Defesa da Universidade
Anteprojeto do “Estatuto de Condutas” é “incompleto, tem muitas falhas e merece muitos ajustes”, reconhece seu autor
Em debate organizado pela FFLCH, professor Floriano de Azevedo Marques Neto, que elaborou a minuta do texto, afirmou que não vê problema em descartar a proposta em favor de um substitutivo. Evento reuniu representantes da Unifesp e Unicamp e evidenciou necessidade de avanço da USP na construção de instâncias dialogadas para administração dos conflitos
Alvo de muitas críticas pela redação do anteprojeto do novo “Estatuto de Conformidade de Condutas” da USP, no momento em discussão nas congregações das unidades, o professor Floriano de Azevedo Marques Neto, diretor da Faculdade de Direito (FD), reconheceu que “o texto é incompleto, tem muitas falhas e merece muitos ajustes”. “Esses debates de que estou participando já apontaram uma série de falhas. Entre elas, o texto não tem um preâmbulo com direitos e princípios da convivência universitária”, disse. Citou também o que considera “um consenso”: “É preciso fazer um debate amplo. Não se faz um estatuto, não se toca num tema desses sem haver um debate amplo com a comunidade”.
O professor afirmou não ter “nenhum problema em dizer que, se [o anteprojeto] é imprestável, jogue-se fora e se faça um substitutivo”. De acordo com Marques Neto, “se há algum proveito de ter sido lançado esse debate, apesar de aqui ou ali eu ouvir alguns desaforos, é que ele está propiciando uma discussão orgânica e ordenada em torno desses temas”, disse. Em sua opinião, algumas dessas discussões já têm produzido resultado, como a necessidade de incluir no texto princípios ligados à mediação e à justiça restaurativa.
O redator da minuta do estatuto foi um dos participantes do debate “Administração de Conflitos em Universidades”, promovido nesta quarta-feira (28/4) pela comissão responsável pela elaboração do Manual da Convivência da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, com mediação da professora Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer (FFLCH).
A comissão, criada em 2012 para elaborar uma proposta de texto para substituir o Regime Disciplinar em vigor na USP desde 1972 — na vigência da Ditadura Militar —, foi reconstituída com o propósito de redigir um texto alternativo ao “Estatuto de Condutas” apresentado no Conselho Universitário (Co) no final do ano passado. O site da comissão apresenta uma série de documentos relacionados ao tema, produzidos no Brasil e no exterior.
O debate, com mais de duas horas de duração, contou com a participação de representantes da Unicamp e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que relataram processos de construção de documentos semelhantes, realização de cursos de formação de mediadores e criação de iniciativas como as câmaras de mediação.
Punição ao direito de greve precisa ser revista
Como já fez em outras ocasiões, Marques Neto afirmou que o anteprojeto é incompleto, “como sói ocorrer num texto solitário”. A comissão constituída para promover a revisão das normas disciplinares da USP em 2017, ainda na gestão do ex-reitor M. A. Zago, se desfez por várias razões, como o fim do mandato no Conselho Universitário (Co) de vária(o)s de seus integrantes, explicou. “Entre devolver o encargo e esperar a mudança de reitor ou fazer um exercício colhendo o que tinha ouvido e havia conseguido granjear, escolhi fazer um texto como ponto de partida para essa discussão.”
“Talvez um pouco da implicância seja que o processo começou não em cima de ideias, mas de um texto-base. Preferiu-se ter um ponto de partida, que pode ser simplesmente descartado ou todo alterado”, disse. Ressaltou ainda que não é “um fascista punitivista, longe de mim ter essa pretensão” e que o texto tem omissões, em alguns casos por escolha e em outros — como a ausência das práticas de justiça restaurativa — simplesmente porque a ideia não lhe ocorreu, confessou.
Em relação ao primeiro caso, citou a mediação prévia à instauração de um processo disciplinar. Essa modalidade não é possível em todas as situações — pode ocorrer numa discussão envolvendo chefe e subordinado, mas não num caso de assédio sexual, exemplificou. O tema ficou de fora do texto porque “depende da definição também polêmica de ter uma instância única ou dispersa [nas unidades] de processo disciplinar”. “A ideia da instância única tem sido bastante criticada”, reconheceu. “Se não for única, isso vai ter que ser recomposto na ambiência de cada unidade.”
