Comunidade do curso de Obstetrícia da EACH repudia o PL 1.904/2024; enquanto o país registra recordes de violência contra a mulher, extrema-direita apresenta mais projetos para restringir direito ao aborto legal
Manifestações contra o PL 1.904, como esta no Rio de Janeiro, ocorreram em todo o país (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Docentes, especialistas e discentes do curso de Obstetrícia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP divulgaram no final de junho nota na qual manifestam “posição veementemente contrária ao Projeto de Lei (PL) 1.904/2024, que representa grave ameaça aos direitos sexuais e reprodutivos das meninas, mulheres e pessoas que gestam em nosso país, direitos esses que são reconhecidos como direitos humanos” (leia aqui a íntegra).

“Se aprovado, este PL criminalizará o aborto após 22 semanas de gestação, equiparando-o a homicídio, independentemente das circunstâncias, punindo também os profissionais de saúde que prescrevem e/ou realizam os procedimentos necessários para a interrupção da gestação, sem considerar que se trata de um cuidado com a saúde das pessoas envolvidas”, diz a nota, que lembra ainda que o PL prevê a imposição de penas de até 20 anos de prisão pela prática.

A nota do curso de Obstetrícia ressalta que, para além da violação do direito de escolha e da autonomia em decidir pela interrupção da gestação nos casos previstos em lei desde a década de 1940, “o PL desconsidera o contexto social brasileiro em que grande parte dos abortos realizados depois da 22ª semana são de crianças vítimas de violência e abuso sexual”.

Depois de ampla mobilização da sociedade contra o projeto, que ficou conhecido como “PL do Estupro”, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), recuou da tramitação. No entanto, como se verá abaixo, outras iniciativas de parlamentares bolsonaristas no Congresso Nacional ameaçam o direito à interrupção de gestação decorrente de estupro.

O acesso oportuno aos programas de aborto legal no país é restrito, aponta a nota da Obstetrícia, uma vez que somente 3% dos municípios brasileiros possuem serviços de atendimento aos casos das vítimas em idade gestacional avançada. “Ou seja, entre constatar que está grávida, descobrir a localização de um serviço habilitado que disponha de profissionais que não aleguem objeção de consciência e a superação dos demais entraves jurídicos que se apresentam, o tempo decorrido será prolongado.”

Portanto, prossegue a nota, “estipular um prazo para que a vítima consiga denunciar seu abusador, reconhecer a gestação, ser acolhida e buscar ajuda profissional nada mais é do que dificultar ainda mais o acesso a cuidados em saúde e contribuir para uma cultura que violenta e culpabiliza ainda mais as vítimas”. “Além de injusto, é perverso condenar as vítimas à prisão e criminalizar os profissionais que realizam o procedimento.”

O documento afirma ainda que o posicionamento contrário ao PL 1.904 encontra fundamentação no Código Internacional de Ética de Obstetrizes da Confederação Internacional de Obstetrizes (ICM). “A criminalização do aborto impede que as mulheres exerçam seu direito de tomar decisões informadas sobre seus próprios corpos e sua saúde reprodutiva, um direito fundamental apoiado pelas obstetrizes”, salienta a nota.

O texto diz que “criminalizar o aborto é uma violação dos direitos humanos das pessoas que gestam, com consequências adversas significativas para sua saúde física e mental”. “É nosso dever ético”, prossegue, “trabalhar para eliminar tais violações”.

Congressistas “estão se lixando para a realidade de violência sexual contra meninas e mulheres”, afirma professora da UFPR

Reportagem da Agência Pública mostra que há outros projetos de lei já apresentados no Congresso que estabelecem desde a responsabilização criminal de médicos(as) que fizerem a interrupção da gravidez acima de 22 semanas (PL 1.920/2024) até a obrigatoriedade de unidades de saúde de notificar a polícia em casos de interrupção da gravidez decorrente de estupro (PL 2.499/2024).

Este último foi apresentado por um grupo de 35 parlamentares em 19/6, um dia depois de Lira ter adiado o debate sobre o PL 1.904.

Na avaliação da professora Taysa Schiocchet, docente da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o “PL do Estupro” escancara que “nossos congressistas não estão nem aí”.

“Na verdade, estão se lixando para a realidade de violência sexual contra meninas e mulheres. Não há nenhum compromisso do Congresso com essa epidemia de violência. O que os congressistas estão fazendo é rifar direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas, reconhecidos pela legislação brasileira, por documentos internacionais de proteção dos direitos humanos. Estão rifando isso como uma resposta da política institucional interna, isto está muito claro”, disse a professora em entrevista publicada nesta sexta-feira (19/7) pelo Instituto Humanitas Unisinos.

A mobilização da extrema-direita para restringir o direito ao aborto se dá no momento em que os dados do 18º Anuário do Atlas da Violência, divulgado nesta quinta-feira (18/7) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram que o Brasil registrou um crime de estupro a cada seis minutos em 2023. Foram 83.988 casos de estupros e estupros de vulneráveis, número recorde que corresponde a um aumento de 6,5% em relação a 2022. O levantamento aponta que na maioria dos casos os agressores estão dentro da própria casa da vítima.

De acordo com o relatório, todas as modalidades de violência contra a mulher tiveram aumento no número de registro de casos.

EXPRESSO ADUSP


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