Democracia na USP
Relatório da McKinsey, que custou R$ 5 milhões, propõe à USP “foco em unidades-chave”, expandir oferta de cursos pagos e cobrar por “dormitórios estudantis”
Documento confidencial exibido à Justiça inclui várias medidas que convergem com a agenda política de Zago e Vahan
O documento “Criando as bases para a USP do Futuro – Relatório Final”, datado de 27/10/2016, supostamente o único produto elaborado pela consultoria internacional McKinsey&Company como resultado dos acordos firmados por ela com a Reitoria da USP e a “organização social” Comunitas, sem licitação, escancara uma série de paralelos entre as propostas da McKinsey e a agenda política das gestões de Marco Antonio Zago e de Vahan Agopyan.
Apesar de a Reitoria ter afirmado, em fevereiro de 2018, que o projeto “USP do Futuro” resultou em apenas três projetos em desenvolvimento na universidade, o documento propõe medidas que chegaram a ser implantadas total ou parcialmente, tais como a desvinculação dos hospitais universitários, a criação de um novo sistema de avaliação docente e a definição dos Parâmetros de Sustentabilidade Econômico-Financeira.
A Adusp teve acesso ao documento após decisão do juiz Luis Fernando Camargo de Barros Vidal, da 4ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça (TJ-SP), que mandou a Reitoria divulgar o termo de encerramento dos instrumentos contratuais firmados com Comunitas e McKinsey, depois que a USP recorreu ao tribunal contra busca e apreensão de documentos determinada pela 3a Vara da Fazenda Pública.
Segundo o documento “Minuta de Termo de Recebimento de Doação, com Encerramento do Acordo de Cooperação e Contrato de Prestação de Serviços de Consultoria”, celebrado por USP, McKinsey e Comunitas no dia 24/4 de 2018, o “Relatório Final” diz respeito exclusivamente à primeira e única fase do projeto “USP do Futuro”, denominada “Aspirar e avaliar”. Esta fase precederia outras três etapas, supostamente canceladas: “Arquitetar: estratégia e planejamento”, “Arquitetar: captação de recursos e gestão administrativa” e “Desenhar, validar e priorizar iniciativas”.
Entretanto, o formato do documento levanta suspeitas, a começar pela tarja de “confidencial”. Embora o serviço de consultoria tenha custado, oficialmente, R$ 5 milhões (pagos por um grupo de empresários e não pela USP), o arquivo enviado ao TJ-SP e à Adusp é uma apresentação em transparências convertida no formato PDF, não aparentando ser um relatório nos moldes convencionais. Ainda assim, a análise desta apresentação possibilita um vislumbre do conteúdo político desta obscura consultoria.
O “Relatório Final” da McKinsey se dedica a realizar um “diagnóstico aprofundado” da situação da USP em quatro eixos: excelência acadêmica, governança, melhoria operacional e geração de receitas. Além disso, o “escopo” da fase correspondente (“Aspirar e Avaliar”) envolve duas outras dimensões: “Entendimento das múltiplas perspectivas dos atores envolvidos” e “Mapeamento preliminar do escopo de solução”. Portanto, após breves diagnósticos, o documento apresenta possíveis soluções para cada tópico. Em várias dessas sugestões, identificamos convergências com medidas que a Reitoria adotou em algum momento na gestão M.A.Zago-V. Agopyan (2014-2017).
Excelência acadêmica com viés produtivista
O viés produtivista e empresarial do documento é declarado desde o início do relatório por meio de uma lista de “aspirações” atribuídas à USP, a primeira das quais seria “ser reconhecida como uma das melhores Universidades do mundo, posicionando-se entre as 50 melhores globais e entre as 25 melhores em 5 áreas de excelência”, conforme os rankings internacionais. Outras “aspirações” ou objetivos dizem respeito à internacionalização da universidade: “Atrair e reter os melhores professores da América Latina e do mundo”, “Ser um ponto de conexão do conhecimento do Brasil com o mundo, ampliando parcerias com principais centros de pesquisa globais e intercâmbio de alunos e professores”. E dois outros conceitualmente opostos: de um lado, “Ser uma referência em pesquisa por meio de um modelo sustentável e impulsionado por parcerias público-privadas”; de outro lado, “Atrair e reter os melhores talentos do Brasil, cumprindo sua função de instituição pública de incluir alunos de todas as esferas da sociedade” (qualquer semelhança com o discurso do reitor Vahan em defesa das cotas será mera coincidência?), tudo isso na p. 4.
