Foi com preocupação que tomamos conhecimento do projeto PIMESP (Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista), enviado aos docentes no dia 21 de fevereiro do corrente. Nosso primeiro estranhamento se justifica pelo fato das Congregações e Conselho Universitário de nossa universidade terem apenas começado a discutir o assunto estratégico das cotas  sociais e étnico-raciais apenas nos últimos meses. Em nossa faculdade, a FFLCH, por exemplo, na qual se encontram os principais estudiosos da USP a respeito do problema da inclusão universitária, a Comissão de Discussão de Cotas Raciais teve oportunidade de apresentar apenas uma primeira reflexão no mês de novembro e fomos já surpreendidos por um projeto que se afirma pronto, e frente ao qual somos instados a nos posicionar no prazo máximo de 30 dias. Certamente sabemos que nossa universidade, assim como todo o sistema público de ensino superior do Estado de São Paulo, está bastante atrasada, quando comparada a outros centros e instituições, no que se refere à produção de uma reflexão e na gestação de projetos que se destinem ao acesso mais amplo à universidade pública. No entanto, tal situação não justifica que após anos de silêncio, sejamos levados a tomar decisões de afogadilho e que podem incorrer exatamente nos problemas que queremos corrigir.

Chama a atenção o fato do projeto não trazer autoria definida, o que é estranho em se tratando de uma proposta de tal envergadura, que deverá  ser discutida pelos principais produtores de conhecimento, a respeito do tema da desigualdade social e racial existente em nosso estado. Além do mais, os dados apresentados profusamente ao longo da proposta não estão certificados por referências à sua origem. Assim, persistem dúvidas a respeito ds fontes e metodologias que embasaram o projeto em tela.

Além do mais, uma leitura inicial do projeto veiculado pelo CRUESP mostra que este apresenta ainda falhas de digitação e de revisão, sugerindo um texto mais apressado, e certamente não em sua forma final. A impressão de ser este apenas um projeto preliminar, que deve ser justamente discutido e revisto de maneira exaustiva pela comunidade acadêmica das universidades paulistas, entendida de maneira ampla, se consolida quando passamos à análise do conteúdo do projeto.

A primeira parte do projeto, “Alguns dados”, merece reflexão pois comprova a existência de ampla exclusão de alunos oriundos da escola pública e, entre estes, especialmente os PPIs (pretos, pardos e indígenas, seguindo as categorias do censo nacional) dos nossos bancos universitários. Em nosso entender, a proposta do PIMESP apresenta, nesse sentido, uma série de propostas não desenvolvidas a contento as quais correm o risco de, como já adiantamos acima, ao invés de abrir caminho para a diminuição das desigualdades sociais e raciais presentes nas universidades públicas paulistas, aprofundá-los.

Dentre os problemas chamamos a atenção para 4 questões:

  1. O termo “Community College”, que aparece reiteradamente ao longo do PIMESP como modelo para o Instituto Comunitário de Ensino Superior (ICES), está sendo utilizado de maneira bastante dúbia. Não parece acertado que a USP, centro de excelência de pesquisa internacional de nosso país, se aproprie de maneira inadequada de um modelo de ensino superior que em nada se coaduna com as reais necessidades de inclusão do contexto paulista, nem reflete a estrutura do ICES. Os “Community Colleges” são faculdades de cursos mais curtos, normalmente de dois anos, voltados para a capacitação profissional rápida de seus alunos, que saem formados e diplomados em carreiras tais  como contador, secretária executiva, assistente jurídico (paralegal) etc… Ao contrário da formação técnica do “Community College”, o ICES do PIMESP se propõe a oferecer cursos gerais, voltados para a complementação da escolarização média e para a “formação sociocultural superior para exercício de cidadania na sociedade moderna”. Ora, se queremos de fato enfrentar as desigualdades devemos começar a tratar o jovem de  baixa renda e os PPIs, provenientes da escola pública, como cidadãos que merecem e exigem, não uma extensão do ensino médio num formato paternalista, que têm como objetivo formar cidadãos. Este aluno não merece ser tratado como um indivíduo que precisa ser diferenciado para só depois poder frequentar nossos bancos universitários, em cursos generalistas, que apenas os colocam em novos espaços de exclusão. O que este aluno almeja é poder participar da vida universitária real de nossos campi, de maneira plena e cidadã. Imaginar que o aluno de escola pública e de baixa renda e os PPIs precisam de um curso intermediário como esse significa não analisar o grau de inserção dos alunos que vem entrando em outras escolas pelo sistema de cotas e que não precisaram desse tratamento desigualado. Tal postura distancia o nosso ensino público da direção tão almejada por todos nós da diminuição das desigualdades sócio-raciais.

  1. Em segundo lugar, é importante sublinhar que alunos da escola pública e os PPIs fariam este curso, em grande parte, à distância. Assim, ficariam eles, por pelo menos mais dois anos, excluídos fisicamente da frequência e da utilização de nossas instalações. Não é difícil imaginar que teríamos uma USP predominantemente branca e notavelmente elitista contraposta a uma USP virtual, onde alunos de escola pública, de baixa renda e PPIs, ficariam em espaços separados.

  1. O sistema UNIVESP de ensino à distância que surge no PIMESP como ferramenta essencial para a realização do projeto é um sistema que já foi duramente criticado pela comunidade universitária e que andava, nos últimos anos, não sem razão, escanteado. O ensino à distância pode ser eficaz e estratégico para atingir metas educacionais quando aplicado a populações de difícil acesso geográfico ou físico (população hospitalar e carcerária, por exemplo). Nada justifica a implantação, porém, desse sistema para tratar com jovens alunos, que são justamente carentes das benesses que só a convivência universitária pode trazer. Que sentido teria oferecermos um curso presencial de excelência em nossos campi quando mantemos jovens também universitários de baixa renda e PPIs segregados em bairros periféricos da cidade de São Paulo e no interior, acessando a universidade apenas ou majoritariamente pela internet?

  1. Finalmente, após um ou dois anos, o PIMESP considera a possibilidade do aluno “incluído” ingressar na universidade real, “respeitando o mérito acadêmico e de acordo com as ofertas apresentadas”. O PIMESP, portanto, não oferece nenhuma garantia de acesso desse aluno ao sistema universitário integral.

Frente a problemas, consideramos premente a dilatação desse prazo para que ocorra uma efetiva abertura de um amplo debate público na USP – e nas universidades públicas paulistas em geral. Isso para que não sejamos alijados de um amplo e necessário processo de democratização e inclusão no ensino superior, meta que hoje o Brasil enfrenta como seu grande e mais profundo desafio.

 

Lilia Schwarcz
Professora Titular
Departamento de Antropologia
Global Professor
Universidade de Princeton

Maria Helena Pereira Toledo Machado
Professora Titular
Departamento de História
Universidade de São Paulo

 

EXPRESSO ADUSP


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