Jorge Beloqui (1949-2023): docente do IME foi referência mundial nos movimentos pelos direitos das pessoas vivendo com HIV/Aids
Beloqui teve militância intensa em muitas iniciativas e projetos (foto: reprodução)

Morreu na madrugada desta quinta-feira (9/3), em Buenos Aires, Jorge Adrian Beloqui, docente sênior do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP e um dos grandes ativistas na luta em prol das pessoas vivendo com HIV/Aids no Brasil. Beloqui deixa o marido, Marcos, o irmão, Marcelo, a irmã, Paulina, e sobrinhos e sobrinhas.

Em nota, o IME lamentou o falecimento de Beloqui e transmitiu condolências aos e às familiares e amiga(o)s do professor.

“Jorge Beloqui foi um professor e ativista de destaque na defesa contínua dos direitos das pessoas vivendo com HIV/Aids no Brasil”, destacou nota da Coordenadoria Municipal de IST/Aids de São Paulo. “Nascido na Argentina em 1949, assumiu a homossexualidade aos 25 anos, no contexto conturbado de um país conservador e repressivo.”

No Brasil, o ativista liderou o Grupo de Incentivo à Vida (GIV), compôs a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e a Rede Nacional de Pessoas Vivendo com Aids (RNP+), entre outros movimentos e articulações e iniciativas.

“Entre suas inúmeras contribuições estão a defesa das populações mais vulneráveis e a parceria respeitosa com o poder público municipal a partir da participação popular”, prossegue a coordenadoria.

“Ao longo dos últimos 33 anos, sua atuação em defesa das populações mais vulneráveis foram marcas que deixaram imenso impacto na luta contra a aids no Brasil e na América Latina”, registrou a Agência de Notícias da Aids.

Docentes da USP se emocionam ao falar da vida do colega

O professor cultivou muitos laços importantes com colegas de docência na USP, relações marcantes que os depoimentos emocionados colhidos pelo Informativo Adusp testemunham com clareza.

Deborah Raphael, docente do IME, se confessa “semidespedaçada” pela perda do grande amigo de longa data. “Eu me surpreendo com o quanto o trabalho dele foi importante. Mesmo estando próxima e há tantos anos, de uma certa forma ele era modesto nos relatos. Um cara especial, gentil, mas também direto e sem rodeios”, diz.

Deborah descreve Beloqui como alguém “super bem-humorado e que sabia, como ninguém, rir de si mesmo e dos outros também, na verdade”. “Na vida pessoal, era daquelas pessoas que vão agregando amigos sem deixá-los pelos caminhos da vida”, prossegue.

“Eu conheci o Jorge no início da década de 1990, no Grupo de Incentivo à Vida. Fomos companheiros de luta durante anos, e somente depois entrei na USP. Então, partilhávamos a docência, ele no IME e eu na EACH, e a militância na luta contra a Aids”, relata Bete Franco, docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades.

Jorge foi uma das pessoas mais importantes na história da Aids no Brasil, considera Bete. “Ele pesquisava a questão de vacinas, medicamentos e patentes. Se o Brasil quebrou a patente de alguns medicamentos, devemos muito ao Jorge, que com sua inteligência, lucidez e firmeza apresentava essa pauta de maneira brilhante e imbatível.”

“Estivemos juntos em enterros de amiga(o)s com Aids, em festas, em manifestações pelos direitos das pessoas com Aids, na escrita de textos, em reuniões, em brigas históricas pelo bem comum”, relembra.

“A USP perde um destacado professor, o movimento de Aids perde um ícone insubstituível e eu perco um amigo, destes que te levam pastilha quando você tem dor de garganta. Destes que não são intelectuais esnobes na formatação produtivista. Destes que te ajudam a levantar a faixa, chorar a dor e a alegria. Destes que te incentivam a sonhar e a lutar por um mundo melhor”, prossegue.

“Beloqui sempre conciliou sua carreira de docente no IME com o ativismo voluntário na luta contra a Aids, um exemplo de como alguém da universidade pode  se engajar em causas comunitárias relevantes”, testemunha Mário Scheffer, professor associado da Faculdade de Medicina (FMUSP). “Sua atuação enquanto pessoa  que vivia com HIV tinha o único propósito de defender dignidade e direitos coletivos. Seu engajamento, sempre meticuloso e qualificado, foi decisivo para a exitosa resposta do Brasil à Aids.”

Liderança “ativa, brilhante, lúcida e combativa”

“Jorge Beloqui foi uma das grandes pessoas que conheci através de minha breve porém intensa participação no incipiente movimento homossexual, ainda jovem, na virada dos anos 1970 para 1980. Tive o prazer e privilégio de desfrutar de sua amizade desde então”, relata Júlio Simões, docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH).