Nessa seara, a equipe da McKinsey utilizou como fontes exclusivas os rankings internacionais Times Higher Education, CWTS Leiden e QS Universities, deixando evidente a superficialidade da análise. O relatório avalia que “há espaço para a USP avançar nos principais drivers [parâmetros] de excelência acadêmica”, quando comparada às melhores do mundo: “Embora seja a maior da América Latina, falta internacionalização da universidade”, e, para situar-se entre as 50 melhores, “precisa evoluir nos pilares de ensino e pesquisa” (p. 9). Critica o que considera um baixo número de citações acadêmicas das pesquisas produzidas pela USP: “está em 11o em número de publicações, mas só aparece no 89o lugar em quantidade de citações” (p. 10).
O “Relatório Final” questiona o sistema de pós-graduação da universidade: “Apesar de a USP ter proporcionalmente muitos doutores, seu corpo estudantil carece de pós-doutores, uma das principais fontes de pesquisa”. A afirmação é sustentada por uma fonte anônima, misteriosamente identificada como “Liderança da USP” (possivelmente uma das 40 pessoas entrevistadas pela consultoria para fins do projeto): “Está faltando pós-doutorado na USP e há excesso de mestrados e doutorados” (p. 11).
A qualidade da produção acadêmica da universidade é sempre comparada, no documento da McKinsey, à de universidades estrangeiras de elite, como Stanford e Harvard, desconsiderando o contexto e a formação histórica das instituições de ensino superior brasileiro. Nenhuma outra universidade brasileira, pública ou privada, é comparada à USP no relatório.
O financiamento da pesquisa científica também é objeto-chave deste tópico no relatório. O fato de que o financiamento da USP provém quase totalmente de instituições públicas (Fapesp, CNPq e Capes), ao passo que o setor privado “tem uma participação relativamente pequena”, é apontado como um problema, pois “em outras universidades há maior diversificação” (p. 13).
É com base nesta crítica que a McKinsey apresenta o Massachusetts Institut of Technology (MIT) e a Universidade de Boston como exemplos de excelência acadêmica, sem esconder suas intenções privatizantes. “Parte do segredo” (sic!) para um laboratório do MIT se tornar um dos “maiores celeiros de inovação do mundo”, propagandeia o “Relatório Final”, estaria “no modelo de financiamento e na atração de talentos, e o resultado tem gerado diversos produtos inovadores”. O financiamento dos laboratórios “provém primariamente do setor privado”. Como sinal de sucesso, o documento estampa na mesma página as logomarcas de algumas dos grandes grupos empresariais envolvidos: Rede Globo, Colgate, Google, Unilever, Coca-Cola… “Em 10 anos, a Universidade de Boston avançou de 52º para 35º no ranking de universidades por meio de parcerias público-privadas”, afirma o slide seguinte (p. 14 e 15).
Aqui cabe destacar a criação, durante a gestão M. A. Zago-V. Agopyan, do Centro de Inovação da USP, o “Inova USP”, que é assumidamente a implantação da proposta da McKinsey de montagem de “laboratórios com estruturas compartilhadas para pesquisas interdisciplinares de ponta, com financiamento público e privado” (p. 40).
Ainda no tema “excelência acadêmica”, a McKinsey até reconhece que o percentual de alunos da USP oriundos de escolas públicas precisa aumentar, para logo depois avisar que “as universidades mais bem colocadas nos rankings priorizam áreas de excelência e possuem outros cursos sem tanto destaque” e que “por meio do foco em algumas unidades-chave, a USP poderia avançar em temas nos quais já é referência”. Algumas destas “unidades-chave” (na verdade, em alguns casos, cursos) foram selecionadas segundo suas posições no ranking QS World University: Odontologia, Ciências Agrárias, Engenharia de Minas, Arquitetura, Veterinária e Zootecnia. É com base nestas informações que o relatório propõe “critérios de priorização dos recursos entre unidades, reforçando áreas de excelência para tornar-se referência mundial” (p. 21).
