Início do governo do capitão reformado tem rebaixamento do salário mínimo, extinção de secretaria para diversidade e inclusão no MEC e decreto que facilita posse de armas, entre outras iniciativas. Professores e pesquisador da USP avaliam as medidas, sinalizam suas consequências e perspectivas e apontam para a necessidade de organizar formas de resistência

Em pouco mais de duas semanas de mandato, o governo de Jair Bolsonaro já apresentou uma “declaração de intenções” prevendo uma ofensiva reacionária em todas as direções. “O foco concentrado vai ser nas áreas de cultura e educação, em coisas como ‘escola sem partido’, ‘ideologia de gênero’, ‘despetização’ etc., porque são alvos mais fáceis e não exigem grandes mudanças institucionais ou constitucionais”, avalia Osvaldo Coggiola, professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Na área econômica, diz Coggiola, Bolsonaro já prenunciou a tendência de ataque contra os salários ao rebaixar o aumento do salário mínimo – que, dos R$ 1.006,00 previstos no Projeto da Lei Orçamentária Anual, foi reduzido para R$ 998,00.

No campo das reformas em áreas como a Previdência Social, o governo vai enfrentar problemas porque terá que mexer com as Forças Armadas. “É uma reforma difícil, porque toca na institucionalidade existente, nos chamados interesses corporativos e também em direitos adquiridos. Em outros temas não haverá a mesma dificuldade, porque o trabalho sujo já foi feito pelo governo anterior” (de Temer), afirma o professor.

Bolsonaro terá que lidar com um Congresso no qual, embora tenha na largada uma base aliada que lhe dá apoio, seu partido (PSL) soma apenas 52 deputados. “Esse bloco é tão sólido quanto o que dava apoio ao PT, que inclusive tinha uma bancada maior. Porém, quando uma parte importante e substancial dessa base entrou em rebelião, acabou votando pelo impeachment de Dilma Rousseff. Não há por que descartar que, se o governo começar a ter problemas, uma parte do bloco também possa ir embora, recomponha o velho Centrão e gere uma crise política”, considera Coggiola.

Embate nas universidades

O docente avalia que o setor educacional, particularmente as universidades – especialmente as federais –, serão um campo de embate mais forte. Angariar nelas uma base significativa para sustentar medidas como a adoção de crivo ideológico para a concessão de bolsas é até possível, mas não vai ser fácil. “Os sindicatos de docentes e de funcionários e o movimento estudantil terão um grau de responsabilidade muito alto, porque vamos estar no centro da mira do governo”, aponta.

Um dos “alvos” no Ministério da Educação já foi atingido, com a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), lembra Gislene Aparecida dos Santos, professora associada da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e docente da área de Direitos Humanos do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito (FD) da USP. A determinação afeta os direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal de 1988, diz a professora.

A secretaria era responsável por áreas como educação especial, educação do campo, relações étnico-raciais, educação de direitos humanos e alfabetização de jovens e adultos, entre outras. “Atuava na promoção da educação inclusiva e do respeito à diversidade por meio de políticas para a formação inicial e continuada de professores, educação especial, acompanhamento da escolarização de jovens e adultos, promoção de políticas que permitissem o acesso e a permanência na escola dos oriundos dos grupos com maiores índices de vulnerabilidade social, educação em comunidades quilombolas e indígenas e produção de materiais didáticos específicos para a educação nos temas tratados pela secretaria, todos enfatizando o respeito à diversidade e aos direitos humanos e a redução das desigualdades no acesso à educação”, ressalta a professora.

Esses objetivos, lembra Gislene, “se vinculam à construção de um país que promova, garanta e defenda o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação e também o direito à educação”, conforme a Constituição e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

“Estudos e pesquisas realizadas ao longo de décadas observam que não há como assegurar direitos à não discriminação, à paz e à dignidade dos seres humanos e dos seres vivos, de modo geral, sem que as crianças aprendam desde muito cedo a entender e a valorizar a diversidade e a pluralidade. Se queremos um país justo e democrático, temos que aprender a respeitar a multiplicidade existente nele e temos que qualificar professores a ensinar que a diversidade e a pluralidade são valores positivos para a democracia, e não problemas a serem eliminados”, diz a professora.

“Temos que reduzir os índices de desigualdade no acesso à educação em todos os níveis. Era essa a missão da Secadi e das políticas implementadas por meio dela. Por isso, a extinção dessa secretaria, somada a outras medidas em torno do tema dos direitos humanos, pode ser lida como mais um dos atos que afetam as garantias de direitos dos brasileiros e brasileiras e que põem em risco às gerações futuras.” Para a docente, “não se pode falar em democracia sem respeito às diferenças, à pluralidade, à diversidade e aos direitos humanos”.

Mais armas, mais violência

Uma das principais medidas do início do governo foi a assinatura, no dia 15/1, do decreto que “flexibiliza” a posse de armas. Para o jornalista Bruno Paes Manso, pós-doutor pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, onde atualmente atua como pesquisador, o decreto pode agravar a situação de violência e aumentar ainda mais o número de assassinatos no país.

Alguns dos fatores apontados pelo pesquisador são o potencial de crescimento da violência doméstica, com mais conflitos transformados em tragédias, e da quantidade de suicídios. “Estudos internacionais apontam a correlação entre a presença de armas em casa e a consumação de suicídios”, diz. Paes Manso aponta ainda a possibilidade de fortalecimento das milícias, que já dominam territórios inteiros e cada vez mais se infiltram nas instituições do Estado.

O decreto pode também facilitar o acesso às armas pelos criminosos. Um estudo do Instituto Sou da Paz mostra que 70% das armas apreendidas em flagrantes em São Paulo têm origem legal e são fabricadas no Brasil.

No mesmo dia da assinatura do decreto, Paes Manso reproduziu em sua página no Facebook uma reportagem que fez para o jornal O Estado de S. Paulo em 2005 apresentando a trajetória de uma arma comprada legalmente por um engenheiro, roubada num assalto e posteriomente utilizada para a prática de vários crimes, incluindo pelo menos três assassinatos. “Conclusão: quanto mais armas legais circulando, mais oportunidades para o crime roubá-las e usá-las, já que é uma de suas principais ferramentas de trabalho”, escreveu no post.

Discurso conspiratório e resistência

Durante a campanha eleitoral do ano passado, o NEV procurou levar ao debate público a questão da importância da diminuição do número de homicídios no Brasil – foram quase 64 mil somente em 2017. “As candidaturas de alguma forma compraram a ideia, menos a do Bolsonaro”, aponta.

Para o pesquisador, Bolsonaro e seus apoiadores fizeram na campanha – especialmente na internet e em redes como o WhatsApp – um discurso de criminalização da política, com características paranoicas de identificação de um campo inimigo composto por “agentes malévolos que queriam destruir os valores da civilização”. “A questão é que agora Bolsonaro é governo, e esse discurso conspiratório continua na sua cabeça – mas hoje ele tem muito mais poder”, afirma.

“Quando a política é vista como um palco de guerra em que um grupo defende os valores supostamente ameaçados por inimigos num país já conflagrado, é preciso acender o sinal de alerta. O risco de isso descambar é muito grande”, considera. “Serão necessárias uma reação e uma resistência política a esse cenário por parte das instituições democráticas.”

EXPRESSO ADUSP


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