“Jorge foi uma das lideranças mais ativas, brilhantes, lúcidas e combativas do movimento pelos direitos das pessoas que vivem com HIV e Aids. Foi um dos grandes artífices da construção coletiva das respostas à epidemia. Como ativista, era firme em suas visões políticas, polemista temível, irônico, por vezes rabugento, mas sempre ético e leal. Sempre apostou na informação qualificada como recurso primordial para a luta pelos direitos à vida e à saúde”, diz Simões.

De acordo com o docente, “rigor poderia ser uma de suas palavras definidoras. E educação poderia ser a outra”. Beloqui “destacou-se na disseminação e no compartilhamento dos conhecimentos que adquiriu como militante e pesquisador”.

Na USP, continua Simões, devotava especial apreço ao ensino da graduação. “Contava sempre com grande alegria e prazer das aulas de cálculo aos primeiranistas da Politécnica e de outros cursos com os quais colaborava, como docente do IME.”

“Sua morte representa uma perda inestimável para quem com ele conviveu. Uma grande parte de muitas histórias pessoais permanece agora apenas na memória. E uma perda maior ainda para o movimento pelos direitos das pessoas que vivem com HIV e Aids e para a grande luta por uma vida melhor. Que prossegue sem sua presença, mas se inspira em sua trajetória”, conclui Simões.

Luta contra postura da indústria farmacêutica

Vera Paiva, docente do Instituto de Psicologia (IP), conta ter recebido mensagens de pessoas do mundo inteiro comovidas com a perda de Jorge Beloqui.

“Muitos e muitas das pessoas que trabalham com Aids ou com ética em pesquisa ou que lutam pela democracia na América Latina… Estamos todos chocados e muito tristes com a perda do Jorge. Foi uma choradeira, porque foi um susto, não era esperado”, diz.

Vera relata que conheceu Beloqui no final dos anos 1980. “Eu já atendia no consultório pessoas vivendo com HIV, num momento em que a gente tratava de amenizar o sofrimento da morte. Raras pessoas da geração dele sobreviveram por tanto tempo como portador de HIV/Aids”, aponta.
Ela foi apresentada ao colega de docência pelo então vice-reitor Ruy Laurenti, que no início da década de 1990 defendia que as pessaos que trabalhassem com Aids nas diferentes unidades de alguma maneira se organizassem e unissem os esforços. Em 1991, foi criado o Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids (Nepaids) da USP, que tinha Beloqui como um de seus “sócio-fundadores”, define a professora.

“Passei anos convivendo com ele em diferentes espaços nacionais e internacionais. Na Organização Mundial da Saúde (OMS), tivemos uma atividade importantíssima de representação da América Latina num comitê que tentou mudar os parâmetros de ética em pesquisa. Articulamos um movimento de resistência à pressão da indústria farmacêutica para deixar cair as regras éticas de testes de medicamentos, testados sempre no terceiro mundo, sem nenhum compromisso ético de devolução em drogas produzidas para as pessoas que participaram no país que abriu a chance dessas drogas serem testadas”, lembra.

Vera define Jorge Beloqui como “uma pessoa doce, divertida, com um senso de humor muito particular”. “Um exemplo de coerência e resiliência como poucos neste Brasil de hoje. Vai fazer muita, muita falta, e vamos tentar continuar carregando o seu legado”, diz.

“A solidariedade foi uma das pedras fundamentais”, disse Beloqui sobre a própria vida

Em 1996, após ter pedido de fornecimento de remédios negado pela Reitoria, Beloqui lançou com a Adusp a campanha “HIVIDA – Aids na USP – Em Defesa das Condições de Vida e Trabalho dos Portadores do HIV”. Esse e outros episódios são narrados em artigo que o professor escreveu à época na Revista Adusp.

Num longo depoimento sobre sua trajetória ao programa Testemunho Público, produzido pelo Museu da Diversidade Sexual em dezembro de 2021, Beloqui afirmou: “Para mim a solidariedade foi uma das pedras fundamentais. Ou seja, uma forma mais compassional… O que acontece numa sociedade também acontece comigo. Eu estou imerso numa sociedade. Aquelas pessoas que te rejeitam porque você tem HIV não aprenderam que vivem numa sociedade com HIV. Na hora que você aprende, aceita que vive numa sociedade onde o HIV está presente, você pode tomar as medidas para se proteger e depois não evitar as pessoas com HIV.”

A Diretoria da Adusp manifesta seu pesar e sua solidariedade à família, amiga(o)s, colegas e companheira(o)s de luta. Jorge Beloqui, presente!

EXPRESSO ADUSP


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