Destaque-se, porém, que a política de “foco em unidades-chave” aparece desde cedo no “Relatório Final”, afinal de contas ela é vista pela McKinsey como um dos “elementos viabilizadores” dos “Princípios sugeridos para pautar a jornada para a USP do Futuro”, a saber: “Alocar recursos financeiros de acordo com a relevância das unidades, em linha com os objetivos de excelência acadêmica” (p. 5). Terá algo a ver com a situação que levou, por exemplo, a FFLCH a questionar no Co o subfinanciamento a que vem sendo submetida?
Também é totalmente enviesado o modo como a consultoria enxerga a extensão universitária. Uma das poucas referências ao assunto sugere que é necessário “expandir o leque dos cursos de extensão”, destacando que “há demanda reprimida por cursos de curta duração que tenham o selo USP”. No último tópico do relatório, “Geração de Receitas”, o documento deixa claro que esta proposta é alinhada aos interesses das fundações privadas, ditas “de apoio”, e não aos interesses sociais que deveriam nortear a extensão universitária.
O formato de contratação de docentes da USP, por concurso público, também é criticado por ser “passivo”. A sugestão da McKinsey é adotar um modelo “ativo”, “por meio de buscas no mercado dos melhores profissionais” (o que remete à famigerada entrevista do então reitor M.A. Zago à revista Veja, no início da gestão), na p. 18. Ainda em relação à carreira docente, propõe criar um “sistema de avaliação docente, estimulando a progressão horizontal”. Embora a aprovação da nova Comissão Permanente de Avaliação (“Nova CPA”), em novembro de 2016, não seja assumida pela Reitoria como um resultado da consultoria, é importante relembrar que sua formulação ocorreu em paralelo às tratativas sigilosas entre a USP e a empresa, iniciadas em 2015.
Algumas destas propostas produtivistas precedem até mesmo a realização da consultoria e a aprovação da “Nova CPA”, tendo sido formuladas inicialmente pelo Grupo de Trabalho-Atividade Docente (GT-AD, hoje extinto) em março de 2015. As semelhanças entre as propostas da McKinsey e a “Nova CPA” ficam ainda mais evidentes no próximo tópico do documento, “Governança”.
Governança proposta reforça centralização de poder
Como é de se esperar, este tópico não contempla a democratização da estrutura de poder da USP. Pelo contrário, a maior parte das sugestões possui um viés ainda mais centralizador. Até mesmo o Conselho Universitário (Co), que é formado majoritariamente por dirigentes de unidades alinhados à Reitoria, é criticado pela McKinsey por ser “difícil de mobilizar, além de ter pauta ampla e diversificada”! Como solução, o relatório sugere a criação de um comitê executivo, formado por alguns membros do Co, “para dar agilidade às decisões administrativas e estratégicas da Reitoria” (p. 42). (Certamente alguém se esqueceu de contar aos consultores que, desde J.G. Rodas, a instância homologatória de facto é a tal “reunião de dirigentes”.)
A McKinsey também destaca que falta “a participação da sociedade” na governança da USP, mas logo se descobre a que parcelas da sociedade ela se refere: “em especial setor produtivo e comunidade internacional”. A solução proposta pelo documento seria implementar o Conselho Consultivo, já previsto no Estatuto da USP, formado por “membros externos para se debruçar sobre temas-chave de alta complexidade e auxiliar diretamente o reitor”. Essa medida também foi levada a cabo na gestão anterior, devendo-se registrar que a composição do novo colegiado contempla, direta ou indiretamente, até mesmo alguns dos financiadores da consultoria (vide reportagem na Revista Adusp 61, p. 38).
