Defesa do Ensino Público
“Defesa da garantia do financiamento é a principal luta pela sobrevivência da educação brasileira”
Foto: Daniel Garcia
Opinião foi manifestada por Ricardo Capelli, representante do governo do Maranhão em Brasília, em debate realizado na Faculdade de Educação da USP, como parte do Festival pela Democracia. O corte das vinculações orçamentárias para saúde e educação seria a forma de o governo Bolsonaro atingir a meta de zerar o déficit fiscal em dois anos. Para o sociólogo Daniel Cara, a militarização, a caracterização da escola como “espaço de perdição” para os alunos e a ênfase na educação domiciliar são traços centrais do bolsonarismo
A resistência para garantir a continuidade dos recursos vinculados constitucionalmente é a luta mais estratégica para a sobrevivência da educação brasileira na conjuntura atual. A opinião é de Ricardo Capelli, secretário-chefe da representação do governo do Maranhão em Brasília e ex-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), em debate intitulado “As ameças ao sistema educacional brasileiro”, realizado no auditório da Escola de Aplicação nesta quinta-feira (31/1), primeiro dia do Festival pela Democracia, promovido pela Faculdade de Educação (FE-USP). O festival, que continuou na sexta (1/2), promoveu a troca de experiências democráticas e aproximação entre escolas, educadores e produtores culturais.
Capelli substituiu o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), que não pôde comparecer. O secretário falou sobre o decreto publicado pelo governo estadual em novembro de 2018, que garante a “Escola com Liberdade e Sem Censura”. “Esse decreto contra a ‘Escola sem Partido’ não faz nada mais do que reafirmar a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)”, ressaltou. “A situação do Brasil é tão difícil que é preciso que o chefe do executivo estadual reafirme aquilo que já está consagrado na legislação.”
O secretário usou esse caso para relacioná-lo com aquela que considera a principal ameaça ao sistema educacional brasileiro, num contexto de “tentativa de desconstrução de alguns paradigmas que pareciam pétreos”: o fim das vinculações orçamentárias constitucionais e os consequentes cortes no financiamento da educação. Esse é o alvo no qual o governo de Jair Bolsonaro (PSL) vai mirar com toda a força, afirmou Capelli: “Até outro dia estávamos lutando para ampliar o financiamento da educação com os recursos do Pré-Sal. Na minha opinião, a luta hoje é para garantir que não mexam na vinculação orçamentária”.
Paulo Guedes e a lógica agressiva de Estado mínimo
Capelli relatou ter participado de uma reunião em Brasília com os governadores eleitos, no final do ano passado, em que Bolsonaro e Paulo Guedes, que assumiria o Ministério da Economia, sustentaram que “o grande problema é que o Brasil tinha sido governado nos últimos trinta anos pela social-democracia, que quebrou o país”. Agora, no entanto, veio a “mudança”, com a direita e a centro-direita conservadora liberal.
Aos deputados presentes no encontro, os integrantes do novo governo disseram que os parlamentares “não tinham poder nenhum”, porque 94% do orçamento é amarrado; “vocês mandam só sobre 6%”. Para poder “mandar no orçamento”, os deputados teriam que ajudar o governo a aprovar as reformas, incluindo o fim de qualquer vinculação orçamentária.
“Paulo Guedes já disse que quer zerar o déficit fiscal do país em dois anos. Não há mágica: a única forma de eles conseguirem isso é avançando nos recursos da saúde e da educação”, apontou o ex-presidente da UNE. Mesmo com a venda das empresas estatais ou com a reforma da Previdência, cujo impacto não é imediato, “a conta não fecha, entre outras razões porque o próprio governo projeta um crescimento do PIB de apenas 1,5% a 2% neste ano”.
Portanto, continua, “eles vão tentar avançar sobre o financiamento da educação brasileira”. “É uma lógica agressiva de Estado mínimo com redução brutal do financiamento. Quando o ministro da Educação [Ricardo Vélez Rodríguez] diz que as universidades são para uma elite, isso não é por acaso. Ele está dialogando com a redução que necessariamente virá se esse projeto tiver sucesso”, considera.
