Ação judicial propõe que a “organização social de saúde” Famesp deixe de gerir o Hospital das Clínicas de Bauru, vinculado ao curso de Medicina da FOB
04/06/2020 13h57
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HC tem 220 leitos, mas apenas 40 serão abertos, destinados a casos de Covid-19 de média complexidade. A gestão foi confiada à Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar, que não conseguiu iniciar as atividades do hospital na data prometida pelo governo estadual (26/5). Carlos Ferreira dos Santos, diretor da Faculdade de Odontologia de Bauru, está em conflito de interesses porque exerce cargo no Conselho de Administração daquela OSS
O advogado Evandro de Oliveira Garcia, que representa o Sindicato dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem e Empregados em Estabelecimentos de Serviços de Saúde de Bauru e Região, ajuizou ação popular em 14/5, com pedido de tutela de urgência, contra a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo (SES-SP) e contra a Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar (Famesp). A ação tramita na 1ª Vara da Fazenda Pública de Bauru, sob o número 1009374-09.2020.8.26.0071.
Preliminarmente, Garcia requer “a imediata suspensão do convênio emergencial a ser assinado com a Famesp para a gestão do Hospital das Clínicas (HC-USP Centrinho) de Bauru e, caso tenha sido assinado, a suspensão de seus efeitos”, e que o governo estadual assuma aquele HC “e dê imediata continuidade aos serviços a serem prestados”, fazendo-o diretamente ou por convênio com organização social de Saúde (OSS), ou outra entidade privada, que não seja a Famesp. O HC de Bauru funcionará no prédio novo (“Prédio 2”, ou “Predião”) do Hospital de Anomalias Craniofaciais de Bauru (HRAC), conhecido como Centrinho e vinculado à Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP. Contudo, o pedido de tutela de urgência foi rejeitado em 19/5 pela juíza Ana Lúcia Graça Lima Aiello. Segundo o JC Net, a juíza concordou com o parecer do Ministério Público (MP), que foi a favor do indeferimento. O promotor Enilson Komono considerou que a Famesp tem prestado serviços adequados à cidade.
No mérito, a ação pretende a “declaração de nulidade do ato administrativo envolvendo a gestão do Hospital das Clínicas de Bauru (HC-USP Centrinho) e a Famesp”, bem como que o Estado “se abstenha de firmar convênio com a Famesp” para a gestão do HC, assumindo-a e dando continuidade aos serviços a serem prestados, nos mesmos termos da tutela de urgência.
Uma semana depois de ajuizada a ação, o governador João Doria (PSDB) anunciou a abertura do HC de Bauru para atendimentos de pacientes com Covid-19, sendo que a gestão do novo hospital foi realmente delegada à Famesp: “Serão abertos 40 novos leitos de enfermaria em parceria com a organização social de saúde Famesp (Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar) para atendimento a pacientes da região”, divulgou o site do HRAC em 21/5. “Haverá investimento de R$ 3 milhões para a implantação dos leitos, com um custeio mensal de R$ 1,2 milhão. A unidade contará com 120 profissionais de saúde, entre médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem”.
Porém, o anúncio do governo Doria de que a unidade começaria a funcionar no dia 26/5 não se cumpriu. O presidente da Famesp, Antonio Rugolo Jr., atribuiu o atraso a questões burocráticas, relativas a um problema na emissão online do certificado do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), sem o qual, alega, o hospital não pode entrar em atividade. Somente na noite de 3/6 esse documento foi liberado. No entanto, no dia 4/6 o HC permanecia sem atender ninguém.
“Superadas as etapas burocráticas, o convênio foi reencaminhado com o novo registro para o governo estadual, que, agora, precisa assinar a documentação para que a fundação abra, enfim, as portas do hospital e receba os pacientes. A expectativa é de que a assinatura ocorra nesta quinta-feira”, informou o jornal digital JC Net, de Bauru, em matéria publicada em 4/6. “Felizmente, estamos no final”, declarou o presidente da Famesp, Antonio Rugolo Jr. “Encaminhamos o convênio para o DRS-6 (Departamento Regional de Saúde de Bauru) e, assim que o documento for assinado pela Secretaria de Estado da Saúde, já começaremos a atender”.
