Memória
Irene Cardoso (1945-2025), cronista da Maria Antônia e da USP e defensora da universidade pública, gratuita e autônoma

Professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), a socióloga e psicanalista Irene Arruda Ribeiro Cardoso faleceu no último dia 4 de agosto, aos 80 anos de idade (1945-2025). Seu desaparecimento priva a USP do olhar agudo e lúcido de alguém que — tendo testemunhado e experimentado as transformações sofridas pela universidade durante a Ditadura Militar (1964-1985) e, posteriormente, a implantação de reformas de teor neoliberal — refletiu e elaborou a respeito, deixando uma cristalina interpretação, e alinhou-se sempre a quem defendia a universidade pública e gratuita.
Irene entrou no curso de Pedagogia, na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), situada na Rua Maria Antônia, semanas antes do golpe militar de 1964. Tinha então dezoito anos de idade, segundo escreveu Maíra Muhringer Volpe em nota biográfica publicada pela Sociedade Brasileira de Psicologia — “e, em seguida, passou a frequentar no período noturno disciplinas das Ciências Sociais”. A Maria Antônia “fazia parte de seu universo cultural, como uma extensão de seu convívio familiar”, assinala Maíra.
“Na infância e adolescência, sua casa foi frequentada por professores da Faculdade de Filosofia, pessoas ligadas ao teatro, que iam à Cinemateca e ao Teatro Municipal, intelectuais comunistas, ou seja, cresceu cercada por animadas discussões sobre cultura e política. Sua mãe, vinda de uma abastada família tradicional do interior de São Paulo, e seu pai — médico e simpatizante do Partido Comunista, possuía uma variada biblioteca com livros de filosofia, literatura, sobre cinema e teatro, psicanálise, além de uma vasta discoteca — proporcionaram-lhe uma vivência no espaço cultural de São Paulo nos anos 1950 e 1960”.
Irene tornou-se instrutora voluntária da faculdade em 1970 e, dois anos mais tarde, foi contratada como auxiliar de ensino na vaga da professora Marialice Foracchi, que recém falecera. “No mesmo período, ingressaram também Maria Célia Paoli, Maria Helena Oliva Augusto, Heloísa Fernandes e Jessita Moutinho. Todas jovens mulheres que auxiliavam o professor José de Souza Martins nas disciplinas obrigatórias”, relata Maíra. “Enquanto a aula expositiva era ministrada pelo professor Martins a toda turma, as ‘martinetes’, apelido dado pelos alunos, conduziam os seminários, numa segunda parte, a grupos menores. Nessa década, Irene dedicou-se não somente ao ensino, como também à elaboração de sua tese de doutorado ‘A Universidade da Comunhão Paulista’”, que veio a defender em 1980 e foi publicada, dois anos depois, pela Editora Cortez.
Sua amiga pessoal e também docente Olgária Matos (FFLCH), que sobre ela escreveu um bonito depoimento no dia seguinte à sua morte, definiu-a como cronista da Maria Antônia. “Nós nos conhecemos estudantes em 1968, em meio a passeatas político-amorosas da Universidade que você eternizou em seus escritos e estudos, como ‘A Universidade da Comunhão Paulista’, como também a rua e o prédio da Maria Antônia. A ‘Maria Antônia’ se tornou um emblema histórico, como ‘uma rua na contramão’, como você, com tanta felicidade, a nomeou”, diz Olgária em imaginário diálogo com Irene.
“Com seu prédio de colunas à grega, ele era uma ‘Academia de Platão’. Academia de que você foi a cronista. Essa rua se tornou mágica por suas reflexões, como também esse tempo que você pesquisou e transmitiu em publicações, colóquios, conferências; e em encontros nos barzinhos ou no Paris Bar ao lado da Biblioteca, à época, Biblioteca Municipal”.
Irene, relembra Maíra, “afirma que ‘entrou marxista’ dogmática na universidade”, mas foi aos poucos conhecendo “diferentes autores e perspectivas, como Karl Mannheim e Max Weber, entre outros”, e em 1968 “ingressou no programa de pós-graduação após ser entrevistada por Florestan Fernandes”. Ao ministrar, a partir de 1981, sua primeira disciplina optativa, “Educação e ideologia”, nela trabalhou autores que não eram considerados sociológicos, como Foucault, Adorno, Reich, Marcuse e Benjamin. “O nome da disciplina era um disfarce para conseguir abarcar esses ‘novos’ autores e tentar escapar de certo controle exercido pelo Conselho do Departamento a respeito do que era sociologia”.