No Maranhão, governo assumiu com mil escolas de taipa
O secretário também traçou um panorama da situação do Maranhão quando Flávio Dino assumiu o governo, em 2015, depois de cinquenta anos de domínio oligárquico da família Sarney. O “chefe” da oligarquia, José Sarney, foi presidente da República (1985-1990) e por três vezes presidiu o Senado.
“Era um estado absolutamente desarrumado, com coisas inacreditáveis em todas as áreas. Para dar apenas um exemplo, havia 36 regimes fiscais diferentes, com concessão de isenções e benefícios a empresas por ofício da Secretaria da Fazenda, sem processo administrativo ou qualquer espécie de registro”, disse.
Na educação, havia cerca de mil escolas de taipa — barro e palha. Nenhuma escola funcionava em horário integral e também não havia ensino técnico. Muitas crianças não tinham acesso a uniforme ou material escolar. “É uma situação de abandono como instrumento de perpetuação do poder oligárquico no estado”, define Capelli. O Maranhão tem o 16o PIB do país, mas está em 26o lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), à frente apenas de Alagoas.
No primeiro mês de mandato o governo criou o Programa Escola Digna, que já reformou ou construiu 800 escolas em quatro anos de gestão, e uma rede de escolas técnicas: os Institutos de Educação, Ciências e Tecnologia do Maranhão (IEMA). Dos 26 já em funcionamento, 13 são em horário integral. Também foi criada a Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (Uemasul), em 2017.
O Estado paga atualmente o maior salário para professor na rede pública do país: R$ 5.750 para 40 horas e R$ 2.850 para 20 horas. “É possível pagar melhor os professores, e isso vale para o Brasil inteiro. Se o Maranhão pode, nas condições em que a gente trabalha e sendo um dos estados mais pobres do país, o Brasil inteiro pode”, afirmou Capelli.
Ultraconservadorismo e militarização
O sociólogo Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e candidato ao Senado pelo PSOL em São Paulo em 2018, também chamou a atenção para o financiamento da área social, em especial com as reduções e cortes advindas das políticas de “austeridade e retrocesso” que marcam os últimos anos no Brasil — incluindo o período de Joaquim Levy à frente do Ministério da Fazenda em 2015, ainda no governo de Dilma Rousseff. Levy, por sinal, foi nomeado pelo atual governo para a presidência do BNDES.
A seu ver, o governo Bolsonaro é caracterizado por uma aliança entre ultraconservadorismo e ultraliberalismo. Entre seus objetivos estratégicos no campo da educação está o enfraquecimento da carreira docente, com a crescente desregulamentação da profissão. Daniel Cara lembrou que o Brasil não é o único país com governo de ultradireita ou ultraconservador na atualidade, citando exemplos como Estados Unidos, Hungria, Itália, Áustria, Filipinas e Polônia.
No Ministério da Educação (MEC), explicou, uma das primeiras medidas de Vélez Rodríguez foi a criação, na Subsecretaria da Educação Básica, de uma divisão para a militarização das escolas. O conceito não se confunde com o dos colégios militares tradicionais. “São escolas públicas que passam da Secretaria de Educação para a Secretaria de Segurança Pública, com gestão de uma corporação militar ou até da Guarda Civil do município”, descreveu o sociólogo. “Essa proposta tem amparo na sociedade. Há governos estaduais de centro-esquerda, como no Piauí, na Bahia e no Ceará, com escolas militarizadas. Não posso acreditar que um cidadão considere que um policial militar é melhor educador do que um professor. Esse raciocínio para mim é inaceitável.”
Bolsonarismo enxerga escola como “espaço de perdição”
A ênfase nas escolas militarizadas, considera Daniel Cara, responde a um anseio fundamental do bolsonarismo, que “em termos de pensamento estratégico e político considera a escola um ‘espaço de perdição’, em que os alunos supostamente são expostos a uma série de ideologias, a uma suposta doutrina marxista e a uma suposta erotização de crianças”. Nesse espaço, descreveu, é preciso ter disciplina, construída em oposição à pedagogia: “Por isso Paulo Freire é atacado: porque o pensamento pedagógico é considerado nocivo para as crianças, que precisam ser disciplinadas”.
