Desde 15/10 estão suspensas em caráter emergencial novas matrículas de usuários no CSEB, que hoje tem apenas 56 funcionários. Tratativas sem transparência realizadas pela Faculdade de Medicina ameaçam transferir a gestão do centro para a “organização social de saúde” SPDM, uma entidade privada que já tem contratos em andamento com a Prefeitura

O Centro de Saúde-Escola Samuel Barnsley Pessoa (CSEB), vinculado à Faculdade de Medicina (FM-USP), está correndo o risco de fechar as portas por falta de pessoal suficiente para atender aos moradores do Butantã que o procuram em busca de serviços de saúde. Como relatado já em agosto de 2019 ao promotor de justiça Arthur Pinto Filho, da Promotoria de Saúde do Ministério Público (MPE-SP): “Nos últimos cinco anos houve uma redução drástica de funcionários e hoje tem apenas 56, ou seja: 40% do que tinha em 2015 [140]. Essa redução deveu-se à política da Reitoria da USP de não-reposição de funcionários que saíram principalmente por dois Planos de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV), além de aposentadorias, doenças etc.”
 
Criada em 1977, a unidade fornece estágios e residência aos estudantes dos cursos de Medicina, Enfermagem, Fisioterapia, Fonoaudiologia e Saúde Pública da USP, além de atender a uma população estimada em 25 mil pessoas. “O Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa (CSEB) é uma unidade docente-assistencial da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, sob a responsabilidade dos Departamentos de Medicina Preventiva, Pediatria, Clínica Médica e Fonoaudiologia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional”, segundo a descrição do site oficial da FM. No entanto, a faculdade parece não demonstrar apreço pelo CSEB.
 
Desde 15/10, está suspensa a matrícula de novos usuários, por decisão do próprio centro, devido à falta de recursos humanos necessários para atender à demanda. “Há muitos anos temos buscado a celebração de convênio entre a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) e a Universidade de São Paulo (USP), para efetiva integração do CSEB à rede municipal de saúde. Em janeiro de 2020 reafirmamos para a Supervisão Técnica de Saúde do Butantã (STS Bt) a impossibilidade de manter o cuidado a uma população de 25 mil habitantes com os recursos atuais. A Covid-19 trouxe novas necessidades e dificuldades para a população, os serviços e as instituições”, explica o centro em carta à população.
 
“Em agosto, pela dificuldade de organizar o trabalho com o número reduzido de profissionais do CSEB, concentramos as atividades no horário das 8 às 17hs para atendimento ao público”, prossegue a carta. “Com a evolução da epidemia para a fase 3 em São Paulo, tivemos a retomada dos estágios de alunos e residentes e a ampliação da demanda de usuários, o que nos coloca mais dificuldades para a manutenção das atividades com os recursos humanos contratados pela USP”.
 
O texto informa ainda que, em julho último, “em resposta a questionamento da Direção da Faculdade de Medicina, o secretário Edson Aparecido determinou que prosseguisse a tramitação [do convênio] na Assessoria Jurídica da SMS”. Até 2009, o CSEB tinha convênio com a Secretaria de Estado da Saúde (SES). Municipalizada a atenção básica, o convênio com a SES foi extinto, sem que fosse celebrado convênio similar com a SMS, ao longo de diferentes gestões da Prefeitura. Na atualidade, a gestão Covas vem protelando a assinatura do convênio. De outro lado, a FM e a Reitoria da USP deixam de proceder à reposição do pessoal perdido para o PIDV.
 
Com a finalidade de evitar o fechamento do centro, a equipe da unidade, grupos como o Coletivo Butantã na Luta (CBL) e usuários organizaram, em dezembro de 2018, o Comitê em Defesa do CSEB, que passou a tomar uma série de iniciativas para divulgar a situação e encontrar soluções. Entre elas, reuniões com o MPE-SP (em 20/9/2019) e com a Reitoria em busca de providências, participação na Conferência Municipal de Saúde e coleta de mais de 3.900 assinaturas em um abaixo-assinado em favor do CSEB.
 
Na última quarta-feira (4/11) o Comitê realizou uma plenária virtual com cerca de quarenta pessoas, que trocaram informações e avaliações sobre os problemas do centro. Ali surgiu uma novidade para a maioria dos participantes: a possível inclusão do CSEB num contrato de gestão já existente, por meio do qual a “organização social de saúde” (OSS) Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, conhecida pela sigla SPDM, incumbe-se de gerir equipamentos de saúde da Prefeitura.

“Fomos surpreendidos com a negociação envolvendo a SPDM”

“Hoje fomos surpreendidos com a notícia de que há uma negociação envolvendo a SPDM para que o CSEB seja de alguma forma inserido no contrato de gestão que ela tem para a região. A conversa tem um mês e nós estávamos completamente alheios a esta negociação”, revelou na plenária Rubens Kon, médico sanitarista do CSEB e um dos membros do Comitê. “Estamos embarcando de carona num contrato de gestão, o que parece bastante problemático”.
 
