Reportagem publicada pelo Informativo Adusp em 16/4 ensejou a representação do promotor de justiça Sebastião Sérgio da Silveira, que coincidentemente é professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto e um dos instituidores da Fadep. Em ação civil aceita pela 2ª Vara da Fazenda Pública de Ribeirão Preto, o Ministério Público acusa a Fadep, seu ex-presidente Gustavo Assed (docente da FDRP) e dois secretários municipais de fraude e conluio na contratação sem licitação da fundação privada, por R$ 690 mil, para desenvolver projeto de reforma administrativa

O promotor de justiça Sebastião Sérgio da Silveira, da Promotoria de Fundações de Ribeirão Preto, é o autor da representação 43.0156.0002244/2021-2, datada de 18/4/2021, que deu início a uma investigação do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) sobre as circunstâncias de contratação da Fundação para Desenvolvimento do Ensino e Pesquisa em Direito (Fadep) pela Prefeitura de Ribeirão Preto, sem licitação, para desenvolver um projeto de reforma administrativa por R$ 690 mil.

A investigação resultou em ação civil pública ajuizada em 3/8/2021 pelo MP-SP contra a Fadep e seu então presidente — e docente da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP-USP) — Gustavo Assed Ferreira, bem como contra o secretário municipal Antonio Daas Abboud (Governo) e o então secretário municipal Demerval Prado Júnior (Fazenda), por suposta fraude e conluio no processo de contratação do projeto.

No curso da investigação, o MP-SP descobriu que uma segunda entidade privada, a Fundação Sada Assed, participou da fase preliminar do processo de aquisição de serviços aberto pela Prefeitura apenas com a intenção de simular concorrência, burlando as normas legais. Isso porque tanto Ferreira como Alessandro Hirata – também professor da FDRP (e atual secretário da recém criada Secretaria da Justiça de Ribeirão Preto), “consultor jurídico sênior” da Fadep, eram à época dirigentes de ambas as fundações.

A Fadep é uma entidade privada constituída e mantida por docentes da FDRP. Embora oficialmente não tenha fins lucrativos, a fundação desenvolve atividades altamente rentáveis, tais como cursos pagos e projetos de consultoria remunerados contratados por órgãos públicos. Desenvolvidas em convênio com a USP, tais atividades suscitam conflitos de interesses, pois vários docentes que detêm cargos de chefia na faculdade são, paralelamente, dirigentes da Fadep. É o caso de Ferreira, que chefia o Departamento de Direito Público da FDRP e é o atual diretor financeiro da Fadep — até abril, presidia a entidade privada.

O autor da representação que deu origem ao processo judicial, promotor Silveira, é também docente da FDRP. No entanto, sua atitude foi totalmente diferente do comportamento de seus colegas da faculdade no tocante ao conflito de interesses. Na representação que encaminhou internamente no MP-SP, ele recorda sua relação com a Fadep, entidade da qual foi um dos instituidores, na condição de professor da FDRP. Porém, sendo promotor de Fundações, portanto encarregado de fiscalizar essa entidade desde sua criação, ele assinala no documento que se declarou suspeito e portanto impedido de realizar a tarefa.

“Desde o pedido de instituição da Fadep [em 2016], manifestei meu impedimento e suspeição para a análise daquela postulação e da fiscalização subsequente, tendo em vista que, como professor da FDRP, assinei a ata de sua constituição e já integrei o seu conselho curador”, relata. “Hoje, recebendo jornal da Adusp, através de uma mensagem de WhatsApp, com notícia de contratação da fundação, sem licitação, entendi razoável registrar a matéria como representação, para apreciação do órgão competente do Ministério Público”.

Diz ainda na representação haver comunicado à Corregedoria Geral do MP-SP a situação de impedimento, “que foi protocolada hoje sob o nº 216.0142.0001461/2021”, e declinou assim “da atribuição de analisar os fatos consignados na matéria jornalística”, determinando ainda “a imediata remessa do procedimento ao meu substituto automático”. A investigação, portanto, ficou a cargo do promotor de justiça Carlos Cezar Barboza, que ao final do procedimento concluiu ter havido improbidade administrativa no caso e decidiu oferecer denúncia civil contra a Fadep e três dos envolvidos: Ferreira, Abboud e Prado Júnior.

Na ação civil pública que ajuizou, Barboza requer a decretação de nulidade do contrato firmado entre a Prefeitura de Ribeirão Preto e a Fadep; a condenação de Abboud, Ferreira e Prado Júnior “à reparação dos danos causados ao erário público”, no montante de R$ 690 mil, e “às demais sanções descritas no art. 12, III, da Lei 8.429/92” (perda de função pública, suspensão de direitos políticos e multa civil); a condenação da Fadep, “especificamente, na reparação dos danos causados ao erário público”, também no montante de R$ 690 mil reais, e “proibição de contratar com o Poder Público, assim como de receber incentivos fiscais ou creditícios, pelo período de cinco anos”.

