Recursos públicos financiaram a expansão do ensino superior privado no Brasil, aponta professor Lalo Watanabe, da Unicamp, em debate na FDRP

Evento realizado em 29/10 foi organizado pela Adusp Regional de Ribeirão Preto e contou com a participação do professor Rodrigo Ricupero como mediador

O sistema de ensino superior brasileiro é um dos mais privatizados do mundo, destacou o professor Lalo Watanabe Minto, da Faculdade de Educação da Unicamp, ao abrir o debate “Privatização da Educação Superior no Brasil e desmonte da rede pública”, realizado em 29/10 na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP-USP), por iniciativa da Adusp Regional de Ribeirão Preto. O debate foi mediado pelo professor Rodrigo Ricupero, presidente da Adusp, e contou com a participação de docentes e estudantes. Estiveram presentes a professora Annie Hsiou, segunda vice-presidente da Adusp, e o professor José Marcelino, diretor regional.

Privatização, de um lado, e desmonte do setor público de outro lado são duas faces do mesmo processo, disse o docente da Unicamp. De qualquer modo, assinalou, a privatização do ensino superior no Brasil beneficiou-se e continua a beneficiar-se de recursos públicos. Programas federais como o Programa Universidade para Todos (ProUni), o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) e também verbas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) asseguraram, até recentemente, um fluxo regular de repasses financeiros do fundo público (recursos do Tesouro) para o capital privado — as grandes empresas que controlam o setor.

Lalo apontou o setor como um dos protagonistas do processo de financeirização da economia. O setor de ensino privado, explicou, vive nos últimos vinte anos um intenso processo de financeirização, por meio do entrelaçamento com fundos de investimento, práticas de lobby sobre os poderes executivo e legislativo, nomeação de representantes do setor que passam a ocupar assentos em conselhos e outros organismos estatais etc. Assim, esse setor passou a lucrar com o chamado “capital fictício”, estudado por Karl Marx na seção 5 do livro III da obra O Capital.

“Quase todos os grandes grupos começaram com cursinhos vestibulares”, observou. Ele chamou atenção para o fato de que o curso Pitágoras associou-se em 2001 ao fundo de investimentos Apollo International, na primeira operação desse gênero de que se teve notícia no país. Essa associação daria origem ao grupo Kroton, que se tornou um dos maiores do país comprando outros grupos do setor (como as Faculdades Anhanguera) e acaba de mudar de nome para Cogna.

A participação de recursos do FIES na receita bruta do Kroton chegou a ser de quase 60%, indicou o docente da Unicamp. O dado demonstra a importância crucial dos fundos públicos no processo de crescimento e financeirização do setor privado de ensino superior. Se em 2009 o FIES cobriu apenas 5% das matrículas do setor, em 2015 passou a responder por nada menos do que 39% delas. A dotação orçamentária do FIES chegou a R$ 17 bilhões em 2015 e R$ 18 bilhões em 2016, o que indica a escala monumental de recursos transferidos para o setor privado. O saldo devedor é de R$ 71 bilhões.

Outro exemplo apontado por Lalo: o jornal Folha de S. Paulo de 6/6/2019 revelou que dois fundos privados de investimento ligados ao ministro da Economia, Paulo Guedes, receberam — entre dezembro de 2013 e março de 2019 — R$ 159 milhões do BNDES e R$ 78 milhões da Previ, entidade de previdência privada ligada aos funcionários do Banco do Brasil. Os fundos pertencem à Bozano Educacional, empresa da qual Guedes era acionista até outubro de 2018.

Privatização da educação básica, nova estratégia dos grandes grupos?

O governo Bolsonaro cortou os recursos do FIES e ProUni, o que parece contraditório com sua agenda ultraliberal e até mesmo com os interesses do próprio Guedes como empresário do ensino. No entanto, os principais grupos privados do setor — Kroton, Estácio, Ser Educacional, Anima — já seriam capazes de financiar por conta própria uma parte dos seus potenciais alunos de graduação. Outras estratégias possíveis seriam a migração para o ensino à distância (EAD), de baixo custo e fiscalização quase inexistente, e a junção com a educação básica.

Debate foi realizado no auditório do Bloco D da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto

Lalo comentou, igualmente, as transformações operadas no ensino superior público, submetido a uma agenda fortemente privatizante, até porque o privado atua também dentro do setor público. Ganharam espaço nas universidades públicas temas como internacionalização, inovacionismo e empreendedorismo, na mesma medida em que essas instituições passaram a adotar critérios de gestão privada.

