Privatização
Professores da Esalq oferecem cursos que arrecadam mais de R$ 1 milhão cada
Coordenador do programa Solloagro afirma que Fealq é responsável por repasses à USP, mas fundação privada “de apoio” nega envolvimento
Na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), a exemplo do que ocorre em algumas outras unidades da USP, o oferecimento de cursos pagos tornou-se rotina, mediante utilização da estrutura e dos recursos humanos da universidade sem a devida transparência. Como em outros campi, em Piracicaba espalham-se banners e outras propagandas que anunciam certificados em diversas especializações com “selo USP”, para aqueles que podem arcar com o “investimento”, eufemismo que designa o valor a ser pago pelos interessados.
Há décadas, cursos livres e de pós-graduação lato sensu são ofertados pela Fundação de Estudos Agrários Luiz de Queiroz (Fealq), uma fundação privada autodeclarada “de apoio” à USP, dirigida por docentes da Esalq. Hoje, porém, o lucrativo mercado de cursos pagos — que fere a determinação do inciso IV do artigo 206 da Constituição Federal, que proíbe a cobrança nos estabelecimentos públicos de ensino — é compartilhado com outras entidades e “programas”, como o Curso de Especialização em Gerenciamento Ambiental (Cegea) e o SolloAgro. Alguns destes empreendimentos são tão bem sucedidos, do ponto de vista mercadológico, que hoje possuem docentes próprios, estranhos à universidade.
Destaca-se, no Departamento de Ciência do Solo da Esalq, o SolloAgro, um “Programa de Educação Continuada em Agricultura Sustentável”, cuja particularidade é oferecer cursos em outras cidades e Estados. Assim, para exemplificar, o curso de especialização em manejo do solo oferecido em Rondonópolis (MT) para 35 a 60 pessoas custa R$ 19.800 por aluno, parcelado em até 24 mensalidades. Potencialmente, portanto, desde que preencha todas as vagas, o curso pode arrecadar, ao longo de dois anos, o montante de R$ 1,188 milhão, brutos.
Três cursos similares estão sendo oferecidos pela SolloAgro com início em agosto de 2018 nas cidades de Assis (SP), São Gotardo (MG) e Maracaju (MS). Além dos cursos presenciais, o SolloAgro promove também cursos à distância. Foram ofertadas 200 vagas no curso de especialização à distância em solos e nutrição de plantas, que custa a cada aluno o “investimento” de R$ 12.540 (em 21 parcelas de R$ 590). Portanto, neste último caso, se apenas metade das vagas for preenchida, a arrecadação já será de R$ 1,254 milhão.
A maior parte dos recursos gerados, 90%, é embolsada pelos docentes que organizam e ministram os cursos, cabendo à USP não mais que 10% do valor arrecadado. O coordenador do SolloAgro, professor Luis Reynaldo Ferraciú Alleoni, declarou ao Informativo Adusp que “todas as atividades que envolvem recursos externos são geridas pela Fealq mediante convênio com a USP”, e que os cursos de especialização “são regidos pelas normas da USP que preveem o recolhimento de taxas para a universidade, para a unidade, para os departamentos e para a fundação”.
A informação de que a Fealq administra os recursos arrecadados pelo SolloAgro foi reiterada pelo professor Alleoni ao explicar os trâmites percorridos internamente: “Toda a sistemática de aprovação do curso obedece o devido processo legal, desde a aprovação no Conselho do Departamento até as demais instâncias da USP. Os recursos advindos das mensalidades dos cursos são geridos pela fundação que presta contas à Universidade”. Em outro e-mail, o coordenador reafirmou: “Sim, a fundação a que eu me referi é a Fealq, que administra os recursos dos cursos pagos e repassa as devidas taxas para a Reitoria da USP e para a Esalq”.