“Nenhuma escola militarizada atende às classes médias: todas estão em região de periferia e em situação de violência. O que se quer não é educar, mas domar os alunos”, afirmou. “É uma visão que vem crescendo, e precisamos enfrentar esse crescimento.”
Esse tipo de política encontra forte amparo em projetos como o “Escola sem Partido”, disse Cara, que vê a disputa por recursos também no campo da “estratégia mais emblemática do bolsonarismo, que é a educação domiciliar”. “O bolsonarismo precisava encontrar uma justificativa para a educação domiciliar que também atendesse aos anseios dos seus aliados no mundo empresarial da educação, como a Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED), que apoiou a sua eleição”, prosseguiu.
A educação domiciliar será proposta por Medida Provisória (MP), e não por decreto, porque a LDB não oferece base de regulamentação para essa modalidade. A MP, por sua vez, não será editada pelo MEC, mas pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves. “O objetivo do programa é dizer que é melhor a criança ficar em casa do que ir para a escola. A estratégia para garantir o controle do Estado na educação domiciliar vai ser a Educação a Distância (EaD)”, afirmou Cara. A modalidade interessa a três grandes segmentos de mercado: o sistema de telecomunicações, os softwares para EaD e o projeto pedagógico. “Com esse, a gente precisa ter muita preocupação”, alertou, até porque “a EaD no ensino médio vai avançar no governo Bolsonaro”.
O sociólogo lembrou que, em 2018, o projeto da “Escola sem Partido” foi barrado na Câmara dos Deputados, “o que não foi uma vitória pequena”. Se as regras do jogo não mudarem, o projeto não pode mais tramitar em comissão especial e terá que ser discutido comissão por comissão, o que abre novas possibilidades para desgastar seus propositores. Outra vitória, citou, foi o cancelamento do novo edital do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que entre outras medidas liberava a inserção de publicidade nos livros escolares.
A estratégia a ser utilizada nos enfrentamentos que virão “é de guerra de guerrilha: discutir passo a passo, questão a questão, essa vai ser a nossa vida até 2022”, afirmou Cara. “Não podemos arrefecer e vamos precisar da capacidade de nos proteger. Temos que reconquistar a sociedade brasileira e lutar para retomar o que foi a Constitução de 1988: uma luta estrutural pela justiça social no Brasil.”
“Não falar ‘para’, falar ‘com’”
A mesa foi coordenada pela professora da FE Sonia Kruppa, uma das organizadoras da programação, que pediu uma salva de palmas em homenagem às vítimas da barragem da Vale em Brumadinho (MG). Também participou do debate a estudante da FE Cacau Prado, integrante da direção do Centro Acadêmico Professor Paulo Freire (CAPPF), envolvido na organização do festival.
Cacau listou vários itens da agenda de retrocessos e corte de direitos em curso no Brasil desde o golpe de 2016, como a reforma trabalhista, a legalização da terceirização irrestrita e a Emenda Constitucional 95. Os ataques continuam no governo Bolsonaro, salientou a estudante, nas políticas de desmantelamento da educação.
As professoras Ana Estela Haddad, da Faculdade de Odontologia da USP, e Lisete Arelaro, da FE, não faziam parte oficialmente da mesa, mas foram convidadas a se manifestar. Ana Estela lembrou que seu marido, Fernando Haddad, candidato do PT à Presidência da República no ano passado, tem participado de debates no exterior e conhecido experiências de resistência a modelos conservadores e autoritários que servem de exemplo para a luta no Brasil.
Lisete, que concorreu ao governo de São Paulo pelo PSOL nas eleições de 2018, ressaltou o alcance que estratégias como a disseminação das fake news — a distribuição do suposto kit gay, por exemplo — tiveram sobre o eleitorado, em especial nas periferias. Ela acredita que é necessário disputar novamente essas parcelas da sociedade. Citando Paulo Freire, Lisete disse que “não adianta falar ‘para’ eles, mas é preciso falar ‘com’ eles”.
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