A inusitada lentidão no início do funcionamento do HC se dá em meio ao agravamento da epidemia em Bauru. A SES-SP informou que em 3/6 o Hospital Estadual de Bauru (HE) atingiu 100% de ocupação dos leitos públicos para a Covid-19. “Além da UTI lotada, a enfermaria também chegou bem perto da saturação: 90%. A reportagem apurou que se trata do quadro mais crítico desde o início da pandemia”, registrou o JC Net. “A realidade alarmante reforça a urgência da abertura do Hospital das Clínicas (HC), que seria exatamente a retaguarda para uma situação dessas e que ainda está sem receber pacientes”.
“Inegavelmente, a designação da gestão do Hospital das Clínicas de Bauru para a Famesp envolve interesses pessoais, políticos e econômicos”, afirma a inicial. “Ocorre que o atual diretor da FOB e superintendente do HRAC, professor Carlos Ferreira dos Santos foi ‘agraciado’ com um cargo no Conselho de Administração da Famesp: ‘Fui designado como membro do Conselho de Administração da Famesp no dia 23/4/2019’, diz Carlos Ferreira dos Santos. Minha contribuição junto a esse Conselho se dá na qualidade de membro da sociedade civil’”, registra a ação, que reproduz declarações do diretor ao Informativo Adusp. Carlos Ferreira dos Santos considera que, embora integre ao mesmo tempo cargos de direção das duas instituições (USP e Famesp) mutuamente envolvidas em convênio, não incorre em conflito de interesses: “Em nenhuma deliberação no Conselho da Famesp ou na atuação como dirigente da FOB nos deparamos com questão que eventualmente pudesse incorrer em conflito de interesse”.
A peça judicial também menciona uma crítica do ex-coordenador do curso de Medicina da FOB, professor Sebastião dos Santos, à parceria que, à época, já se pretendia celebrar com aquela fundação privada, com o alegado objetivo de permitir estágios aos alunos: “É um absurdo fazer convênio com a Famesp, que é uma OSS. O convênio tem que ser com a Secretaria da Saúde, com o SUS. Ter que discutir um curso público com uma OSS é um absurdo”.
Outro questionamento de Garcia na ação diz respeito à condição privilegiada da fundação no tocante às contratações firmadas com o poder público estadual: “Em razão da falta de transparência na fiscalização pela Secretaria Estadual de Saúde dos contratos com OSS, a indicação sistemática da Famesp para a formalização de convênios é no mínimo curiosa, para não dizer suspeita”. Ele acrescenta tratar-se de “uma das cinco organizações sociais que concentram a maior parte dos contratos com a Saúde no Estado de São Paulo”.
CPI apontou “passivo a descoberto” de R$ 29 milhões, segundo CPI
O advogado do Sindicato dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem e Empregados em Estabelecimentos de Serviços de Saúde de Bauru e Região chama atenção, igualmente, para a situação financeira da fundação, que parece ser vulnerável: “Não bastassem os R$ 12 milhões necessários para a adequação do Hospital e os problemas de instalação (rede de água aquecida, rede de gás, estrutura para hemodiálise e centro cirúrgico, revisão dos espaços para instalação de UTI, instalações elétrica, hidráulica e outros), a fundação indicada para gerenciar o Hospital apresenta ‘incerteza relevante relacionada com a continuidade operacional’”.
Cita o relatório final da CPI das OSS: “As demonstrações financeiras da entidade apresentam passivo a descoberto no montante de R$ 29.023.338,94 e seu passivo circulante excede o ativo circulante em R$ 40.364.865,37, com situação patrimonial e financeira que requer forte gestão administrativa. Este fator é um indicativo de que a continuidade normal das operações da entidade depende do êxito das medidas que estão sendo tomadas pela administração”.