Outra questão que tem sido alvo de muitas críticas é a punição ao direito de greve. “Do jeito que está no texto, é um perigo e tem que ser revisto”, concordou. E citou que as sanções aos servidores — demissão, suspensão ou advertência — nesse e em outros casos estão previstas em leis como o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado.
Na sessão de perguntas, ao final do debate, Marques Neto se manifestou em relação à ausência de menções específicas às questões de gênero e etnia e à desconsideração das contribuições da equipe assessora ligada ao Escritório USP Mulheres, conforme aponta a Rede Não Cala!. Respondeu que a proposta “pode não ter refletido de maneira exaustiva” todos os subsídios recebidos, mas que os levou em conta. “Dentro da tipicidade que pressupõem as condutas mais macro e não tipos mais detalhados, imaginei que essas violações das questões de gênero, raça etc. estivessem endereçadas”, justificou.
Ao contrário de outra(o)s participantes do debate, o redator da minuta acha que é possível aprovar um novo estatuto ainda neste ano, como pretende o reitor Vahan Agopyan. Na sua opinião, é preciso colocar o tema “na pauta prioritária”. “É realmente visível o déficit da USP em relação a essas experiências da Unicamp e da Unifesp e temos que avançar, independentemente de estatuto.” Marques Neto também se disse aberto a participar de debates e lives com todos os segmentos da universidade.
Não bastam leis e documentos; é preciso desenvolver valores de convivência
A ouvidora da Unicamp, Maria Augusta Pretti Ramalho, falou sobre a criação da Câmara de Mediação e Ações Colaborativas, vinculada à Ouvidoria da universidade. O processo foi iniciado pelo então reitor Marcelo Knobel logo no começo da gestão, em 2017, mas por entraves burocráticos e resistências internas só foi de fato concretizado no segundo semestre de 2019, por meio da Resolução GR 32/2019.
Ao longo de 2020, o professor Antonio Rodrigues de Freitas Júnior, docente da Faculdade de Direito da USP, e a advogada e mediadora Célia Zaparolli coordenaram o curso de formação em mediação, concluído por cerca de 50 pessoas — docentes e servidores da ativa ou aposentados.
“A câmara está sendo um sucesso. Desde que começou, já realizamos inclusive mediações pesadas, de coisas que se arrastavam há anos”, disse Maria Augusta, ressaltando ainda que, por determinação da Procuradoria-Geral, não podem ser encaminhados a essa instância processos já em andamento ou assuntos que envolvam recursos da universidade. A Unicamp também criou a Diretoria Executiva de Direitos Humanos (2019) e deu início à discussão de um novo Código de Condutas, no momento em debate nas unidades.
A professora Telma Pileggi Vinha, docente da Faculdade de Educação da Unicamp, enfatizou que muitos conflitos entre docentes e aluna(o)s ou entre a(o)s própria(o)s estudantes são “cozinhados e engavetados”. “Falta formação para a gestão de conflitos, e às vezes, como não há confiança nos processos institucionais, buscam-se formas de resolução que não são construtivas”, disse.
Na avaliação da professora, não basta que existam leis ou processos. “É preciso esclarecer procedimentos”, considera. “Não se trata de contarmos com as habilidades individuais que existem na universidade. Temos que ter processos institucionalizados, como as câmaras de mediação.”
A professora também salientou que definir de qual tipo de convivência se está falando faz toda a diferença nos processos e documentos que a instituição vai desenvolver. “Não basta haver propostas ou políticas que vão adequar a legislação ou atuar em violências. Isso é pouco. Precisamos promover o desenvolvimento de valores que vão qualificar a convivência como mais democrática e mais ética”, afirmou a professora.
A reitora da Unifesp, professora Andréa Rabinovici, salientou o esforço político por trás de iniciativas como a criação da Câmara de Conciliação e Mediação de Conflitos da universidade, fruto do trabalho da gestão iniciada em 2013 pela reitora Soraya Smaili. “Nossos documentos na época não mencionavam termos como direitos humanos”, lembrou.