Porém, de modo intrigante, a fundação afirmou ao Informativo Adusp desconhecer o SolloAgro. Da mesma maneira, o chefe do Departamento de Ciência do Solo, professor Pablo Vidal Torrado, que também é um dos docentes que ministram aulas nos cursos, contradisse as informações repassadas por Alleoni. “O Solloagro é um programa de educação continuada do Departamento de Ciência do Solo e não tem natureza jurídica. Por isso, não tem nenhuma relação com a fundação”, respondeu o professor Torrado quando questionado pelo Informativo Adusp sobre a relação entre SolloAgro e Fealq.
Não está claro, então, se o SolloAgro efetivamente presta contas e providencia os devidos repasses à Esalq e à USP, e como o faz. Mesmo porque, quando questionados sobre a prestação de contas, tanto Alleoni quanto Torrado recusaram-se a responder. Segundo Torrado, “as informações adicionais que você [este repórter] pede (cópia de atas, valores, prestação de contas etc) são mais próprias de um processo administrativo interno da Universidade. Sugiro [a] você encaminhar esse pedido à Direção da Esalq”.
Evasivo, diretor da Esalq não informa sobre valores repassados
Por sua vez, o diretor da Esalq e coordenador da Coordenadoria de Administração Geral (Codage), professor Luiz Gustavo Nussio, também foi evasivo e não respondeu aos pedidos do Informativo Adusp de cópias das prestações de contas. Questionado sobre qual foi o valor repassado à Esalq em 2017 e 2018 pelo SolloAgro e sobre os motivos pelos quais a prestação de contas do programa não está disponível de forma transparente, Nussio limitou-se a indicar as normas já conhecidas que regem os cursos pagos: “Todos os cursos de extensão, inclusive o SolloAgro, seguem os trâmites de acordo com o Regimento da USP, sendo atualmente: (i) 5% para Fuppeceu; (ii) 10% para a Fundação de Apoio; (iii) 5% Departamento e Diretoria e (iv) 5% para a Reitoria”.
Fuppeceu é a sigla para Fundo Único de Promoção à Pesquisa, à Educação, à Cultura e à Extensão Universitária da Universidade de São Paulo, criado pela Resolução 5.427, de 12/12/2007, na gestão Suely Vilela. No entanto, a informação do coordenador Nussio é errônea, à luz do que dispõe a Resolução 7.290, de 14/12/2016 (que revogou a 5.427), porque a USP recolhe apenas 10% da receita bruta dos cursos (e não 15%) e a cota da Reitoria é destinada ao Fuppeceu: “Artigo 3º – Sobre os cursos de extensão, regularmente oferecidos, nos termos da regulamentação própria, a taxa será calculada à razão de 10% (dez por cento) sobre a receita bruta arrecadada no curso. Artigo 4º – Sobre as atividades de assessoria realizadas por docentes em RDIDP credenciados, a taxa será calculada à razão de 10% (dez por cento) sobre o valor do serviço declarado pelo docente. Artigo 5º – Os valores arrecadados na forma dos artigos 2º a 4º deverão ser repartidos entre a Reitoria e a Unidade, em partes iguais. Parágrafo único – A parcela dos valores que couber à Reitoria deverá ser recolhida ao Fundo Único de Promoção à Pesquisa, à Educação, à Cultura e à Extensão Universitária da Universidade de São Paulo (Fuppeceu-USP)”.
Portanto, se aparentemente a própria Codage, a quem coube, segundo a Resolução 7.290, artigo 6º, expedir “as instruções administrativas necessárias a efetivar as disposições desta Resolução”, está mal informada sobre as normas relativas aos recolhimentos obrigatórios, não surpreende que as informações financeiras oriundas dos cursos da Esalq, entre os quais aqueles organizados pelo SolloAgro, não estejam disponíveis para consulta pública.
A contradição no papel atribuído à Fealq reforça a obscuridade, uma vez que enquanto o coordenador do Solloagro alega que a fundação é a responsável pela gestão dos recursos financeiros do “programa”, tal informação é negada pela própria Fealq e pelo chefe do Departamento de Ciência do Solo, embora a logomarca da fundação privada esteja presente no site do Solloagro, como “apoio”.
