A pandemia Covid-19 obrigou as universidades públicas paulistas a suspenderem as aulas presenciais. Em seguida, quase imediatamente, a USP passou a buscar a conversão das disciplinas presenciais em disciplinas virtuais, inclusive na pós-graduação. No âmbito federal, o Ministério da Educação (MEC) publicou uma série de portarias sobre o assunto, a mais recente das quais é a Portaria 544, que estende a autorização para que as instituições federais de ensino superior ofereçam aulas na modalidade a distância até 31/12/2020. Hoje o ensino a distância (EaD) é a realidade cotidiana nas universidades públicas — ainda que especialistas não aceitem que certas atividades didáticas, adotadas de modo improvisado e remotamente oferecidas, sejam denominadas como EaD.
 
Nesse cenário, surgem questionamentos nas universidades acerca da propriedade autoral dos conteúdos gerados por professores e professoras ao lecionarem no ambiente virtual, com a possibilidade de eventual gravação e/ou reprodução em outros locais que não o contratante, a titularidade do material produzido sob demanda empregatícia, bem como em relação ao compartilhamento de materiais de outros autores nas aulas, sua possibilidade e legalidade.
 
“O modo de ensino do professor e o seu conhecimento organizado fazem parte da sua propriedade intelectual, e consubstanciam-se em direito patrimonial do docente”, observa a advogada Luísa Stopassola, da Sociedade de Advocacia Lara Lorena Ferreira, em nota técnica sobre esse tema, elaborada a pedido da Adusp. “Neste conhecimento organizado em formato de aula, no caso específico da problemática atual de ensino à distância, o docente utiliza-se, por vezes, de referências de outros autores e suas obras, os quais também possuem titularidade de seu direito patrimonial, propriedade intelectual do seu estudo organizado em artigo, livro, ou outros trabalhos escritos ou mesmo trabalhos orais”.
 
No seu artigo 5º, incisos XXVII, XXVIII e XXIX, a Constituição Federal prevê a proteção dos direitos intelectuais dos autores: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)  XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; XXVIII – são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas; XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País; (…)”.
 
Além disso, explica a advogada, a matéria é regida pela lei 9.610/1998, conhecida como Lei de Direitos Autorais (LDA), que consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Conforme prevê seu artigo 7º, a inserção de obras protegidas por direitos autorais na Internet, bem como sua reprodução e transmissão dependem de prévia e expressa autorização dos titulares de direitos autorais.

“Eventuais citações de autores não constituem ofensa a direitos autorais”

Há, todavia, “hipóteses em que a lei permite a livre utilização de obras protegidas sem a necessidade de autorização do autor, nos termos dos artigos 46 a 48 da mencionada lei”, quais sejam: (a) reprodução de notícia na imprensa diária ou periódica; (b) reprodução para uso de deficientes visuais, sem intuito de lucro; (c) reprodução em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este sem intuito de lucro; (d) citação de passagens para fins de estudo, crítica ou polêmica; (e) apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação; (f) utilização para demonstração da obra à clientela; (g) representação teatral e execução musical no recesso familiar ou para fins didáticos, em estabelecimentos de ensino; (h) utilização para produzir prova judiciária ou administrativa; (i) reprodução de pequenos trechos de obras preexistentes em obra maior; (j) paráfrase e paródia, quando não houver descrédito; e (k) representação de obras situadas permanentemente em logradouros públicos.
 
Ou seja, esclarece Luísa, “eventuais citações de autores ao longo do curso das aulas, sejam elas a distância ou mesmo presenciais, bem como em relação ao uso de obras para estudo, de acordo com a LDA não constituem ofensa aos direitos autorais, pois está autorizada a citação em qualquer meio de comunicação, seja ele digital ou escrito, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra”. Reforça: “Dessa forma, não incorre em ilegalidade a citação e/ou compartilhamento de parte de obra pelo docente, sem intuito de lucro e com a devida referência ao nome do autor e origem do texto”.
 
Já sobre a obra criada sob encomenda, aulas concedidas a pedido da Universidade ou instituição de ensino empregadora com a qual o(a) docente possui um contrato de trabalho, regulava o artigo 36 da Lei 5.988/1973, legislação anterior sobre direitos autorais, que “se a obra intelectual for produzida em cumprimento a dever funcional ou a contrato de trabalho ou de prestação de serviços, os direitos de autor, salvo convenção em contrário, pertencerão a ambas as partes, conforme for estabelecido pelo Conselho Nacional de Direito Autoral”. A atual LDA apresenta lacuna nesse ponto, diz Luísa. “Considerando que o texto [da lei] deixa de definir a quem pertence a obra, entende-se que a situação impõe a imputação da regra geral, na qual a titularidade desse direito é do seu criador. Nesse sentido, as aulas e materiais alcançados por meio de plataformas virtuais devem ser compreendidos com proteção de obras intelectuais em relação ao(à)s professore(a)s que os produzem”.
 
Ainda de acordo com sua nota técnica, não há objeção legal a que seja objeto de contrato a autorização para utilização das aulas, o número de vezes e as modalidades de uso. “A LDA prevê a transferência dos direitos de autor, total ou parcialmente, a terceiros, por ele ou por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, por meio de licenciamento, concessão, cessão ou por outros meios admitidos em Direito, obedecidas limitações (artigo 49), dos direitos patrimoniais do autor. Exige, para isso, a forma escrita, e presume-se onerosa (artigo 50). Cessão é a transferência definitiva dos direitos patrimoniais do autor. Já a concessão é a outorga temporária, total ou parcial, dos direitos patrimoniais. Sua forma mais acabada é a edição, que envolve o direito de publicação da obra, durante prazo estabelecido, em número limitado e em tiragens e território estipulados”. A advogada explica que, uma vez que o caput do artigo 49 da LDA fala, indiferentemente, de todos os meios de transferência, “no silêncio do instrumento, a outorga será válida para o território do país em que deferida e para uma edição, no prazo máximo de cinco anos” (conforme Gramstrup, E. F. “A nova lei de direito autoral e sua exegese”, acesso em 12/6/2020).
 
Por fim, adverte Luísa, o Código Penal prevê sanções para casos de violação dos direitos autorais: “Artigo 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. § 1º Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. § 2º Na mesma pena do § 1º incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente. § 3º Se a violação consistir no oferecimento ao público, mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para recebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, com intuito de lucro, direto ou indireto, sem autorização expressa, conforme o caso, do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor de fonograma, ou de quem os represente: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. § 4º. O disposto nos §§ 1º , 2º e 3º não se aplica quando se tratar de exceção ou limitação ao direito de autor ou os que lhe são conexos, em conformidade com o previsto na Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, nem a cópia de obra intelectual ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de lucro direto ou indireto”.
 

EXPRESSO ADUSP


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