Tudo isso pressiona no sentido de uma mudança de finalidade da universidade pública. “Vivemos uma conjuntura em que falamos de universidade pública sem qualquer perspectiva de desenvolvimento nacional. Qual é o papel estratégico a ser cumprido pelas universidades hoje?”, indagou, lembrando que as decisões do governo quanto ao orçamento público “têm tudo a ver com isso”.

A seu ver, o “Future-se” proposto pelo MEC é uma espécie de consequência óbvia de um longo processo. Ele citou como principais dispositivos negativos do programa federal a “dupla porta de entrada em hospitais universitários”; a “possibilidade de criar um mercado de reconhecimento de diplomas e de notório saber”; e a abertura para parcerias com organizações sociais (OS)/fundações privadas ditas “de apoio”, de modo a permitir a “captação de parcela ampliada do fundo público destinado à educação, subordinando-a ao interesse privado”.

O docente da Unicamp avalia que a lógica produtivista instalada nas universidades públicas faz com que as pessoas comecem “a pensar de outra maneira”. Concorda que é preciso, no curto prazo, resistir aos ataques, mas defende um “plano B”, a saber: “A universidade tem que se transformar para se manter como instituição pública. No médio e longo prazo é preciso construir outros projetos de universidade”.

Avanço dos interesses privados por dentro da universidade pública

Professor Rodrigo Ricupero: "Serão 1.000 docentes a menos ao final da gestão Vahan"

Na sua exposição, o professor Ricupero abordou o “avanço dos interesses privados por dentro da universidade pública”, a partir do exemplo da própria USP, em especial no período iniciado na gestão do reitor M.A. Zago e do vice-reitor Vahan Agopyan (2014 em diante), a qual teria sido um “divisor de águas”, na medida em que acelerou e aprofundou esse processo.

O presidente da Adusp mencionou o projeto “USP do Futuro”, conduzido pela filial brasileira da consultoria McKinsey&Company, observando que alguns dos responsáveis por essa iniciativa foram guindados ao governo de João Doria (PSDB): Patricia Ellen, como secretária estadual de Desenvolvimento Econômico; professor Américo Sakamoto (FMRP), como secretário-executivo dessa mesma pasta; e Thiago Liporaci, como chefe de gabinete.

Quanto à gestão atual, do reitor Vahan Agopyan e vice-reitor Antonio Hernandes, Ricupero enxerga uma certa ambiguidade: “A Reitoria se afasta do discurso mais reacionário do governo Bolsonaro, mas se afina com Doria no discurso do empreendedorismo”. O professor, disse, é visto como alguém que deve captar recursos externos para aumentar o próprio salário. A Reitoria, com base no novo Marco Legal de ciência, tecnologia e inovação, decidiu “compartilhar” docentes, servidores e laboratórios com empresas e fundações privadas: “Até a TV Globo achou isso estranho”, ironizou.

Depois de citar algumas distorções patrocinadas pelas fundações privadas ditas “de apoio” e por docentes gestores de cursos pagos oferecidos na USP, afirmou que a continuidade do processo de privatização “por dentro” está na avaliação docente centralizada na nova Comissão Permanente de Avaliação (CPA), que tende a fortalecer as chamadas “áreas de interesse”, aquelas que mantêm relação direta com o mercado. Ao mesmo tempo, a universidade vive hoje gravíssima situação no tocante ao seu corpo docente: “Perdemos 700 professores desde a gestão Zago. Até o fim da gestão Vahan serão 1.000 professores a menos. O que ele está contratando não repõe as aposentadorias”.

O presidente da Adusp caracterizou o momento atual da USP como “uma briga de todos contra todos”, porque se criou um ambiente conflituoso especialmente nas duas últimas gestões, em decorrência do produtivismo acadêmico exacerbado e de medidas administrativas impostas sem qualquer debate prévio. Um exemplo disso seriam os processos de desmembramento e criação de unidades que estão sendo propostos na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) e na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq).

“São processos muitas vezes feitos nos bastidores e aprovados a toque de caixa, como a criação do curso de Medicina de Bauru, aprovada em 12 dias corridos. Todos esses processos são feitos sem discussão com a comunidade”. Ele explicou nada ter, em princípio, contra a eventual divisão de unidades, mas sustenta que elas devem ser justificadas.

Sobre o ensino superior privado, lembrou que há intensa movimentação de setores do empresariado em torno de questões educacionais, e que além da disputa da educação como um negócio existe também uma disputa ideológica, ou seja: de projeto.

EXPRESSO ADUSP


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