Olgária também chama atenção para esta diversidade de referências teóricas. “Sua maneira de ser, discreta e cheia de Eros, estava em suas aulas precursoras, quando, antes mesmo de que nós, professores do Departamento de Filosofia, dedicássemos cursos a Foucault, você já o fazia. Não só Foucault, mas também Vernant, Derrida, Lacan”, diz a docente da FFLCH na sua “conversa” com a amiga. “Não por acaso, você foi se dirigindo à psicanálise, dando continuidade a suas reflexões sobre o passado, a memória e os traumas pessoais e históricos. Trauma que aconteceu em sua vida ao você contrair Covid que, limitando seus movimentos, não teve nenhum poder sobre a vida de seu espírito”.
Na sua nota de pesar sobre Irene, a Diretoria da Adusp abordou, igualmente, essa notável dimensão do labor intelectual da professora, que “apresentou, a gerações de estudantes e pesquisadores, autorias que nem sempre estavam contempladas no curso de Sociologia; suas disciplinas se articulavam em torno do pensamento da Escola de Frankfurt e de Michel Foucault, por exemplo”.
Um de seus trabalhos admiráveis, escrito em parceria com Abílio Tavares, é o Livro Branco sobre os Acontecimentos da Rua Maria Antônia – 2 e 3 de outubro de 1968 (Edusp/FFLCH, 2018), sobre o que ficou conhecido como a “Batalha da Rua Maria Antônia”.
O livro baseia-se em documentos e relatórios guardados por Antonio Candido e por ele confiados a Irene, e oferece “um testemunho vivo daquele acontecimento e de seus efeitos continuados, presentes na conformação contemporânea da USP sob a forma dos projetos, apostas e utopias que naquele momento se buscou reprimir e fazer desaparecer”.
Porém, adverte Maíra Muhringer Volpe, essa obra não era uma reflexão limitada ao campo da sociologia da educação, como se chegou a acreditar: “A pesquisa se voltou ao contexto político de fundação da USP, na década de 1920 até o golpe de Estado de Getúlio Vargas, em 1937, às lutas entre grupos políticos e às disputas ideológicas a respeito de seu projeto de criação. Partia da percepção de um mito liberal-democrático e o contrapunha a um autoritarismo, vindo tanto de fora, da repressão de Estado, quanto de dentro, da estrutura de poder na universidade”.
Uma faceta interessante do trabalho de Irene na FFLCH é que, especialmente nas décadas de 1980 e 1990, ela assumiu diferentes cargos de gestão, tais como coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, vice-chefe do Departamento de Ciências Sociais, presidente da Comissão de Pesquisa da unidade etc. “Irene trilhou uma carreira burocrática extensa na Faculdade, ao longo dos anos 1980, participando também de conselhos e comissões que discutiam, ao lado de professores das áreas de exatas, química e biológicas, a construção de normas da avaliação. Ela discordava fortemente de uma avaliação quantitativa, produtivista, dos parâmetros de ensino”.
USP foi “relativamente preservada” pela Ditadura Militar
Em entrevista concedida a Luiz Carlos Jackson, Fábio Cardoso Keinert e Alejandro Blanco, publicada em 2010 pelo Scielo, Irene fornece algumas pistas úteis ao entendimento do que seja a USP e das inúmeras contradições que envolvem essa instituição, entre as quais o complexo relacionamento com a Ditadura Militar.
“O paradoxo é o seguinte: a USP, apesar das aposentadorias compulsórias de professores, das prisões, exílios forçados, do clima de ameaça permanente, foi relativamente preservada. A comparação com a experiência na ditadura argentina é impressionante. Lá a universidade foi praticamente destruída”, disse a professora.