É relevante apontar que a obscuridade é a regra, e não a exceção, no que diz respeito aos recursos auferidos por cursos pagos oferecidos na USP, promovidos por fundações privadas ditas “de apoio” e por outros grupos (como o Solloagro). O discurso-padrão de que os cursos pagos são uma modalidade da extensão universitária, ou seja, pertenceriam ao tripé ensino-pesquisa-extensão que sustenta o funcionamento das universidades públicas, omite a absoluta falta de transparência no tocante ao recursos arrecadados por eles. Em 2014, a “indústria de cursos pagos” arrecadou mais de R$ 87 milhões na USP.
O Informativo Adusp indagou aos professores Alleoni e Torrado se a realização de cursos do SolloAgro em outras cidades e Estados não prejudicaria o exercício da docência e da pesquisa no Departamento de Ciências do Solo da Esalq. De acordo com o professor Torrado, os cursos são ministrados no fim de semana e com frequência variável, o que não prejudicaria as atividades rotineiras dos docentes. Segundo Alleoni, os docentes “também são devidamente autorizados pelos conselhos de departamento e pela CERT para desenvolverem estas atividades”.
A Comissão Especial de Regimes de Trabalho (CERT) confirmou a informação do coordenador de que todos os professores participantes do SolloAgro estão credenciados para realizarem atividades simultâneas. Esta benevolência da CERT com a dedicação a cursos pagos chama atenção, na medida em que são de amplo conhecimento casos em que a CERT pune professores em estágio probatório com rica experiência em extensão e que, mesmo assim, são taxados como “improdutivos”.
Confira, a seguir, a íntegra das primeiras respostas oferecidas pelos professores Alleoni e Torrado ao Informativo Adusp. Alleoni foi questionado sobre a relação entre SolloAgro e Fealq, o acesso transparente aos rendimentos dos cursos, o valor repassado aos docentes, a conciliação entre as viagens dos docentes e a dedicação integral ao ensino e a pesquisa. Perguntas similares foram feitas a Torrado, com a adição de questões sobre os repasses do SolloAgro ao Departamento de Ciência do Solo e os motivos pelos quais os docentes são autorizados a lecionar nos cursos pagos.
Luis Reynaldo Ferracciú Alleoni, coordenador do curso:
“A Universidade de São Paulo está assentada no tripé ensino, pesquisa e extensão. O Regimento da USP prevê que professores devidamente autorizados pela Comissão Especial de Regime de Trabalho da USP (CERT) possam dedicar parte do seu tempo em atividades de extensão pagas. Esta autorização só é dada para professores que cumprem índices de pesquisa, ensino e orientação na graduação e na pós-graduação, além de eventuais atividades administrativas.
O SolloAgro é um Programa de Educação Continuada do Departamento de Ciência do Solo da Esalq e, como tal, não tem personalidade jurídica.
Ele visa a levar conhecimento técnico e científico da Esalq para profissionais ligados ao setor silvoagropastoril e empresas rurais.
Sou coordenador do programa e estou devidamente credenciado pela CERT. Os docentes dos cursos promovidos pelo SolloAgro também são devidamente autorizados pelos conselhos de departamento e pela CERT para desenvolverem estas atividades.
Os cursos são oferecidos para um público predominantemente morador de regiões da fronteira agrícola brasileira, que não tem condições de deixar suas atividades e vir para a universidade buscar conhecimentos em período integral. Por esse motivo, os cursos são oferecidos aos finais de semana, onde estão localizados os principais polos de produção de alimentos de nosso país.
Todas as atividades que envolvem recursos externos são geridas pela Fealq mediante convênio com a USP.
Os cursos de Especialização são regidos pelas normas da USP que preveem o recolhimento de taxas para a universidade, para a unidade, para os departamentos e para a Fundação.
