo, contando apenas as faculdades de Direito, 59 escolas se credenciaram para retransmitir as atividades na FD. A leitura da Carta ocorreu em atividades nos 26 estados e no Distrito Federal.

No Largo São Francisco, em frente à faculdade, milhares de pessoas participaram de uma manifestação com a presença de várias lideranças políticas e sociais, e acompanharam por meio de um telão os atos no interior do prédio.

Também ocorreram manifestações em diversas cidades onde há campi da USP, como Ribeirão Preto, Piracicaba e São Carlos.

Em Ribeirão Preto, a 1 a vice-presidenta da Adusp, Annie Schmalz Hsiou. representou a entidade no ato que ocorreu no auditório da Faculdade de Direito (FDRP) e reuniu cerca de 600 pessoas, incluindo diretore(a)s de unidades da USP, juízes, representantes de entidades, Sintusp e Diretório Central dos Estudantes (DCE-Livre “Alexandre Vannuchi Leme”).

“Esta Carta denuncia uma ameaça real à nossa frágil democracia”, afirmou a professora, lembrando que é preciso denunciar também a incitação golpista de Bolsonaro em relação ao próximo Sete de Setembro.

“Para combater o golpismo, a unidade expressa neste anfiteatro é fundamental. Mas precisamos que todos e todas defendem a democracia, que digam ‘ditadura nunca mais’. O golpismo e o fascismo precisam ser combatidos diariamente, não só nas eleições, mas também nas ruas”, ressaltou.

Em Piracicaba, representantes da sociedade civil reuniram-se pela manhã na sede central do Sindicato dos Metalúrgicos de Piracicaba e Região, para a leitura de ambas as cartas. “O evento foi relativamente pequeno em termos do número de pessoas, mas altamente significativo pela representação de vários segmentos sociais. Desde a UNE à Adusp, organizações da sociedade civil, representação política em amplo espectro do campo democrático, ex-prefeitos, vereadores e ex-vereadores, artistas populares e comunidade negra, da qual destaco a cantora Teresa Alves, Fatep, sindicalistas”, comentou o professor Sérgio Oliveira Morais, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), que representou a Adusp. “Ficou claro que foi só o início da mobilização, há que continuar na mesma linha, compromisso com a democracia”, acrescentou.

Campanha #ForaBolsonaro retorna às ruas

No final da tarde, ocorreram manifestações organizadas pela Campanha #ForaBolsonaro em várias cidades do Brasil.

Em São Paulo, a concentração foi realizada na Avenida Paulista. A presidenta da Adusp foi uma das oradoras e lembrou que as universidades públicas brasileiras “vêm sendo sistematicamente atacadas pelo governo Bolsonaro desde o minuto zero”. “Não é à toa que um governo negacionista e genocida ataca o conhecimento, ataca a ciência e desfinancia a ciência, a tecnologia e a educação públicas”, afirmou.

Michele Schultz disse que as entidades de docentes, tendo à frente o Andes-SN, nunca saíram das ruas e ajudaram a construir movimentos como o “tsunami da educação”, em 2019.

A professora defendeu a necessidade da manutenção da unidade dos movimentos em defesa da democracia, “uma democracia verdadeiramente inclusiva, que combata todas as formas de opressão”. “É muito importante que a gente reconstitua os direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores deste país. É necessário permanecer em luta e derrotar Bolsonaro nas ruas e nas urnas. Fora Bolsonaro!”, concluiu.

EXPRESSO ADUSP


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