“A USP pôde se manter e continuar oferecendo cursos, mesmo nas unidades, vamos dizer, que eram mais à esquerda, mesmo nos departamentos que foram mais esvaziados do que outros, de algum jeito os cursos foram mantidos. O Departamento de Filosofia, por exemplo, também teve um expurgo grande, muita gente teve que ir embora por cassação ou exílio. Exílio, inclusive, independentemente de ter sido preso ou não, muita gente teve que fugir”.
Havia cerco policial, continuou, “havia policiais dentro das salas de aula, um conhecido torturador da Oban (Operação Bandeirantes), ameaça de invasão a todo momento, havia invasões realmente, prisões de estudantes que foram retirados de sala de aula, a prisão do chefe de Departamento de Ciências Sociais, Ruy Coelho, a demissão obrigatória do diretor da Faculdade de Filosofia, Eduardo d’Oliveira França”. Porém, apesar das enormes pressões, “os cursos se mantiveram”, inclusive nos seus programas bibliográficos anteriores ao endurecimento do regime militar.
“Por exemplo, a gente mantinha Marx, só cortamos referências a Lenin, Trotski. Era um acordo interno nosso. Marx tinha que ser dado. Houve uma relativa preservação nesse período. Por isso a Universidade, melhor dizendo, parte dela (porque setores dela apoiaram as intervenções da ditadura) pôde, por exemplo, lutar contra a tentativa de implantação das licenciaturas curtas”, explicou.
“Tais licenciaturas também eram um projeto do governo militar, que transformava o curso de Ciências Sociais, e também a área de ciências, numa licenciatura de dois, três anos. O pessoal da Física na USP, da Matemática, das ‘ciências básicas’, que tinham sido até recentemente parte da Faculdade de Filosofia, que sempre foi mais politizado, e até hoje é, fez um movimento grande que conseguiu barrar a implantação desse tipo de licenciatura. Mas eu acho que, de fato, estrategicamente não houve da parte do governo militar um interesse em desmantelar por completo”.
Em 2004, a edição 33 da Revista Adusp — um dossiê sobre as ações da Ditadura Militar contra a USP — publicou artigo de Irene intitulado “USP 70 anos: comemorações e contra-comemorações”, no qual ela comenta as circunstâncias das celebrações do aniversário de quarenta anos da universidade, em 1974, e dos cinquenta anos, em 1984.
Comemorações, pondera Irene, “podem configurar momentos de celebração marcados pela grandiloqüência, vazios e repetitivos, o que ocorre na maioria das vezes, mas também ocasiões de reflexão sobre a instituição, especialmente quando considerados os seus diversos tempos históricos”, sendo possível reconstruir momentos comemorativos “que se constituíram em tribuna de celebrações diversas, de embate político e ideológico em torno da construção da representação do evento passado”. Tais momentos, propõe ela, produzem discursos contrapostos, antagônicos, dando origem ao que se poderia chamar de contra-comemorações.
“Em 1974, os 40 anos da USP foram marcados pelo silêncio, nos piores anos da Ditadura Militar e nos piores anos de uma instituição que nela se enquadrou. Silêncio que tomou grande parte da universidade, que na sua discordância tinha poucos meios de expressão no interior da instituição. As comemorações ficaram reduzidas ao estritamente oficial e protocolar. Dez anos antes, em janeiro de l964, a universidade e o país, a dois meses do golpe, estavam imersos no clima das ‘reformas de base’ e da ‘reforma universitária’”, anotou.
“Em 1984, janeiro, momento da ‘abertura’ política, da esperança, ainda, na possibilidade das eleições diretas, a celebração dos 50 anos da USP foi claramente demarcada por comemorações oficiais e por contra-comemorações. A comemoração oficial no Conselho Universitário, com a presença de autoridades, em sessão solene, foi a portas fechadas, pois um grupo de professores, funcionários e estudantes protestava na entrada, reclamando dos salários e das condições de trabalho na universidade”.
O artigo aponta o “insólito da cena” daquela comemoração oficial, para aqueles que, como ela, vivenciaram de dentro da antiga FFCL a história da USP a partir do golpe militar: “a presença da então ministra da Educação, Esther de Figueiredo Ferraz, uma das autoridades convidadas, reitora da Universidade Mackenzie em 1968, quando parte dos alunos dessa escola (que foram defendidos pela então Reitora), apoiados por grupos paramilitares e protegidos pela polícia, atacaram com tiros e bombas o prédio da rua Maria Antônia, onde funcionava aquela faculdade, depredando-o e incendiando-o”.
