Condições de trabalho
Consultoria Jurídica propõe suspensão para professor do ICB antes mesmo de iniciado o processo disciplinar
Docente é perseguido por ter denunciado irregularidades ao Ministério Público
Professor Cerqueira |
O Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) firmou, em 23/8/2010, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o promotor de justiça Arthur Pinto Filho, do Ministério Público, mediante o qual aquela unidade da USP compromete-se a substituir o formol — empregado hoje na conservação de corpos humanos e partes de corpos, como ossos e órgãos, utilizados nas aulas do Departamento de Anatomia — por outra substância, a glicerina, até o dia 31/1/2011. O formol é cancerígeno e seu descarte requer cuidados especiais.
O TAC resultou de denúncia encaminhada ao Ministério Público pelo professor associado Esem Cerqueira, do ICB, depois que ele tentou, sem sucesso, resolver este e outros problemas por via administrativa, na própria unidade. Mas não foi o único resultado da iniciativa do docente. Desde 18/6, ele enfrenta um processo disciplinar aberto pelo diretor do ICB, professor Rui Curi.
A direção do ICB alega que a conduta do professor foi “incompatível com os deveres funcionais” e que ele cometeu “infração disciplinar de natureza grave”. Isso porque o jornal Folha de S. Paulo publicou, em 10/5, reportagem de página inteira sobre a conservação inadequada de cadáveres e partes de cadáveres naquele instituto (“Instituto da USP guarda corpos em baldes”, p. C4). Cerqueira foi uma das fontes ouvidas pelo repórter e teria “concorrido para a publicação da referida matéria, agindo de má fé com o intuito de denegrir a imagem da Universidade”, segundo Curi, por ter permitido ao jornal realizar fotografias no local.
Em seguida à publicação, o diretor do ICB e o chefe do Departamento de Anatomia, professor Jackson Cioni (ambos entrevistados pelo repórter da Folha), oficiaram à Consultoria Jurídica da USP (CJ), pedindo “providências” contra Cerqueira. A CJ emitiu, então, dois pareceres. No primeiro, de 17/5, a procuradora Ana Maria da Cruz sugere “a ida destes autos para a área de procedimentos disciplinares”. O procurador chefe Gustavo Monaco aceita a sugestão e remete o caso ao procurador Alberto Gonçalves de Souza, que opina, em 2/6, “pela instauração de processo administrativo disciplinar contra o professor doutor Esem Pereira Cerqueira, visando a aplicação de pena de suspensão com fundamento no artigo 253, parágrafo 2º, I, do Decreto 52.906, cc. o artigo 254 da Lei Estadual n. 10.261/68” (destaques nossos). Assim, ao mesmo tempo em que propõe a abertura de processo, a CJ já sugere a pena a ser aplicada: suspensão por 90 dias.
Lei 8.501/92
O professor Cerqueira, que pertence ao quadro docente da USP desde fevereiro de 1981, em regime de dedicação integral e sempre no ICB, onde ministra três disciplinas, rebate as acusações: “Jamais tomaria qualquer atitude que ferisse a imagem da USP. Não foi esse o intuito”. No ICB, diz ele, a manipulação de cadáveres nem sempre atende às disposições da Lei 8.501, de 1992, que “visa disciplinar a destinação de cadáver não reclamado junto às autoridades públicas, para fins de ensino e pesquisa”, e estabelece exigências que não têm sido respeitadas na unidade.
O artigo 3º, § 4º, por exemplo, estipula: “Para fins de reconhecimento, a autoridade ou instituição responsável manterá, sobre o falecido: a. os dados relativos à características gerais; b. a identificação; c. as fotos do corpo; d. a ficha datiloscópica; e. o resultado da necropsia, se efetuada; f. outros dados julgados pertinentes”. Mas no ICB as partes de diferentes corpos misturam-se, sem qualquer identificação, o que cria problemas éticos e legais.
“É muito estranho esse zelo repentino dos dirigentes do Departamento de Anatomia em 2010”, critica Cerqueira, lembrando que duas publicações dos estudantes — O Bisturi, do curso de Medicina, e Alta Rotação, da Odontologia — denunciaram, em 2008, o problema das peças anatômicas. Além disso, já em 2006 um abaixo-assinado firmado por 194 estudantes, que pedia providências para a situação, foi entregue ao então chefe do Departamento, mas arquivado após o “ciente” do destinatário.
Quanto à atitude da CJ, Cerqueira protesta: “Não consigo entender como a CJ, sem antes fazer qualquer apuração, sem receber meu ponto de vista, já estabelece uma pena”. Segundo o professor, esse modo de agir lembra uma passagem da obra Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, em que a desvairada personagem Rainha de Copas, questionada por Alice sobre por que razão mandara “cortar cabeças” sem o devido processo, respondeu-lhe: “Primeiro a condenação e depois o processo”.
Procurado pelo Informativo Adusp para comentar o caso, o diretor do ICB enviou a seguinte declaração, por intermédio de sua secretária: “O professor Rui Curi pediu para informá-lo de que este assunto está sendo analisado em um Processo Administrativo Disciplinar com respaldo jurídico da CJ, não podendo nesse momento dar qualquer entrevista”.
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