Intolerante, mídia “interdita o debate”

Cada vez mais intolerante, a mídia empresarial brasileira exerce seu poder para pautar na sociedade a sua própria agenda, ou, inversamente, bloquear o debate de determinados temas. Nesse sentido, seu discurso contra a censura e a regulação serve para censurar os que lhe são críticos.

Daniel Garcia

Afirmações fortes, ouvidas na mesa redonda “Mídia brasileira: liberdade, democracia e confiabilidade da informação”, que a Adusp promoveu em 22/10 na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). Participaram os jornalistas Paulo Moreira Leite e Sérgio Lírio e o sociólogo Silvio Caccia Bava. Moreira Leite foi correspondente em Paris e Washington e diretor da revista Época, onde atualmente é repórter especial. Lírio é secretário de redação da revista Carta Capital. Caccia Bava é diretor do mensário Le Monde Diplomatique Brasil. O jornalista Pedro Pomar, editor da Revista Adusp, moderou o debate.

Lírio atribuiu à “visão de mundo retrógrada” da mídia brasileira a responsabilidade pela interdição do debate político: “A maior parte dos meios de comunicação está estacionada, não ajuda o Brasil a se tornar uma sociedade mais complexa. Sem isso não seremos um país desenvolvido”. Ele enxerga “um certo cinismo da pluralidade e do apartidarismo”, pois “todos se declaram, unanimemente, órgãos de imprensa sem posição política, ‘a serviço do jornalismo’ pura e simplesmente, embora escorram claramente das páginas dos jornais suas posições”. 

O jornalista de Carta Capital comentou o envolvimento da revista Veja, a mais influente do país, com o bicheiro Carlos Cachoeira, descoberto por investigações da Polícia Federal: “Isso não se resume a uma simples relação de repórter com uma fonte, porque os interesses do Cachoeira se coadunaram com os interesses da Veja, nunca a serviço da transparência e do bem geral”. A revista do grupo Abril publicou matérias pautadas pelo bicheiro, baseadas em informações por ele fornecidas, com a finalidade de derrubar altos funcionários do governo federal ou de obter outras vantagens.

Lírio fez menção ao escândalo de escutas ilegais que abalou as publicações do magnata Rupert Murdoch: “Em outros países jornalistas vão depor em CPI. Na Inglaterra, Murdoch e jornalistas do seu grupo foram depor na CPI”. No Brasil, os parlamentares preferiram não convocar Policarpo Jr., jornalista de Veja ligado a Cachoeira, ou Roberto Civita, dono da Abril.

“Aqui, qualquer crítica à mídia se transforma numa discussão sobre censura. O discurso da censura serve para censurar qualquer discussão a respeito disso. Você não pode discutir qualidade”, prosseguiu. Sempre corajosa quando se trata de investigar os governos aos quais faz oposição, a mídia é, contudo, leniente com os partidos aliados e com o “poder real”, econômico, “o poder privado, permanente, que historicamente mandou e manda”, com os grandes empresários, que ela se abstém de investigar.

Visões plurais

Daniel Garcia

A limitação de informações sobre o que ocorre no exterior foi uma das motivações para o lançamento, há cinco anos, do Le Monde Diplomatique Brasil. Caccia Bava deu como exemplo o discurso que procura justificar os cortes nos gastos sociais da Grécia: “A Alemanha hoje está produzindo um juízo sobre os gregos de que eles são vagabundos. Na rua, os alemães estão dizendo: ‘Não podemos mais bancar o financiamento da Grécia porque os gregos não trabalham, eles vivem de benefícios’. É uma inverdade profunda, mas é a constru­ção da lógica que justifica as políticas de espoliação dos direitos da sociedade grega”.

“Alguém ouviu falar da Alba, Aliança Bolivariana das Américas, nos nossos jornais? A Alba conseguiu erradicar o analfabetismo no Equador, na Bolívia, com o reconhecimento oficial da Unesco”, revelou. Ao passo que no Brasil, que não consegue explicar sua própria taxa de analfabetismo, não se dispõe de “nenhuma informação de que, para além de uma aliança comercial como é o Mercosul, é possível estabelecer outras formas de solidariedade, de cooperação internacional”.

Ainda segundo Caccia Bava, o noticiário brasileiro sobre as eleições na Venezuela dava a impressão de que o vencedor seria Capriles: “Toda a grande imprensa caminhava no sentido de dar sustentação a essa candidatura, e ‘descer o pau’ no bolivarianismo, na figura do presidente Chávez. Nunca ouvi falar de um jornal discutir as políticas que estão sendo praticadas na Venezuela”.

Sobre o Le Monde Diplomatique Brasil, explicou: “Nosso interesse é trazer para o campo da discussão pública visões plurais, críticas, alternativas, para ir ajudando a recosturar um campo político popular e democrático, que está fragmentado. O que leva a uma pergunta: nós temos um projeto de desenvolvimento alternativo para o Brasil? Temos hoje uma esquerda à esquerda desse governo, que possa fazer uma crítica a essas políticas pelo lado da transformação social, da busca da equidade?”

Voltaire e limites

A propósito das recorrentes acusações da mídia aos regimes ditos populistas, repetidas por ocasião da recente assembleia da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), como observado pelo moderador no início  do debate, Moreira Leite relatou que estava na Venezuela em 2006, como repórter do jornal O Estado de S. Paulo, quando o presidente Chávez anunciou que não renovaria a concessão da emissora RCTV, uma das que participaram do golpe de 2002 (e que continuava hostil ao governo). “A população estava pouco se lixando” para o fim da concessão, comentou. “Aqui era um escândalo, na Venezuela havia indiferença absoluta”.

O jornalista usou esse exemplo para apontar limites à liberdade de expressão: “Voltaire é muito importante, vamos defender até a morte o direito de a pessoa dizer aquilo de que a gente discorda. Mas não é liberdade para calúnia, para errar o tempo inteiro, para mentir. Quando você faz isso e abusa, o povo não vai lhe defender”.

Por mais que se queira defender a liberdade de imprensa, acrescentou, “há momentos em que a população cobra os seus direitos”. Como em 1954, quando a população enfurecida com o suicídio de Vargas empastelou os jornais que lhe faziam oposição, inclusive os do Partido Comunista. “Nunca vai haver jornalistas acima do bem e do mal, eles sempre vão estar inseridos, assumindo posição, e terão de responder por ela”.

Moreira Leite acredita que a elite nacional tornou-se marcadamente reacionária: “A imprensa brasileira sempre foi conservadora, mas tinha alguma tolerância com o povo. Vários jornais apoiavam a reforma agrária. Havia um compromisso mais democrático, não era uma elite tão refratária à mudança”. 

A realidade atual é outra: “Hoje no Brasil temos uma elite que não tolera a menor mudança. Não é o governo brasileiro que se parece com o da Venezuela, é a mídia brasileira que está ficando parecida com a mídia venezuelana. Está extremista, intolerante”, definiu. “Trocaram Hirschman por Hayek. Não querem mais saber do Keynes, nem do keynesianismo do Roberto Campos”.

 

Informativo nº 354

EXPRESSO ADUSP


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