A participação na reunião no dia 28 de setembro de 2022 do Grupo de Trabalho sobre Política Agrária, Urbana e Ambiental (GTPAUA) do ANDES foi muito proveitosa. Sua organização foi muito bem concebida, contando com exposições muitos pertinentes de militantes bastante engajados no movimento social, com sólida formação científica, o que ocorreu pela manhã desta jornada de trabalho. Associações docentes do Pará, Minas Gerais, Distrito Federal, Bahia, Paraíba, Mato Grosso, São Paulo e Maranhão estavam representadas na reunião.

Charles Trocate foi o primeiro orador. Integrante do MST do Pará, tem importante atuação política na região, especialmente no campo da mineração, e brilhante inserção no campo literário enquanto poeta, ao ponto de, em 2012, ter sido nomeado para a Academia de Letras Sul e Sudeste Paraense. Seu olhar para os problemas de conjuntura e mineração é assim marcado por referências literárias. Desta forma, seu tratamento do problema amazônico teve início com a lembrança de textos de Euclides da Cunha, redigidos quando da expedição ao Alto Purus. Para Trocate, a visão de Euclides da Cunha sobre a Amazônia é muito difundida e orienta uma subjetividade muito compartilhada. Trata-se de conceber o território amazônico a partir de três perspectivas, a saber: 1. seria um “inferno verde”, na medida em que indescritível e, assim, atormenta os espíritos; 2. seria também uma “terra imatura”, apesar de sua ocupação datar de cerca de vinte mil anos por seres humanos; e 3. seria a “última página” a ser escrita, permitindo pensar na última fronteira expansionista da sociedade moderna.

Inspirado em Mariátegui, Charles Trocate considera então que, com a referida visão euclidiana, o Estado brasileiro nasceu sem a Amazônia e contra a Amazônia. Com esta ótica, Trocate considera que, nos anos 1990, a forte onda neoliberal aprofundou a precificação da natureza, favorecida pela perspectiva segundo a qual o Brasil, graças a seus recursos naturais, poderia se tornar muito competitivo no mercado internacional.

Neste ponto, fez referência à Teoria da Dependência, segundo a qual se estabelecem relações de dependência e trocas desiguais entre países do centro ou hegemônicos e aqueles de periferia. Os primeiros são detentores de poder tecnológico e os segundos fornecedores de bens primários e mão-de-obra desvalorizada, o que ocasiona o uso intensivo da natureza nas periferias, além de crescimento da pobreza, com acumulação de riqueza no centro. Segundo Trocate, assistimos a uma super exploração crescente da força de trabalho, onde as “elites surfam numa pobreza absoluta”. A Lei Kandir (nº 87 publicada em 13 de setembro de 1996) reflete bem estes desequilíbrios, isentando de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) as exportações de produtos primários e semielaborados, paralelamente ao processo de privatização da Vale do Rio Doce. Estas medidas reforçam o atual modelo de mineração, de financeirização da natureza e priorização de lucro aos investidores.

A ótica segundo a qual agronegócio e mineração são essenciais para o desenvolvimento brasileiro oferece as bases de um discurso ideológico, com as quais estes setores procuram legitimar a ocupação e dominação de amplos territórios com um modelo industrial produtivista e destrutivo. Neste ponto, Trocate também menciona Karl Polany, relacionando o agronegócio e a mineração com o “moinho satânico”, que devasta natureza e seres humanos, além de citar Gramsci no que se refere ao “centauro” brasileiro (ou Estado-Centauro), que produz hegemonia e subalternidade, com revoluções regressivas. O papel do Estado assim é de impedir o reconhecimento dos direitos humanos, favorecendo concentração de renda, defesa da propriedade privada e ainda promovendo grande letalidade.

