Entrada da Google no IPT “é forte símbolo da submissão às big techs”, aponta pesquisadora sobre a parceria festejada pelo governador
Solenidade de 21/2 contou com a presença de reitores das universidades estaduais paulistas (Foto: Mônica Andrade/Governo do Estado)

O governo Tarcísio de Freitas (Republicanos)-Felicio Ramuth (PSD) anunciou com estardalhaço no dia 21 de fevereiro, em solenidade realizada no Palácio dos Bandeirantes, a criação de um “centro de engenharia” da Google no câmpus do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), que é uma empresa pública estadual sediada na Cidade Universitária do Butantã e vinculada à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação (SCTI).

O contrato com a Google, que parece envolver um montante de R$ 176 milhões (sua documentação não foi divulgada), foi celebrado no âmbito do programa “IPT Open Experience”, criado no governo de João Doria (PSDB), com a finalidade de acelerar a privatização institucional e “física” do centenário instituto público de pesquisas — por meio da cessão, inclusive de parte de sua área construída e seus equipamentos, a grandes empresas privadas. O paradigma do “IPT Open” é o contrato sigiloso firmado em 2021 com a Faculdade Inteli-IBTCC, objeto de investigação anunciada pelo Ministério Público (MP-SP).

No seu perfil oficial no Instagram, a SCTI, chefiada pelo ex-reitor Vahan Agopyan, celebrou em termos entusiásticos o acordo com a multinacional norte-americana, que obteve lucro líquido de US$ 74 bilhões em 2023: “Governo de SP, IPT e Google firmam parceria estratégica para impulsionar inovação no Estado de São Paulo”. Quanto ao governador, segundo relato do jornal Estadão, comemorou a parceria dizendo tratar-se de mais uma iniciativa de união entre Estado, academia (sic) e iniciativa privada: “É a união que dá certo”, festejou. “Agora nossos talentos não vão precisar sair do Brasil para trabalhar no Google” (sic).

Já o perfil oficial do IPT na rede Linkedin atribui a Tarcísio a seguinte frase, que supõe desconhecimento, por parte dele, de todo o desenvolvimento científico e tecnológico nacional, bem como de suas potencialidades: “Esta iniciativa junta os pilares da academia [sic], da indústria e do estado, e marca a entrada de uma empresa de grande porte que traz pesquisa e inovação para que o Brasil deixe de ser o eterno país do futuro”.

Também presente à solenidade, a presidenta do IPT, Liedi Légi Bariani Bernucci (ex-diretora da Escola Politécnica da USP), afirmou, segundo o Estadão, que espera firmar “mais de dez novas parcerias com empresas no IPT” em 2024: “Estamos muito felizes e só começando”. O texto publicado no Linkedin cita outra declaração notável de Liedi, segundo a qual “a instalação do Google faz parte de nossa missão, desde a criação do primeiro laboratório do Instituto há 125 anos, de criar e de aplicar soluções tecnológicas para aumentar a competitividade das empresas e promover a qualidade de vida da população” (destaques nossos).

Oficialmente, as finalidades do projeto com a Google envolvem, entre outras frentes de trabalho (que não foram informadas), “o desenvolvimento de soluções baseadas em inteligência artificial e relacionadas à segurança e privacidade no ambiente online”, segundo o IPT. Agopyan, por sua vez, mencionou a busca de inovações capazes de gerar “soluções para problemas do Estado, como a dificuldade de proteger e rastrear celulares roubados e identificar mensagens de risco para escolas”. Embora estas questões sejam relevantes, é improvável que a Google vá dedicar-se apenas a elas ou a “problemas do Estado”, de modo que tais explicações não convencem.

Projeto com a Google é “destruição criativa schumpeteriana”, diz Priscila

Representante das funcionárias e funcionários do IPT, o Sindicato dos Trabalhadores em Pesquisa, Ciência e Tecnologia de São Paulo (SINTPq) faz um firme contraponto ao “oba-oba” governamental. “Não é a construção de um ‘polo da Google’. É a tomada de um prédio histórico da Cidade Universitária, marco da construção de todo esse complexo universitário, um dos primeiros prédios do campus da USP e o prédio número 1 do IPT”, rebate, em referência à reportagem do Estadão, a geóloga Priscila Leal, pesquisadora do IPT e diretora do SINTPq. O prédio citado por ela, que será reformado para abrigar o centro de engenharia da Google, é o edifício “Adriano Marchini”, cuja construção terminou em 1953.

“Prédio que abrigou o laboratório do Ari Torres, que desenvolveu a tecnologia brasileira de concreto, que ajudou a desenvolver a indústria da construção civil e metalúrgica paulista e nacional. Então é a tomada disso por uma empresa que não tem nenhum compromisso com o desenvolvimento industrial brasileiro. É mais do que uma construção, é uma ‘destruição criativa schumpeteriana’ que muitos adoram, é simplesmente um ponto final na história do desenvolvimento industrial brasileiro”, critica Priscila, em alusão irônica ao economista austríaco Joseph Schumpeter, teórico da inovação.

“É o mais forte símbolo atual, dentro do campus da USP, da submissão ao capital imperialista, às big techs”, aponta a diretora do SINTPq. “Porque não vai gerar capacitação, não vai gerar parceria. Foi veiculado pela própria Cláudia Caparelli, na última live que ela fez como diretora de Novos Negócios, Inovação e Open do IPT, em resposta a uma pergunta minha: o investimento direto no IPT representa menos de 1% do valor do contrato com a Google”.

