Debate sobre violências de gênero e raça nas universidades coloca em xeque a indiferença da USP frente às opressões

O auditório João Yunes, da Faculdade de Saúde Pública (FSP-USP), sediou, em 28/8, o debate “Violências de Gênero e Raça no Âmbito das Universidades”, realizado pela Adusp em parceria com a Regional São Paulo do Andes-Sindicato Nacional. O tema reflete os diversos casos de agressão e opressão revelados recentemente e a forma como as instituições de ensino superior vêm lidando com eles. “É uma pauta que tem aparecido de variadas formas e em vários momentos, mas a gente entende que o sindicato tem de se envolver com essa discussão que é tão relevante, especialmente debatendo a violência que envolve as questões de raça e de gênero”, afirma a professora Bete Franco, do Conselho de Representantes (CR) da Adusp e que coordenou o debate.

Daniel Garcia
Almeida, Bete, Jupiara e Heloísa acompanham intervenção do plenário

A professora Heloísa Buarque de Almeida (FFLCH), da Rede Quem Cala Consente, comentou que tem se deparado com muitos casos de violência sexual contra estudantes mulheres na universidade e afirma que o assustador não é apenas o caso em si, mas a naturalização dele pelas instituições, que ignoram a violência sexual praticada dentro do ambien­te universitário, afim de preserva­rem sua imagem. Heloísa aponta casos de abusos e assédio sexual ocorridos no âmbito universitário e critica: “A universidade soube de alguns desses casos e foi omissa. Há denúncias, elas chegam à diretoria dessas unidades e os próprios diretores dizem para os estu­dantes não fazerem as denúncias, para que ‘eles não sejam expostos’”.

Os trotes aplicados aos calouros universitários são vistos por Heloísa como parte de um universo de problemas “institucionalizados” no ambiente acadêmico. Ela lembra que o trote é uma “tradição de escola militar”, que ensina o calouro a “obedecer sem pensar” e, ao se calar, cria uma “comunidade de segredo” e uma “hierarquia geracional”, colocando o veterano como alguém superior ao ingressante.

O professor Antonio Almeida (Esalq), pesquisador do Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos (Diversitas) da FFLCH, fez sua exposição focando na questão do fascismo e como nossa cultura carrega consigo elementos das sociedades totalitárias do passado, como os cultos ao autoritarismo e ao militarismo, os ataques ao pensamento crítico e à educação, o controle da mídia por empresas amplamente conservadoras e a negação e apagamento dos casos de racismo e sexismo. Para Antônio, a cultura fascista tem ligação direta com os inúmeros casos de violência ocorridas nas instituições de ensino e a omissão da Reitoria quanto aos casos de trotes violentos mostra que a universidade tem interesse na continuidade do trote.

“Se não tivesse, seria suprimido rapidamente. As sindicâncias não funcionam e, apesar da CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito, criada em 2014 para investigar os casos de violência sexual nas faculdades de Medicina] os problemas continuam e nunca obtemos respostas. Tudo isso não é mero acaso. Os problemas são grandes e o discurso da universidade sobre isso é uma chacota, um insulto à inteligência de qualquer um que conhece um pouco da realidade desses assuntos”.

Dentre os elementos apontados pelo pesquisador do Diversitas, estão a competição e o individualismo, que, na universidade, aprofundam ainda mais o distancia­men­to social entre os indivíduos: “O trote não integra as pessoas, ele divide os alunos e muitas vezes os divide pelo resto da vida, em função daquilo que ocorreu no momento do trote, no início da sua convivência acadêmica”.

Jupiara de Castro, do Núcleo de Consciência Negra (NCN), abordou a questão da “invisibilidade” dos funcionários técnico-administrativos da USP nos casos de violência, principalmente racial: “Os funcionários são invisíveis para as violências cometidas dentro da universidade. Se for negro, piorou. Nesses casos, somos imperceptíveis”. Também funcionária da Faculdade de Medicina (FM), Jupiara destaca a importância de uma funcionária negra ser convidada para participar de um debate sobre opressões e critica a FM pela “blindagem” das autoridades da instituição em relação aos casos de opressão, que pode prejudicar a formação dos alunos, futuros profissionais da saúde pública. “Qual é a formação que estamos dando para os nossos alunos? Nós estamos formando quem, para quem e para qual projeto? Estou falando de formar profissionais que atuarão no serviço público e terão de lidar com mulheres negras, indígenas e pobres”, enfatizou.

Soluções?

Os debatedores criticaram duramente as medidas tomadas pela USP para melhorar a segurança dentro do campus. Foram citadas a proibição da venda e uso de álcool, a proibição de festas e a presença da Polícia Militar (PM) nos campi. Heloísa acredita que a postura repressiva da Reitoria, de proibir institucionalmente o álcool, não vai resolver a questão da violência no campus. “Certamente, não são o álcool e as festas as causas do estupro. O álcool causa desinibição nas pessoas, mas não é a causa última”. Para ela, é necessário definir alguns pontos, como o da questão da segurança nesses eventos e, nesse sentido, deu o exemplo da auto-organização das estudantes da FFLCH, que para garantir a segurança das mulheres nas festas daquela unidade organizaram uma “brigada anti-estupro”.

A professora acredita que a presença da PM não diminuirá a violência no campus. Para ela, que no debate afirmou ter ouvido até casos de meninas que foram estupradas por PMs, dentro do campus do Butantã e nas suas imediações, “a PM não é só racista” e, por esse motivo, “não é a solução”.

Jupiara acrescentou ser necessário que docentes, funcionários e estudantes rediscutam a questão da segurança no campus, resgatando alguns aspectos perdidos com o passar dos anos, como o do uso efetivo de uma Guarda Universitária que tem seu contigente diminuído a cada ano, principalmente com o processo de terceirização do serviço de segurança à Secretaria de Segurança Pública do Estado.

“Nós tínhamos um corpo de segurança da universidade que dava conta de trabalhar e conversar com a comunidade. Temos de botar o ‘pé na porta’, para dizermos que alguns pontos são fundamentais para a sobrevivência da universidade: segurança (não com PM), saúde e educação de qualidade são fundamentais para que a USP seja um centro de excelência”.

Bete Franco observou que existe uma cultura de violência: ao sermos parte dela, “naturalizamos uma série de situações violentas”. A transformação dessas situações vai se dar nos espaços onde visivelmente as desigualdades têm se manifestado. Porém, no cotidiano da sala de aula e em todas as relações dentro da universidade, esse cenário de desigualdade também se reproduz. ”Então, é muito relevante fazer a discussão nesses espaços visíveis, mas também é relevante fazê-la no ‘espaço micro’, disse Bete.

Ela ressaltou a importância da organização da sociedade e da comunidade universitária: “Esperamos que as autoridades façam mudanças, mas eu espero que nós também façamos. É muito importante a existência dos coletivos e dos debates que temos feito, pois nós também temos que transformar a universidade”.

Informativo nº 405

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