Outras propostas do relatório para a governança da USP são mais similares às iniciativas da Reitoria. Uma delas, já citada, é “a definição de prioridades, seleção de indicadores-chave e estabelecimento de metas de médio e longo prazos, tanto para a universidade como um todo como para as unidades”. Esta sugestão remete ao eixo dorsal normativo da “Nova CPA”: a elaboração de “projetos acadêmicos” obrigatórios por parte de cada unidade, cada departamento e cada docente. Segundo a resolução 7.272/2016, que instituiu a “Nova CPA”, os projetos acadêmicos deverão conter: “definição dos objetivos e metas estratégicas para o período correspondente ao ciclo avaliativo”; “planejamento de atividades e metas para o período, com destaque para as iniciativas voltadas à melhoria da qualidade”; e “proposição dos indicadores para avaliação de desempenho das metas definidas, em harmonia com os indicadores gerais da Universidade”. A convergência entre a proposta da McKinsey e o projeto da Reitoria é, deste modo, mais do que patente.
Outra sugestão que, tudo indica, foi posta em prática na gestão reitoral anterior é a “Definição de parâmetros de sustentabilidade financeira”, um “desafio/oportunidade” para o qual a seguinte “recomendação preliminar” foi apresentada: “Institucionalizar a atuação da recém-criada Controladoria da USP na definição de parâmetros de sustentabilidade do orçamento e de responsabilidade fiscal, seguindo as diretrizes fiscais e a governança da Controladoria do Estado de São Paulo” (p. 42). Embora não suficientemente detalhada, tal proposta é, obviamente, muito similar aos “Parâmetros de Sustentabilidade Econômico-Financeira da USP”, verdadeiro pacote de austeridade fiscal que instituiu um teto para os gastos com pessoal e outras medidas de rigidez orçamentária.
Os “Parâmetros” foram aprovados em duas sessões do Co, em 7/3 e 11/4/2017, alguns meses após a suposta data do relatório. A sessão de 7/3 marcou negativamente a história da USP, pois foi realizada mediante o concurso de bárbaras cenas de repressão policial ao movimento em defesa da universidade pública, e uma sala do prédio da Reitoria tornou-se cárcere improvisado de manifestantes algemados.
“Melhoria Operacional” ataca a força de trabalho da USP
As semelhanças, não assumidas, entre as propostas do relatório e as ações reitorais são abundantes no tópico “Melhoria Operacional”. Neste assunto, a equipe da consultoria repete os mantras do então reitor que precedem a formulação do relatório. “Desde 2011 despesas da Universidade crescem em ritmo mais acelerado do que receitas” e “Comparadas aos gastos de universidades dos EUA e da Europa, despesas da USP com pessoal são muito maiores” são títulos de alguns dos slides que constituem o documento e também são as mesmas informações apresentadas pela cúpula da USP, desde 2014, para justificar sua política de austeridade financeira.
Diante do diagnóstico de suposto excesso de gastos com pessoal, a McKinsey propõe remédios já conhecidos: “Expandir o Plano (sic) de Demissão Voluntária (PIDV), com foco em áreas específicas a serem redimensionadas (p. ex.: restaurantes)”, Plano de Redução de Jornada de Trabalho (PRJT) e até “incentivar permanência de docentes com idade para se aposentar”. Esta última medida seria, segundo estimativas da consultoria, capaz de gerar uma economia de R$ 75 milhões ao ano para a USP, no longo prazo.
Mais grave ainda, e particularmente cruel, é a proposta a seguir, que se adotada abriria caminho à terceirização completa da força de trabalho não-docente da universidade: “Terceirizar atividades básicas ainda realizadas por funcionários próprios, garantindo captura de ganhos (sic) com restaurantes e com auxiliares de serviços básicos” (grifos nossos), bem como “Renegociar grandes contratos com terceirizadas (p.ex.: vigilância)” (p. 43).