As contra-comemorações, prosseguiu ela, apontavam para o caráter burocrático e excludente da celebração. “Nomes representativos da Universidade, porém visualizados como de ‘esquerda’ pela instituição, haviam sido excluídos da comemoração. Na porta do Anfiteatro da USP, os grupos protestavam, contidos pela polícia, em nome de uma maior representatividade na instituição. Não se tratava mais de uma luta por uma universidade ‘vanguarda da revolução’, como 20 anos antes, mas da demanda por uma maior participação no poder universitário, reafirmando a autonomia universitária, fortemente comprometida nos anos da Ditadura, e o caráter público da instituição. De algum modo, embora sem referências explícitas, a contra-comemoração resgatava também alguns dos ideais de origem da instituição”.
Essa ideia da permanência de certos valores é retomada por ela mais adiante: “A USP sempre esteve atravessada por lutas pelo poder, disputas em torno de sentidos que deveriam lhe orientar. Sempre foi dividida por posições político-ideológicas diversas, quando não contraditórias”, destaca.
Traços de uma concepção da educação como coisa pública (incluindo o sistema universitário) “estão presentes no projeto dos fundadores da USP, no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, no decreto de fundação da Universidade de São Paulo, na Campanha em Defesa da Escola Pública, nos debates em torno da Reforma Universitária que se iniciam em 1963”, e “prosseguem de alguma maneira sob a Ditadura”, afirma Irene no texto.
“Ao longo de todo esse período esses traços de uma concepção da educação (e da universidade) como essencialmente pública permanecem, a despeito das tentativas de desqualificação e de silenciamento mesmo dos debates durante a Ditadura. A reforma universitária federal, aprovada em 28/11/68, às vésperas do Ato Institucional nº 5, após o silenciamento imposto pela repressão política, ainda assim mantém aqueles traços”, avalia. “Esses valores não foram tocados no que tange ao sistema público de ensino, possivelmente porque não se constituíam como referências apenas da ‘esquerda’”.
Realizada mais de duas décadas atrás, a análise da pesquisadora chega aos dias atuais, com grande perspicácia. “A universidade de hoje pouco tem a ver com a universidade do período da Ditadura”, constata, indicando que ocorreram reformas que produziram modificações significativas no seu perfil. “Reformas que foram realizadas aos poucos e pontualmente, sem muito alarde”, pontua, mas que permitiram que a universidade “fosse sendo minada a partir de dentro dela própria, perdendo a força simbólica que tinha como forte expressão da coisa pública”.
Assim é que, aponta, ainda durante os anos 1970, “silenciosamente, foram sendo criadas algumas fundações [privadas] dentro da USP”, a pretexto de superar a “inércia burocrática” e de atender às necessidades de “racionalização administrativa” e de “captação de recursos externos”. Processo, diz, que se acelera fortemente nas décadas seguintes. “Cursos pagos, oferecidos dentro da instituição, passam a ser vistos como algo inteiramente normal, a partir de um acordo tácito e de um consenso que vai, aos poucos, se construindo. A intensidade desse processo torna-se visível muito recentemente”.
Seu texto denuncia, ainda, o enviesamento empresarial da relação entre a USP e seu corpo docente. “Dentre essas reformas pontuais, os processos de avaliação, tal como foram sendo pouco a pouco implementados, operaram uma transformação da universidade. Processos que se propõem sempre como técnicos, verdadeiros dispositivos, que passam a constituir a vida normal da instituição, vão construindo um discurso, cujas palavras que nomeiam suas práticas, eram, até meados dos anos 80, estranhas à academia. Mercado educacional, mercado de qualidade, avaliação do desempenho, produtividade, produto, cliente, eficácia e eficiência, padrões de desempenho, rankings, taxas, indicadores de produção (de vários produtos), custo per capita do produto (aluno), etc.”.
Também emitiram notas de pesar pelo desaparecimento de Irene a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs) e o Centro MariAntonia.
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