Os rendimentos das diversas edições dos cursos de extensão universitária promovidos pelo SolloAgro são variáveis, pois abrangem todos os custos envolvidos numa atividade externa ao Campus, tais como transporte terrestre e passagens de avião, hospedagem, refeições, material didático, pagamento de professores, pessoal de apoio, material de laboratório, aluguel de sala de aula e de recursos audiovisuais, lanches aos alunos etc.
Toda a sistemática de aprovação do curso obedece o devido processo legal, desde a aprovação no Conselho do Departamento até as demais instâncias da USP. Os recursos advindos das mensalidades dos cursos são geridos pela Fundação que presta contas à Universidade”.
Pablo Vidal Torrado, chefe do Departamento:
“O Conselho do Departamento de Ciência do Solo da ESALQ (LSO) autoriza apenas os professores credenciados pela CERT para esta finalidade, seguindo as normas da USP que permitem essa modalidade de atividade. Todos esses docentes são muito produtivos, tanto que o nosso Programa de Pós-Graduação em Solos e Nutrição de Plantas é o único no Brasil com nota máxima (7) na Capes há 9 anos. Os cursos de especialização em Manejo do Solo nos têm dado uma oportunidade única de interagir (e aprender) muito com os agrônomos que estão espalhados pelo Brasil, muitos deles ex-alunos da Esalq-USP.
A Universidade de São Paulo não é financiada unicamente com recursos do Estado de São Paulo. Ela é também financiada por recursos públicos federais. Capes e CNPq financiam a pós-graduação, CNPq e Finep financiam a pesquisa. A USP é a maior e mais importante Universidade do Brasil, seu espectro de ação atinge outros Estados da União também. A Esalq-USP é conhecida nacionalmente e internacionalmente e a presença de seus docentes em atividades de pesquisa (os pesquisadores da USP pesquisam em todo o território brasileiro e no exterior), de ensino e de extensão, categoria na qual se inserem os cursos de extensão universitária dentro e fora do Estado, é uma das maneiras de integração nacional que esta Universidade exerce, e para tanto utiliza recursos externos.
Toda e qualquer atividade relacionada a cursos de extensão tem que ser obrigatoriamente aprovada pelo Conselho do Departamento e demais órgãos colegiados. Você poderá consultar o regulamento da Esalq e o Regimento da USP. É impossível um curso de especialização não ter sido aprovado nos diferentes órgãos colegiados.
As porcentagens dos valores recolhidos para USP, Esalq, Departamento e fundação conveniada são determinadas por portaria da USP. Os recursos destinados ao Departamento são aplicados em custeio das atividades de ensino e manutenção da infraestrutura.
Os cursos são do Departamento de Ciência do Solo e são ministrados nos fins de semana, com frequência de aulas bastante variável; os professores participam em um ou dois fins de semanas no máximo em cursos que duram dois anos em geral. Todos os docentes estão se valendo dessa experiência não só para transmitir seus conhecimentos como para conhecer e ouvir dos alunos, todos profissionais em atividade em suas regiões, sobre a realidade da agricultura nacional nas áreas onde está a maior demanda pelos profissionais que formamos. Isto está refletindo nos conteúdos das aulas de graduação e pós-graduação e também na formulação dos novos projetos de pesquisa, que vẽm sendo direcionados a problemas nacionais e não só locais.
A experiência em outros Estados do Brasil tem dado a oportunidade aos nossos docentes de conhecerem não só novas oportunidades de pesquisa como também as grandes perguntas de nossa agricultura e meio ambiente que requerem respostas da Academia. Não há desvirtuamento de contrato, há sim um ganho profissional excepcional com recursos externos que a USP não pode nos proporcionar.
O Solloagro é um programa de educação continuada do Departamento de Ciência do Solo e não tem natureza jurídica. Por isso, não tem nenhuma relação com a Fundação”.
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