Entre as soluções cogitadas pela McKinsey também está a antiga proposta de desvincular os hospitais universitários da USP, defendida ardentemente desde 2014 com a mesma justificativa leviana dada pela consultoria, de que “a USP tem elevado gasto com unidades não-fim”, desconsiderando que são hospitais-escola — e portanto “unidades-fim”, para usar terminologia análoga (p. 42). Não obstante a desvinculação do Hospital Universitário (HU), situado na Cidade Universitária do Butantã, na capital, ter sido barrada pela mobilização de moradores da região e da comunidade uspiana, M.A. Zago conseguiu apoio do Co para desvincular o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais de Bauru (HRAC) em 26/8/2014, muito antes, em tese, de ser aconselhado nesse sentido pela McKinsey.
“Disponibilizar para aluguel dormitórios estudantis”
É importante reiterar que a criação de um “fundo patrimonial”, ou endowment, para arrecadar “doações” de empresários é assumida pela Reitoria como uma das três propostas da McKinsey colocadas em prática desde a gestão M. A. Zago. Todavia, esta não foi a única proposta da consultoria para a “geração de receitas” da USP. Neste tópico, o viés privatista do relatório acentua-se, refletindo a tentativa de fugir ao fato óbvio de que o ensino superior público de qualidade depende fundamentalmente, quando não exclusivamente, de financiamento público.
Exemplar, assim, a desavergonhada proposta de “ampliar cursos de pós-graduação lato sensu e cursos de extensão pagos”, que segundo estimativas da consultoria poderia gerar mais de R$ 150 milhões por ano, a partir de 2030 (p. 47). Tal proposta, que se baseia na questionável constatação de que “há demanda reprimida por cursos de curta duração que tenham o selo USP”, acentua a convergência de visões e interesses entre a consultoria, a Reitoria e as dezenas de fundações privadas ditas “de apoio” que se utilizam indevidamente, mas de modo impune, da estrutura pública da USP.
Tendo em vista que na atualidade os cursos pagos oferecidos pela USP geram mais de R$ 80 milhões por ano, mas 90% desse montante são embolsados por seus organizadores privados (docentes e fundações privadas), cabe indagar: qual a mágica para a universidade embolsar livremente R$ 150 milhões anuais com cursos pagos? Talvez resida nesse pormenor a explicação para que constasse, da denúncia anônima recebida e divulgada pela Adusp, a afirmação de que o projeto desenvolvido com a McKinsey almejava uma “possível cobrança de mensalidades em cursos oferecidos pela USP”. Afirmação, no entanto, recebida com ironias pelo então reitor e por seu sucessor.
O relatório propõe outras medidas que exploram o diagnóstico de insuficiência financeira para ampliar e intensificar as relações entre a USP e a iniciativa privada. “Levantar recursos com o setor privado para oferecimento de bolsas de pesquisa e cátedras” poderia gerar R$ 20 milhões ao ano, calcula a consultoria, ao passo que ceder o uso do nome de “espaços físicos, em bolsas de pesquisa e em cátedras de ensino” poderia render mais R$ 40 milhões.
A parte final do documento é espantosa não apenas por bradar pela privatização do patrimônio público, mas também por sua ousadia. Na p. 47, duas propostas, em particular, saltam aos olhos devido ao seu teor absurdo: “implementar cobrança de estacionamento de veículos nos campi”, para gerar, em 2030!, R$ 65 milhões ao ano, e “disponibilizar para aluguel novos dormitórios estudantis”, esta capaz de expandir as receitas da USP em R$ 35 milhões ao ano!
Esta última proposta, sozinha, desmonta o (passageiro) discurso da consultoria de preocupação com o acesso à USP das parcelas mais pobres da sociedade. Num momento de luta cada vez mais aguda do movimento estudantil por medidas efetivas de permanência estudantil, em cenário de implantação de cotas sociais e étnicas na universidade, é possível entender o receio da Reitoria quanto à divulgação, suscitada pela insistência da Adusp, do “Relatório Final” e de propostas arrogantes, como aluguel de dormitórios estudantis e de estacionamentos. Talvez por cautela, uma nota de rodapé adverte, em várias páginas: “As recomendações são preliminares e não almejam assumir caráter de política pública”.
Relatório ou programa político?