Na avaliação externada por Kon na plenária, o formato adequado para as necessidades do centro seria um convênio com a Prefeitura, que não se viabilizou porque a Reitoria exige a participação de um interveniente — uma instituição privada — e as indicações feitas foram recusadas. Ao que parece, a USP adota a política de não contratar diretamente funcionários para seus quadros com recursos de convênios alegando que não pode assumir um compromisso de longo prazo na dependência de uma fonte de custeio provisória, como é um convênio. Por outro lado, a Reitoria não se dispõe a contratar diretamente novos funcionários, para substituir aqueles cuja demissão voluntária ela mesma induziu com o PIDV.
 
“Não tem transparência, por isso levamos essa questão ao Ministério Público”, comentou na plenária, indignada, uma das funcionárias do centro, após ouvir o relato do colega sobre as tratativas com a SPDM. “É muito grave o que está acontecendo no CSEB, o que a Faculdade de Medicina está fazendo com os trabalhadores, com os alunos residentes e também com os usuários”.
 
De acordo com o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das OSS, realizada em 2018 pela Assembleia Legislativa (Alesp), a SPDM “recebeu nos últimos cinco anos 23% do total de recursos estaduais repassados às organizações sociais, sendo a OS que detém o maior número de contratos de gestão [dezenove] com o Estado”. Segundo a CPI, entre 2013 e 2018 a SPDM recebeu verbas públicas estaduais no montante de R$ 5,818 bilhões (Diário Oficial do Estado, 25/9/2018, Suplemento CPI das OSS, p. 35).
 
Fiscalização realizada pelo Tribunal de Contas (TCE-SP) em março de 2018 no Hospital Geral de Guarulhos (HGG), de média e alta complexidade, gerido pela SPDM, foi assim relatada: “Acabou o soro e não teve mais assistência, justificaram que não tinha sala específica para aplicação de soro. Controle de frequência manual apenas para pessoa jurídica. Escala da jornada de trabalho dos médicos geral referente ao mês anterior e outra específica do dia apenas da ginecologia. Banheiros sujos e com vazamentos. Leitos espalhados pelos corredores” (Diário Oficial do Estado, 25/9/2018, Suplemento CPI das OSS, p. 21).
 
“Estranha notícia a gente ser incluído no contrato de gestão da SPDM com a região, mas que já reflete a pressão que estamos fazendo”, reagiu um dos presentes à plenária. “A gente pode achar que é uma resposta a várias de nossas gestões”, concordou a médica Mariana Arantes Nasser, do CSEB, depois de elencar as diferentes atividades desenvolvidas pelo Comitê desde que foi criado.

“Tivemos a ilusão de que esse convênio seria assinado em 30/4/2019”

No entender de Mário Balanco, do CBL, trata-se de um “processo pensado” de desmonte da saúde. “Modelos como o CSEB têm uma história muito importante a contar. Resolvemos criar esse comitê para não deixar o CSEB morrer”, disse ele na plenária. “Só pode ser revertido se tiver participação popular. Tivemos a ilusão de que esse convênio [com a Prefeitura] seria assinado em 30 de abril do ano passado e isso não se concretizou”. Balanco destacou a necessidade de luta em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e citou como exemplo os esforços para impedir o sucateamento do Hospital Universitário (HU).
 
“Atualmente nossas ações do estágio multiprofissional estão paralisadas, o que interferiu no trabalho de aproximação com os territórios [atendidos]”, explicou a residente Emilley Siqueira Cordeiro, da Escola de Enfermagem (EE-USP). Relatou que se reuniu com o Centro Acadêmico (CA) da EE, com a ideia de convocar os colegas a participarem da defesa do CSEB, a exemplo do que ocorreu em relação ao HU. Sofia Lopes de Araújo, diretora desse CA, lembrou: “Graduandos da Enfermagem não passam no CSEB, não sei por quê. Precisamos trazer mais estudantes, muitos nem sabem o que está acontecendo”.
 
Uma usuária informou que algumas mães não conseguem mais ser atendidas na Unidade Básica de Saúde (UBS) da comunidade São Remo: “Não conseguem agendar consulta, de início falam que é por conta da pandemia. Como é que vai ficar?” Segundo ela, moradores da Vila Gomes e da São Remo estão sendo encaminhados para o CSEB. “E o acesso [a esse centro] também não é ‘legal’ para idosos, gestantes”, por dificuldades de deslocamento. “Pessoal aqui da (Favela) 1010 cada dia está num posto”, disse, indicando que os moradores desse território não foram adequadamente enquadrados pela SMS para fins de atendimento de saúde.
 
Outra participante da plenária do Comitê em Defesa do CSEB foi a professora Ana Lucia Pereira, do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e moradora do Butantã. “É uma tristeza a gente perceber que não mudou, e na verdade piorou, o olhar da Secretaria Municipal de Saúde para os centros de saúde”, afirmou.
 
A próxima reunião do Comitê ficou agendada para o dia 11/11 (quarta-feira), às 18h30.
 

EXPRESSO ADUSP


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