Desde 2016, com o golpe político que provocou a deposição de Dilma Rousseff, a Constituição foi deixada de lado e houve suspensão da República. Assim, tal fenômeno se traduz no “agrarismo neoextrativista violento”. Para legitimar tal ação nefasta para o bem-estar da população brasileira, o agronegócio e a mineração são apresentados ideologicamente como de interesse e utilidade pública essencial (um interesse prioritário nacional), o que explica por exemplo os termos do recente “Plano de Lavra” visando favorecer ainda mais esta mineração destrutiva, no mais longo prazo. A imagem do moinho satânico é retomada aqui para ilustrar o que representa a proposta do “marco temporal”, bloqueando as demarcações de terras indígenas.

Em seguida, Bruno, de descendência dos povos canelas do Araguaia, formado em direito e atuando em defesa das comunidades indígenas, realça sobretudo o problema da falta de formação política de muitos representantes dos povos originários. Como exemplo, cita que, dos 216 indígenas em câmaras municipais do país, uma parte considerável está filiada a partidos de direita. Desta forma por exemplo, no Araguaia, o desaparecimento de Dom Pedro Casadáliga desestruturou a resistência local, provocando a ampliação de um “vale de desassistidos”.

Com esta ordem de ideias, o palestrante menciona uma “crise de representatividade” no movimento indígena que não favorece o combate contra o “marco temporal”, instrumento do agronegócio para atingir seus objetivos “satânicos” (a ideia de moinho satânico é retomada aqui também). Esta avalanche destruidora contra os indígenas pode ser também associada ao programa “Avança Brasil” de Bolsonaro e a entrega da FUNAI a um presidente da instituição que bloqueia as demandas indígenas. Observa que, com uma Constituição cada vez mais fragilizada por um capital imperialista, acabamos por nos encontrar “estagnados nos enfrentamentos”. Como propostas, defende a criação de um bloco unitário que agregue negros, indígenas e quilombolas, com vistas também à atribuição de “Direitos à Natureza”, como ocorre na legislação do Equador. Apresenta igualmente ideias de uma “educação transformadora no movimento indígena”, na qual deve ser disseminada a consciência de que “os direitos indígenas devem estar acima dos governos que ocupam o poder”.

No final da manhã, os debates foram muito ricos, fomentados pelas estimulantes exposições dos dois palestrantes convidados. Os temas da “criminalização das lutas sociais” e das ações solidárias de combate contra fome como meio para tratar do dilema brasileiro, pão ou aço, tal como Josué de Castro propunha, podem ser destacadas entre os muitos pontos levantados. Charles Trocate ainda lembra de seu livro, Quando vier o silêncio, o problema mineral brasileiro (ver https://expressaopopular.com.br/livraria/quando-vier-o-silencio-o-problema-mineral-brasileiro/) e da constituição do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (ver https://www.mamnacional.org.br/), do qual faz parte da coordenação nacional, como referências para a reflexão, debate e ação neste âmbito. A luta por territórios livres da mineração (pelo menos daquela “devastadora satânica”) faz parte dos objetivos deste movimento, visando também a construção de um novo modelo para exploração mineral no país.

No período da tarde, questões em torno da mineração foram retomadas, visando especialmente a preparação para uma reunião conjunta com o GT de Ciência e Tecnologia que deverá ocorrer em breve. No último ponto de pauta, foram consideradas categorias, especialmente “bem viver, “ecossocialismo” e “povos do campo, águas e florestas”, enquanto meios pertinentes para tratar da ação sindical docente. O debate deve continuar em reuniões futuras do GT. Nossa contribuição a esta reflexão consistiu especialmente em propor a inclusão de duas outras categorias muito mobilizadas pelo movimento social: agroecologia e soberania alimentar.

Por fim, três exemplares do livro­ “Agro, Ditatura e Universidade: ESALQ-USP e a modernizacão conservadora (1964-1985)” de autoria de Rodrigo S. Molina, doados pela Adusp foram sorteados entre os participantes.

EXPRESSO ADUSP


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