Nos cinco anos em que exerceu a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis, Andréa trabalhou para alterar o Código de Ética Estudantil, enfrentando resistências institucionais e algumas restrições da Procuradoria-Geral da universidade. O tempo fortaleceu a convicção de que era necessário criar espaços de mediação e justiça restaurativa e pensar na relação não só entre estudantes, mas entre todos os setores da comunidade.
“Criamos alguns cursos, o primeiro deles de linguagem mediadora. Nossa lógica era de evitar que os conflitos se transformassem em processos contra os estudantes”, relatou. “Os resultados foram muito positivos, inclusive em conflitos antigos como os que envolviam alunos da Medicina e alunas da Enfermagem.”
A reitora citou também as grandes questões enfrentadas com a chamada “CPI dos Trotes” na Assembleia Legislativa de São Paulo (2014-2015), que investigou violências e violações de direitos humanos nas universidades. “Conversamos na época com muita gente, como as integrantes da Rede Não Cala!, que havia sido formada na USP, e foram processos de muito aprendizado.”
Outro problema detectado na estrutura da universidade foi o encaminhamento de denúncias a diferentes instâncias, produzindo também diferentes providências. A Unifesp criou em 2020 a Câmara de Juízo de Admissibilidade, que recebe as denúncias encaminhadas pela Ouvidoria, e a Câmara de Conciliação e Mediação de Conflitos, que está realizando os cursos de formação de mediadores.
Supervisora voluntária de mediação da Unifesp, a advogada Carla Maria Zamith Boin Aguiar — cuja tese de doutorado na Faculdade de Direito da USP abordou a justiça restaurativa no contexto universitário — ressaltou que as violências podem se dar num modus operandi normalizado, fazendo com que as pessoas sequer se deem conta de que determinadas situações são ofensivas.
De acordo com a advogada, sair do entendimento da punição para o da responsabilização, base da mediação e da justiça restaurativa, “demanda uma mudança muito grande em direção à governamentalidade restaurativa, que é poder envolver e entender todas as pessoas que fazem parte do processo”.
“Punição deve ser mecanismo de reflexão sobre as práticas das relações interpessoais”, diz docente da FD
A vice-presidenta da Adusp, professora Michele Schultz Ramos, participou do debate na sessão de perguntas. Saudou a iniciativa da FFLCH e salientou que, na visão da Adusp, “o documento é inemendável” e “parte de pressupostos muito diferentes daqueles que escutamos aqui vindos da Unicamp e da Unifesp”.
“A minuta também não menciona a diversidade. Há muitas ausências nesse documento. Não mencionar violências de gênero, racismo e as várias formas de violência que a gente enfrenta no ambiente universitário é um grande equívoco”, apontou.
O tema das chamadas justiças do diálogo, como a justiça restaurativa, foi apresentado pelo professor Antonio Rodrigues de Freitas Júnior, da FD. O docente ressaltou que não basta a instituição ter a legitimidade formal da produção da norma: é preciso pensar como se conquista a adesão da comunidade e como os valores subjacentes às normas são interiorizados pela(o)s destinatária(o)s.
“Para que punir? O que queremos com a punição? É importante pensar como fazer da punição mecanismo de educação, prevenção e sobretudo de reflexão sobre as nossas práticas de relações interpessoais no âmbito da universidade”, afirmou.
Também participaram do debate o diretor da FFLCH, professor Paulo Martins, e os professores Ricardo da Cunha Lima (FFLCH) e Guilherme de Almeida (FD).
Congregação da EACH oficia ao reitor para pedir suspensão do processo atual
Após reunião realizada em 14/4, a Congregação da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) encaminhou ofício ao reitor no qual propõe a suspensão do atual processo de discussão do Estatuto de Conformidade de Condutas e sua reabertura sob outras condições. “O colegiado considera ser necessário discutir a substituição do Regime Disciplinar vigente. Contudo, entende que o processo em curso deve ser suspenso agora e reaberto em novas e mais amplas bases”, diz o documento assinado pela diretora da EACH, professora Mônica Sanches Yassuda.
Naquela reunião, explica, foi aprovado apoio à manifestação elaborada pela Comissão de Defesa da Diversidade, Direitos Humanos e Democracia (CDDDHD) da EACH. “Este texto converge com as manifestações feitas pela comunidade da EACH em resposta à consulta elaborada pela representação da Congregação no Conselho Universitário”.
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