Ainda conforme a ação, “denota-se que a Famesp acumula dívidas que comprometem a sua continuidade operacional, podendo evidenciar uma má gestão ou improbidade, uma vez que a Diretoria não tem tomado as devidas providências para evitar ou diminuir reclamações trabalhistas, por exemplo”. Destaca que a Famesp “não foi criada somente para melhoria das condições gerais e administrativas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Unesp [em Botucatu], mas como meio de burlar direitos trabalhistas, aplicando-se ao caso o artigo 9º da CLT”.
Na Procuradoria Regional do Trabalho em Bauru, continua, “tramita o processo 000839.2017.15.001/3-31, onde foi apurada a falta de 158 enfermeiros nas unidades da Famesp em Bauru em fiscalização do Conselho Regional de Enfermagem-SP”. Tal procedimento, explica, “foi instaurado em razão das constantes reclamações de trabalhadores sobre a falta de funcionários nos setores, 15 acúmulos de tarefas, sobrecarga de trabalho, extrapolação da jornada, remanejamento constante de funcionários para atuarem em outros setores, auxílio em procedimentos médicos, entre outros problemas e irregularidades”. Nas áreas sensíveis, “a redução da equipe e a sobrecarga dos demais funcionários coloca em risco a vida dos pacientes que são potencialmente graves e necessitam de monitoramento intensivo”. No HE, a gestão da Famesp estaria determinando “o descumprimento de decisões judiciais e a violações da normas de higiene e segurança, colocando em risco pacientes e funcionários”.
Recorrendo a outra reportagem do Informativo Adusp, a ação registra que, segundo o relatório final da CPI das Organizações Sociais de Saúde, a Famesp recebeu do governo estadual, desde 2013, R$ 3 bilhões — e que, em mais um caso típico de conflito de interesses, o presidente da fundação privada Antonio Rugolo Jr. foi, concomitantemente, secretário-adjunto da Secretaria Estadual da Saúde na gestão de M.A. Zago à frente da pasta (2018). “A Famesp, segundo as informações prestadas pelo TCE-SP, nos últimos cinco anos recebeu um montante equivalente a 12% do total de recursos públicos estaduais repassados para as organizações sociais. R$ 3.011.052.685,24 provenientes do Governo do Estado foi o valor que ingressou nas contas da Famesp desde 2013”, assinalou o relatório final da CPI, cujo relator geral foi o deputado estadual Cássio Navarro (PSDB).
Reitoria acreditava que os 40 leitos seriam para pacientes “não Covid”
Por ocasião do anúncio da criação da enfermaria com 40 leitos no HC de Bauru, em 21/5, o secretário estadual da Saúde, José Henrique Germann, celebrou o fato: “Este é um reforço importante para assistência aos pacientes suspeitos e confirmados de coronavírus da região. É uma grande conquista que se junta aos demais hospitais estaduais de referência da região no enfrentamento da pandemia”. Porém, até a véspera, a Reitoria da USP acreditava que o HC seria destinado a pacientes “não Covid”.
Tanto é que o diretor da FOB e superintendente do HRAC, Carlos Ferreira do Santos, informou às suas equipes, inicialmente, ter sido “comunicado pelo reitor da USP, professor Vahan Agopyan, [de] que, em tratativa com a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP), a Reitoria da USP autoriza o Estado a instalar emergencialmente os 40 leitos de retaguarda para atendimento a pacientes de média complexidade (não relacionados à Covid-19) no Hospital das Clínicas (HC) de Bauru (Unidade 2 do HRAC-USP). A diretora do Departamento Regional de Saúde de Bauru (DRS-6), Doroti da Conceição Vieira Alves Ferreira, já foi comunicada”.