Na live citada, realizada no dia 6 de fevereiro, a hoje ex-diretora definiu a Google como “empresa-âncora dentro do ecossistema do IPT”, expressão que aplica à administração pública indireta um jargão do mercado, igualando o instituto público de pesquisas a um shopping center. “Esse projeto está atraindo para dentro do IPT, por meio do ‘IPT Open’, R$ 176 milhões em investimentos, [dos quais] R$ 110 milhões serão investimentos em infraestrutura, obra, então efetivamente melhorias dentro do nosso câmpus”, disse Cláudia Caparelli, informando ainda que “dentro desses R$ 110 milhões que vão ser investidos nos próximos 24 meses, R$ 9 milhões são ambientes que vão ficar para o IPT, dentro desse grande ecossistema de inovações que é o nosso câmpus de inovação [sic]”.

No entanto, adverte Priscila, do SINTPq, esse “investimento direto” refere-se, entre outros itens, à reforma da biblioteca do IPT, que será transferida para outro local. “Ou seja: é a infraestrutura que já está montada há muitos anos dentro do prédio 1, que tem a biblioteca funcionando, o acervo histórico dessa instituição que tem a idade da USP, que nasceu junto com a Universidade, está todo lá. E eles vão pegar isso e jogar para outro lugar, e essa reforma desse outro lugar para abrigar o acervo é considerada um investimento”.

Na avaliação da pesquisadora, o dinheiro do negócio com a Google não será revertido para a instituição IPT, porque será empregado na reforma do prédio a ser usado pela própria multinacional. A reconfiguração de um prédio histórico para a entrada da Google é um investimento?, questiona ela. “Segundo Cláudia Caparelli, isso é uma valorização imobiliária do patrimônio do IPT, como se o patrimônio do Estado fosse algo a se sujeitar à especulação imobiliária de mercado. Então, o que vai entrar para o IPT é zero”.

Priscila considera que o ônus pela transferência da biblioteca e pela reforma do prédio deveria caber à Google e jamais poderia ser classificado como investimento. “Não vou dizer que é uma fraude contábil, mas no mínimo é uma malandragem. O ipeteano fica muito p. com isso. Porque a gente está se ferrando, sem ‘mão de obra’, o instituto diminuindo, e essas grandes empresas entrando, grandes multinacionais, construindo suas infraestruturas luxuosas, utilizando a infraestrutura do IPT, o know-how que ainda resta lá”.

A diretora do SINTPq questiona também a informação da então diretora do IPT de que a Google levará 400 funcionários(as) para trabalharem no instituto. “Não tem a menor condição de abrigar 400 funcionários, não tem estacionamento para isso. Como vão botar 400 pessoas aqui? Não tem como. Vão derrubar as árvores para fazer estacionamento? Porque derrubar a subsede do sindicato, que fica colada com a Inteli, eles querem, para fazer estacionamento para a Inteli fora da área de concessão”.

Priscila contesta, igualmente, a afirmação do secretário Agopyan de que a Google e outras big techs vão trazer soluções inovadoras para os problemas do Estado. Ela considera “uma inversão completa” esse tipo de afirmação, uma vez que os investimentos em C&T normalmente partem de iniciativas estatais. “Quem não sabe que ciência e tecnologia se faz com dinheiro público em qualquer lugar do mundo? Não tem um centavo que uma empresa privada coloque num projeto, que não tenha dois centavos de dinheiro público”, pontua, lembrando, por exemplo, que a Internet foi criada com “pesado financiamento” do governo dos EUA.

Na avaliação da diretora do SINTPq, essas “parcerias” em nenhum momento resultam em recomposição da força de trabalho do próprio IPT, ou expansão dos investimentos do governo estadual no instituto. “A gente está com ‘zero’ reais de investimento. Ao mesmo tempo em que o governo contingenciou os investimentos, esses projetos não revertem em vantagens de infraestrutura para os verdadeiros fins do instituto”, frisa.

Projeto “Prometheus”, com a Lenovo, não gerou resultados para o IPT

Priscila também critica a menção à suposta “possibilidade de trabalhar conjuntamente em projetos”, alegada por Agopyan. Para tanto, ela recupera a experiência que o IPT teve com a multinacional de origem chinesa Lenovo, para desenvolvimento do projeto sigiloso denominado “Prometheus”, cujo escopo era a utilização de material genético (DNA) para armazenamento de grandes volumes de dados (big data). Porém, para que fosse contratada a força de trabalho necessária, a Lenovo assinou um projeto com a Fundação IPT (privada), pois o IPT não tinha pessoal em quantidade suficiente para tocar o projeto.

“A gestão do projeto em diversas áreas coube ao IPT, embora a maior parte da ‘mão de obra’ tivesse sido contratada pela fundação. Num dado momento, não sei por que cargas d’água, e nem quem participou sabe dizer muito bem, a Lenovo suspendeu o projeto. Não criou nova infraestrutura e não capacitou. As pessoas que foram treinadas pelos ipeteanos para desenvolver esse projeto, contratadas pela Fundação IPT, foram mandadas embora. O que sobrou do projeto Lenovo? Nada”. Como agravante, diz a sindicalista, as patentes resultantes do projeto pertencem à Lenovo, pois o contrato garantia à empresa 100% da propriedade intelectual dos produtos desenvolvidos.

Priscila acredita que o mesmo risco de “mãos vazias” existirá quando terminar o projeto Grafeno, que é tocado pela Gerdau. “É um projeto financiado com dinheiro público, da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) [federal]. Apenas um terço dos recursos é financiado pela Gerdau, e o IPT dá contrapartida, a gente trabalha no negativo. O IPT fornece a ‘mão de obra’ paga com dinheiro público para uma empresa privada, e ela investe só um terço”, critica.

EXPRESSO ADUSP


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