Professor José Carlos Manço (1936-2019), trajetória exemplar de integridade científica e compromisso social
FMRP
Professor José Carlos Manço

Falecido no dia 31 de julho, aos 83 anos, o pneumologista e professor titular aposentado José Carlos Manço, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), foi um dos primeiros pesquisadores a associar a queimada da palha da cana-de-açúcar às doenças respiratórias que acometem a população paulista. Mais que isso: ele engajou-se nos movimentos sociais em defesa do meio ambiente e da reforma agrária, tornando-se, ao lado da esposa Ana Dirce, um ativo colaborador de grupos como a Associação Cultural e Ecológica Pau Brasil, a Associação Amigos do Memorial da Classe Operária-UGT (que chegou a presidir) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

“A pessoa mais íntegra e ética que conheci na USP”, definiu o professor titular José Marcelino de Rezende Pinto (FFCLRP), diretor regional da Adusp. “Um compromisso com a verdade e com o aspecto social da ciência”. Manço aposentou-se em 1995, depois de 30 anos de atividade acadêmica, mas continuou atuando por mais algum tempo na USP, como membro da Comissão de Ética do Hospital das Clínicas (HCFMRP).

“Minha homenagem ao dr. Manço, que muito me ensinou sobre a questão ambiental e especialmente sobre a chaga socioambiental que é a queimada da cana”, escreveu, no Facebook, o professor adjunto Daniel Fonseca de Andrade, do Departamento de Ciências do Ambiente do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). “Um homem corajoso que enfrentou toda uma cultura instalada no Estado de São Paulo, trazendo a contribuição científica para um ambiente árido de ideias e refém de uma monocultura mental”, completou.

Arquivo de família
Com a esposa Ana Dirce De Granville

“Nosso pai foi um dos primeiros médicos a defender a ideia de que as queimadas da cana-de-açúcar eram prejudiciais à saúde humana. Dentre outras constatações, ele demonstrou claramente que ocorria aumento dos atendimentos hospitalares por problemas pulmonares durante o período das queimadas”, relembram Daniel De Granville Manço e Débora De Granville Manço Teixeira, em depoimento conjunto ao Informativo Adusp. “Junto com a Associação Cultural e Ecológica Pau Brasil e personagens importantes como Marcelo Goulart, promotor de Justiça do Meio Ambiente, foram várias ações que em 2002 culminaram na lei estadual que regulamentou a atividade das queimadas”.

Outra iniciativa da Pau Brasil que contou com a participação de Manço foi a campanha em defesa do Aquífero Guarani. A militância do professor, porém, não se limitava aos aspectos políticos: implicava seu envolvimento pessoal, como ocorreu em relação aos trabalhadores sem terra: “Lembramos de suas idas constantes aos assentamentos para prestar apoio aos assentados, inclusive com atendimentos médicos voluntários prestados por nosso pai”.

Tanto na vida profissional como na vida pessoal, a atuação de Manço “sempre foi pautada por posturas absolutamente éticas, honestas e desprovidas de qualquer outro interesse que não o bem comum e a justiça social”, dizem seus filhos. “Este é para nós seu maior legado, especialmente nos tempos tão obscuros que estamos vivendo no Brasil”.

Eles o descrevem como uma pessoa “muito criativa, curiosa e interessada em aprender”, além de disposto a compartilhar seus conhecimentos de maneira formal e informal. “Só aprendeu a usar um computador depois de aposentar-se, tornando-se então um entusiasta de softwares livres como o Linux. E foi no computador que ele escreveu os cinco livros de contos que publicou nos últimos anos, tendo deixado um sexto volume em andamento que pretendemos publicar algum dia”.

Após questionar “dupla porta” do HC, foi excluído da Comissão de Ética

Manço foi diretor clínico do HCFMRP (ou simplesmente HC). Em outubro de 1996, quando já havia deixado esse cargo e se aposentado, elegeu-se membro da Comissão de Ética do hospital. Foi eleito para um novo mandato em outubro de 1998. Contudo, em outubro de 1999 o Conselho Regional de Medicina (CRM) decidiu excluir o professor dessa comissão, sob a alegação de que ele não mantinha vínculo com o HC. “Na verdade, o afastamento de Manço está relacionado às suas posições contrárias ao processo de fundatização e privatização do HC”, registrou o Informativo Adusp 64.

A Adusp solidarizou-se com Manço logo que foi informada da decisão do CRM. “Tratando-se de uma Comissão de Ética, faltou ética ao procedimento do CRM. A Adusp apoia e apoiará todos os esforços do professor para reconquistar seus direitos como membro da Comissão de Ética do HC”, declarou a professora Clarice Sumi Kawasaki (FFCLRP), à época diretora regional da associação.

Quando Manço se aposentou, solicitou ao chefe do Departamento de Clínica Médica autorização para continuar prestando serviços na qualidade de professor colaborador voluntário junto ao Departamento, inclusive na condução de pesquisas médicas com pacientes do HC. Esse pedido foi aprovado pelo chefe do Departamento em julho de 1995. A função de professor colaborador voluntário é prevista e reconhecida tanto pelo regimento como pelo regulamento da FMRP, bem como pela lei federal 9.608/98 e pelo artigo 5, inciso 8, da Constituição Federal.

“Um direito líquido e certo foi violado. Não houve direito de defesa, e houve flagrante desrespeito aos princípios da legalidade e da publicidade, pois o CRM tomou uma decisão sem base legal e sem tornar públicos os procedimentos que precederam a exclusão, chegando a omitir informações solicitadas pelo interessado”, declarou na ocasião a advogada Ana Cristina Karam, da Adusp.

“Em setembro de 1999, durante o seu segundo mandato junto à Comissão de Ética do HCRP, nosso pai foi desligado desta Comissão sob alegações de que ele, como docente aposentado, não era mais vinculado ao hospital. Porém, na época ele continuava ministrando cursos de pós-graduação e realizando pesquisas clínicas no HC”, explicam os filhos Daniel e Débora.

“Seu desligamento ocorreu logo após ele ter solicitado esclarecimentos relacionados ao atendimento particular de pacientes na clínica civil (a chamada ‘segunda porta’). Este é até um assunto meio desagradável de recordarmos, pois tal episódio deixou nosso pai bastante abalado, já que sua preocupação era genuinamente sobre os aspectos éticos, e não os aspectos legais ou econômicos das parcerias propostas”.

A “segunda porta” ou “dupla porta” é um mecanismo perverso de ingresso de pacientes adotado pelas fundações privadas que controlam hospitais públicos como o HC de Ribeirão Preto. Na prática, os pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) são preteridos, ao passo que os pacientes de convênios privados e da clínica civil (particulares) recebem atendimento prioritário. Manço defendia o SUS e se opunha à privatização do HC.

José Carlos Manço nasceu em 19 de março de 1936 em Ribeirão Preto. Deixa a esposa, Ana Dirce De Granville Manço, e os filhos Daniel e Débora.

EXPRESSO ADUSP


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