É impossível não caracterizar como surpreendente o “Relatório Final” da McKinsey. Ele é ostensivamente empresarial, privatista e antidemocrático, mas estas são características esperadas de uma consultoria que tem no seu portfólio, por exemplo, os estudos preparatórios da privatização das telecomunicações (governo FHC) e do setor aeroportuário (governo Lula). O que realmente surpreende: a superficialidade e falta de originalidade do documento. É estarrecedor que este “Relatório Final”, composto por 48 slides, corresponda ao produto final de um serviço de consultoria de R$ 5 milhões, prestado por uma gigante do setor.
Ao encerrar sua leitura, não há como evitar a conclusão de que a Reitoria continua a reter parte dos documentos resultantes de seu acordo com McKinsey e Comunitas. Seria esse “Relatório Final” apenas uma apresentação baseada no verdadeiro relatório, mantido em segredo para não revelar detalhes politicamente comprometedores? Onde está, por exemplo, a transcrição das 40 entrevistas que teriam sido realizadas com “lideranças” e outros atores da comunidade?
A falta de originalidade também chama a atenção. Suas diversas propostas não são novidade para quem está familiarizado com o discurso político da alta burocracia da USP, reiterado perenemente pela grande mídia. A defesa da avaliação docente com objetivos produtivistas não é nova, tampouco o incentivo às fundações privadas. O endowment é um velho fetiche da elite uspiana, assim como a terceirização das “atividades-meio” da universidade. Desvinculação dos hospitais universitários, medidas de contenção de gastos apoiadas em discursos alarmistas sobre a “crise” são, como já mencionado, propostas que parecem preceder as tratativas com a McKinsey: foram bandeiras declaradas da gestão M.A. Zago-V. Agopyan desde 2014.
Uma hipótese a discutir é que o acordo firmado com McKinsey e Comunitas tivesse o propósito de compilar e dar respaldo a antigas ideias, há muito presentes nas discussões internas à burocracia universitária e que seriam, ademais, “atualizadas” por setores do empresariado dispostos a ampliar sua influência sobre uma das maiores universidades do Brasil e da América Latina.
Relembrando, a consultoria prestada pela McKinsey no valor de R$ 5 milhões foi paga pela “organização social” Comunitas, mas esses recursos foram cobertos por um grupo de empresários: Pedro Passos (Natura), Pedro Wongtschowski (Ultra), Roberto Setúbal (Itaú), Rubens Ometto (Cosan), Ana Maria Diniz (Península e Centro de Liderança Pública) e Beto Sicupira (Anheuser-Busch Inbev e 3GCapital, um dos homens mais ricos do mundo). O interesse destes megaempresários em financiar o projeto “USP do Futuro” (nome fantasia criado às pressas pelo reitor M.A. Zago) certamente não é filantrópico, buscando aproximar ainda mais a USP do setor privado, ou mesmo promover sua “captura”, para recorrer ao vocabulário da McKinsey.
Mas qual seria o interesse da Reitoria em receber um relatório recheado de ideias requentadas? Na linha da hipótese levantada dois parágrafos acima, seria reunir em um único projeto, “USP do Futuro”, as ideias compartilhadas pelo empresariado e por integrantes da alta burocracia da universidade, que foram entrevistados pela McKinsey para o “diagnóstico” e nomeados como “lideranças da USP”. O real objetivo dessa operação seria forjar uma espécie de programa político para a USP, que seria apresentado pela Reitoria no início do último ano do mandato de M.A. Zago (2017) com o respaldo do “selo” McKinsey, conceituada empresa internacional.
A denúncia noticiada pela Adusp, entretanto, possivelmente frustrou a criação desta peça de propaganda. A Reitoria foi posta na defensiva e precisou dar explicações “a conta-gotas”. O acordo com a McKinsey tornou-se um transtorno e um símbolo dos métodos nebulosos de M.A. Zago e V. Agopyan. Como demonstram os lances mais recentes da ação judicial vitoriosa da Adusp contra a Reitoria (baseada na Lei de Acesso à Informação), a necessidade de exibir documentos que ou foram omitidos, ou deveriam existir mas não existem, continuará sendo uma fonte de constrangimentos, agora para Vahan.
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