Por fim, o promotor propõe na inicial “que se faculte a intervenção do Promotor de Justiça de Fundações desta Comarca de Ribeirão Preto, no momento oportuno”.

“Ficou nitidamente caracterizado procedimento fraudulento por parte da Fadep”, diz ação

Barboza principia a peça judicial contestando a dispensa de licitação, dada a existência de muitas outras organizações capazes, em tese, de oferecer os mesmos serviços que a Fadep. “Centenas de instituições brasileiras, incumbidas regimentalmente ou estatutariamente da pesquisa, do ensino e do desenvolvimento institucional possuem a expertise necessária para a elaboração de projetos para reformas administrativas, não se justificando, dessa forma, a dispensa de licitação”, de modo que “a dispensa de licitação contraria os princípios constitucionais da legalidade, da moralidade e da impessoalidade, que norteiam a lei de licitações”. Sustenta que a impropriedade da dispensa da licitação, por si só, “justificaria a decretação de nulidade de todo o processo de compra, bem como do contrato administrativo dele decorrente”.

A ação do MP-SP informa que a Prefeitura consultou três instituições para que apresentassem estimativas de preço dos serviços a serem contratados (o projeto de reforma): Fadep, Fundação Sada Assed e Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), que apresentaram, respectivamente, os orçamentos de R$ 690 mil, R$ 780 mil e R$ 1,182 milhão. Portanto, a Fadep apresentou o menor preço.

“Ocorreu que ficou nitidamente caracterizado procedimento fraudulento, com o objetivo de prejudicar o caráter competitivo do processo de compra, por parte da Fadep, representada pelo então presidente Gustavo Assed Ferreira, da Fundação Sada Assed e do corréu Antônio Daas Abboud”, diz a inicial. “Observa-se, a propósito, que por ocasião da apresentação da proposta e, ao depois, quando da contratação, a Fadep era presidida por Gustavo Assed Ferreira. Esse mesmo profissional firmou a proposta e representou a Fadep no instrumento da contratação. Por outro lado, a Fundação Sada Assed, instituição que nasceu no âmbito da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, inicialmente com o nome Fundação Odontológica de Assistência a Pacientes Especiais, tem como vice-presidente Gustavo Assed Ferreira, e como diretor financeiro Alessandro Hirata, que ao tempo da contratação era membro do conselho curador da Fadep, além de indicado na proposta dessa fundação como Consultor Jurídico”.

Ainda segundo Barboza, a despeito de a municipalidade, representada no processo de compras pelo secretárioAbboud, “haver consultado, inusitadamente, uma instituição criada por membros da Faculdade de Odontologia da USP, para oferecer orçamento a um serviço que se situa totalmente fora de sua expertise — uma reforma administrativa, ficou flagrantemente caracterizado o conluio entre as duas fundações, Fadep e Sada Assed, para prejudicar o caráter competitivo do processo de compra”.

A “combinação fraudulenta”, continua a peça judicial, “contou com a cumplicidade de Antônio Daas Abboud que, no mínimo, fez vista grossa para a ligação umbilical existente entre a Fadep e a Sada Assed”. Cita documento firmado pelo secretário de Governo no processo, o qual, com a finalidade de homologar a dispensa de licitação, declara que “não foi detectada qualquer relação entre as empresas utilizadas para a estimativa de preço de cada item da requisição supramencionada”.

Na verdade, conclui Barboza, “os elementos colhidos na investigação apontam que a escolha da Fadep, então presidida por Gustavo Assed Ferreira, para a realização do trabalho requisitado pelo Secretário de Governo precedeu a instauração do processo de compra, que representou apenas um mecanismo administrativo simulado e fraudulento, para chancelar a escolha da referida entidade” (destaques nossos).

O promotor questiona, igualmente, a própria qualificação da fundação privada dos docentes da FDRP para desenvolver o projeto contratado. “Observa-se, em primeiro lugar, pelos documentos juntados pela Fadep para comprovação de capacidade técnica, que a fundação jamais tivera prestado serviços ao Poder Executivo. Seus trabalhos sempre foram direcionados a Câmaras Municipais, e não necessariamente para a realização de reformas administrativas. Para com as Câmaras Municipais de municípios mais expressivos, como Piracicaba e Barretos, os serviços foram voltados para consultorias diversas. Os trabalhos de reforma administrativa noticiados foram prestados para legislativos de municípios continentes de pequena população: Olímpia (55.130 habitantes) e Cajobi (10.596 habitantes)”.

Baseando-se nas informações apresentadas pela própria Fadep ao MP-SP, aponta a fragilidade da suposta competência de sua equipe: “Ora, como reconhecer a capacidade técnica de uma entidade que jamais executou trabalhos voltados para o objeto da requisição do Secretário de Governo – reforma administrativa a [sic] Prefeituras Municipais, notadamente a se considerar a complexidade do trabalho de uma projeto dessa natureza a Município de expressão nacional, com população de 711.825 habitantes, que tem aproximadamente 8.500 servidores efetivos apenas na administração direta?”