Posteriormente, ficou claro que as verbas destinadas pelo governo estadual ao HC de Bauru são “carimbadas” para Covid-19 e portanto os leitos terão de ser reservados para esses pacientes. Será, no entanto, um atendimento voltado para casos de Covid-19 de média complexidade, o que certamente é mais interessante para a Famesp, uma vez que os custos são muito menores do que os custos de UTI para pacientes graves dessa doença. Além disso, o HC não terá portas abertas para a população: os pacientes que serão atendidos na sua enfermaria serão remanejados do HE, hospital público da SES-SP igualmente gerido pela Famesp.
Numa mensagem posterior, enviada para funcionário(a)s, docentes e estudantes do HRAC na mesma data em que o governo Doria anunciou a iminente entrada em funcionamento do HC de Bauru (21/5), o superintendente Carlos Ferreira dos Santos procurou explicar a reviravolta súbita na destinação dos leitos e o confuso protagonismo (ou falta dele) da USP no episódio.
“Conforme amplamente divulgado, inclusive internamente, a data de ontem (20/5/2020) foi histórica. Representa o dia em que a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP) sinalizou para a Universidade de São Paulo (USP), de forma firme e clara, que vai entrar na Unidade 2 e que, de fato, vai assumir o Hospital das Clínicas de Bauru. Foi um importantíssimo avanço no contexto da implantação efetiva do HC, e fomos comunicados de forma oficial pelo nosso Magnífico Reitor, professor Vahan Agopyan, na manhã de ontem”, inicia o superintendente.
“No início da tarde de 20/5/2020, também recebemos a informação da diretora do Departamento Regional de Saúde de Bauru (DRS-6), dra. Doroti da Conceição Vieira Alves Ferreira, de que a proposta inicialmente desenhada para que o futuro HC (Unidade 2 do HRAC-USP) recebesse 40 leitos de retaguarda ao Hospital Estadual de Bauru (HEB) para tratamento de pacientes não-Covid-19 havia mudado. Quando a proposta chegou na SES-SP, descobriu-se que a verba disponível é carimbada para tratamento de pacientes com Covid-19. Portanto, essa é uma regra que não pode ser desrespeitada e, segundo o DRS-6, um outro desenho se tornou necessário”.
Por fim, Carlos Ferreira dos Santos tenta eximir a Reitoria de responsabilidades no ocorrido: “A respeito dessa mudança do projeto inicial e o atendimento a pacientes com Covid-19 no HC, deixamos claro que a USP não participou dessa definição, trata-se de uma decisão do Governo do Estado, que é o ente responsável por garantir a melhor assistência à saúde à população. Entendemos também que estamos diante de uma situação de pandemia e a USP está fazendo tudo o que pode para ajudar a sociedade neste grave momento”.
Depois das explicações iniciais, o superintendente informa as providências tomadas frente à “necessidade de uma adequação na logística e no acesso ao prédio e demais dependências do HRAC-USP e do campus, com vistas a garantir a saúde e segurança de toda a comunidade da USP-Bauru, especialmente dos servidores e alunos que atuam na Unidade 2 e dos pacientes que são atendidos no local”. Em seguida, na contramão de tudo que se sabe sobre a trajetória da OSS encarregada da gestão do futuro HC de Bauru, ele afirma: “Haverá um controle rígido de circulação de pessoas para que não haja trânsito das equipes e dos pacientes por outras áreas. A Famesp tem grande expertise e nos garantiu que já tem uma equipe treinada justamente para evitar que o vírus circule no nosso ambiente” (destaques nossos).
As mídias oficiais da USP têm destacado o fato de que o HC de Bauru manterá suas atividades uma vez superada a Covid-19: “Após a pandemia, o prédio abrigará um serviço de referência hospitalar e ambulatorial para a população dos 68 municípios da região de Bauru e servirá de hospital escola para o curso de Medicina da USP de Bauru, como acontece nos Hospitais das Clínicas de São Paulo e Ribeirão Preto”, disse o site do HRAC.
EXPRESSO ADUSP
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