O texto da ação judicial prossegue fazendo referência a um “rosário de ilegalidades”, agravado, porém, “na medida em que a Fadep sequer fez demonstração de capacidade técnica para a execução dos serviços, limitando-se a apresentar dois atestados de prestação de serviços de proporção infinitamente inferior ao objeto do contrato em exame, e alguns contratos, desacompanhados de atestados do contratante, também relacionados a trabalhos de pequeno porte, a se considerar a complexidade da apresentação de um projeto de reforma administrativa para um Município de expressão nacional como Ribeirão Preto”.

A qualificação técnica para prestar serviços à administração pública é exigência presente no artigo 27, II, da lei 8.666/93 (Lei de Licitações). “Outro requisito da contratação com dispensa de licitação, não comprovado no processo de compra, conforme sustentação anterior, é a inquestionável reputação ético profissional da contratada, mandamento emanado do artigo 24, XIII, da Lei de Licitações”. Segundo a ação, “a Fadep foi instituída em data recente, no início do ano de 2016, e embora agregue professores da Faculdade de Direito da USP, de Ribeirão Preto, ainda não construiu a reputação éticoprofissional que pudesse habilitá-la para a realização de trabalho de tamanha complexidade, como a elaboração de projeto de reforma administrativa para o Município de Ribeirão Preto”.

Na sequência, argumenta que a conduta dos corréus caracteriza “violação aos princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade”, previstos no artigo 37 da Constituição Federal, dessa forma “caracterizando ato de improbidade”, nos termos do artigo 10, inciso VIII, da lei 8.429/1992, que preceitua: “Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no artigo 1º desta Lei”, e notadamente: “VIII- frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias, com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente”.

O fato de Ferreira “não ser considerado agente público no caso em tela, mas presidente da fundação de direito privado que contratou com a administração, não o exime das penas cominadas à prática prevista no artigo 10, caput e inciso VIII”, diz a ação, uma vez que o artigo 3º da mesma lei determina que suas disposições “são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática de ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta”.

“Ação carece de fundamentação”, alega professor Alessandro Hirata

Procurado pelo Informativo Adusp para se manifestar sobre a ação judicial em curso, o professor Ferreira não respondeu às questões que lhe foram encaminhadas. Também procurada para que comentasse o caso, a diretora da FDRP, professora Mônica Herman Caggiano, não se manifestou até o fechamento desta matéria.

Igualmente consultado pelo Informativo Adusp, o professor Alessandro Hirata, chefe suplente do Departamento de Filosofia do Direito da FDRP, declarou que considera improcedente o processo que tramita na 2ª Vara da Fazenda Pública de Ribeirão Preto: “A ação movida pelo MP carece de fundamentação, uma vez que o processo de dispensa de licitação ocorreu regularmente, além da execução total do contrato”.

Atendendo ao projeto apresentado pela Fadep, a Prefeitura de Ribeirão Preto criou a Secretaria de Justiça e o prefeito Duarte Nogueira Jr. (PSDB) nomeou Hirata como secretário da nova pasta. Perguntamos ao docente se essa situação não envolve um conflito de natureza ética, uma vez que ele atuou intensamente no projeto, como “consultor jurídico sênior” da fundação privada, conforme indicado nas atas das reuniões de trabalho entre a Prefeitura e a Fadep.

“Não há qualquer tipo de conflito ético, uma vez que ocupo cargo de livre nomeação e posterior ao projeto de reforma administrativa”, respondeu simplesmente Hirata.

Tendo em vista que Hirata e Ferreira exerciam, concomitantemente, cargos de direção nas fundações privadas Fadep e Sada Assed, o Informativo Adusp indagou: “Sendo professor de Direito, como o Sr. avalia a participação de ambas as entidades privadas, com os mesmos diretores, num mesmo processo licitatório?”

A resposta de Hirata: “Trata-se de um processo de dispensa de licitação. Na Fadep eu não participei da diretoria (fui do conselho curador até fevereiro de 2021)”.

Por intermédio de sua Assessoria de Imprensa, a Reitoria da USP foi procurada pelo Informativo Adusp para que comentasse o caso. Afinal de contas, quase todas as atividades da Fadep são realizadas mediante convênio com a FDRP e com a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU), o que parece não ter acontecido no contrato firmado com a Prefeitura de Ribeirão Preto. De qualquer modo, dada a repercussão do caso, a FDRP e a USP estão sendo expostas publicamente.

“A USP não é parte na ação mencionada, nem é parte no convênio questionado, de modo que não cabe manifestação da instituição a respeito”, limitou-se a declarar a Reitoria.

EXPRESSO ADUSP


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