Desvinculação HU/HRAC
No debate de 18/9, equipe do HU e docentes contestam relatório que fundamenta a proposta de desvinculação
Foto: Daniel Garcia
Sebastião dos Santos, autor, insiste em custo de R$ 1,5 milhão por leito/ano, sem convencer. Pinhata Otoch acusa a Reitoria de precipitação e leviandade
O debate “A desvinculação do HU”, organizado pela Comissão de Mobilização da Adusp e realizado em 18/9 no auditório da Geografia, reuniu o professor José Sebastião dos Santos, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), autor do relatório utilizado pela Reitoria para subsidiar a proposta de desvinculação do Hospital Universitário e do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais de Bauru (HRAC), e o professor José Pinhata Otoch, diretor médico do HU.
Mediado pelo professor Ciro Correia, presidente da Adusp, o debate atraiu muitos profissionais do hospital, bem como docentes de diversas unidades da USP. Houve vinte intervenções da plateia, todas respondidas ou comentadas pelos debatedores, em especial Sebastião dos Santos, bastante questionado.
Na sua apresentação inicial, o professor da FMRP expôs no telão seu relatório, segundo o qual o HU apresenta custo de R$ 1,5 milhão por leito por ano, quase o dobro do custo médio do leito em hospitais de média complexidade. “A relação custo-efetividade está desequilibrada”, destacou. Ele ressalvou, contudo, que a seu ver tanto HU como HRAC são hospitais que “servem bem” às atividades de ensino, pesquisa e extensão.
“Nunca falei em desvinculação, sou uspiano como qualquer um, não devemos abrir mão do nosso patrimônio. Agora, devemos pedir mais dinheiro do governo, na linha do SUS”, alegou. “Minha recomendação foi a vinculação do HU ao Hospital das Clínicas [da FM], que já é uma autarquia. Estou pedindo para esses hospitais serem o que a USP é: uma autarquia”.
Sebastião dos Santos, que foi secretário da Saúde de Ribeirão Preto e define-se como gestor, explicou que atua principalmente como cirurgião do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, onde “a gente aprendeu a cobrar do SUS”. Ele admitiu que a economia que a USP faria, caso abra mão da gestão dos hospitais, seria pouco expressiva: “Vocês estão certos, [a eventual desvinculação] não tem impacto econômico. Não tem mesmo. Mas tem impacto estruturante. A USP não é o Estado”.
Crueldade
O professor Pinhata Otoch observou que o tema foi colocado em discussão num momento de crise, dando ensejo a interpretações errôneas. “Da primeira vez em que eu ouvi sua exposição eu fiquei muito bravo com você. Você apresentou de forma um pouco diferente da que apresentou hoje. Saí indignado”, desabafou. “Esta situação está expondo o Hospital Universitário para a universidade de uma forma cruel. O HU foi colocado como um dos motivos da crise da universidade. Foi a visão que me passou daquela apresentação”.
Seria preciso discutir a função do HU fora do momento de crise, defendeu, dizendo concordar com Sebastião dos Santos em “muitas coisas”, mas discordar “bastante” de outras. “Quando a gente começa a discutir o SUS [Sistema Único de Saúde], seria importante discutir dentro da perspectiva do que o SUS oferece para a população. Estou extremamente vinculado à prestação de serviço, igual a você. Tenho uma visão do SUS hoje bastante diferente da sua”.
Na opinião de Pinhata Otoch, o HU é visto como hospital, “mas ele não é um hospital, é uma plataforma de ensino da Universidade”. “Temos um serviço de farmácia que não existe em nenhum outro lugar, é referência; a enfermagem tem um espaço que não tem em outros hospitais”, exemplificou. “O HU é uma experiência exitosa. O grande problema é o financiamento”, disse. No seu entender, o financiamento do SUS para os hospitais secundários, como o HU, precisa ser rediscutido. “As Santas Casas, que são hospitais secundários, faliram”.
Autarquia seria uma das saídas, reconheceu o diretor do HU, “mas é preciso evitar nesse momento a possibilidade de criação de uma organização social (OS), que permite a ‘porta 2’”. O reitor, prosseguiu ele, “colocou isso numa situação de crise da USP, como uma saída; de forma deselegante, falou que ele preferia contratar docentes, em vez de pagar fralda e remédio”. “Mas pagar fralda e remédio significa financiar uma plataforma de ensino. Então, as questões são mais complexas”.
Pinhata Otoch lembrou ainda que o HU supre uma lacuna no atendimento médico da região Oeste da capital, na qual as secretarias municipal e estadual de saúde não construiram nenhum hospital, o que leva a uma enorme sobrecarga do HU. “O subfinanciamento do SUS é cruel com a saúde hospitalar no Brasil”, acrescentou. “Desvincular os hospitais da universidade é uma coisa muito simples, para deixar o sistema de saúde burro. Você financiar só alta complexidade, está maltratando a população”, afirmou, sob aplausos. “Recebemos pacientes de todo lugar de São Paulo. É inacreditável a quantidade de pacientes que ‘moram’ na rua Pangaré, para poderem ser atendidos no HU”.
Ainda de acordo com ele, os médicos do HU têm um padrão de salário diferenciado “porque são obrigados a dar hora-extra para o hospital funcionar”. Ele admitiu que o hospital “realmente tem um custo muito elevado, a folha de pagamento equivale a 80% do custo, mas é a politica de recursos humanos da USP”.
Por fim, após declarar-se reconciliado com Sebastião dos Santos (“Minha impressão mudou. A gente tem que discutir adequadamente qual é o papel dos hospitais universitários”), Pinhata Otoch sintetizou seu entendimento da questão: “Me coloco contra a posição do reitor, de querer desvincular o hospital mesmo o governador falando que não quer o HU nem o HRAC”.
Custo real do leito
Antes de iniciar a fase de intervenções da plateia, o professor Ciro fez um curto relato sobre debate de que participou no Sindicato dos Médicos, no qual o deputado Carlos Neder, presidente da Comissão de Educação e Cultura da Assembleia Legislativa, mencionou discussões existentes sobre uma possível autarquia de regime especial a ser criada, que incorporaria o Instituto do Câncer (Icesp) e que teria entre seus objetivos “limitar, senão resolver, a interferência da Fundação Faculdade de Medicina (FFM) na gestão do Hospital das Clínicas (HCFM) e de suas interfaces com o Icesp”.
A professora Lighia Brigitta Horodinski-Matsushigue (IF), que mora na região do Butantã desde 1974 e já representou a população no Conselho Distrital de Saúde, comentou que os postos de saúde não funcionam à noite e que a OS que os gere é a FFM. “O HU é praticamente uma unidade de ensino, em termos de custo. Como é que se chega à conta de R$ 1,4 milhão por ano por leito?”, questionou.
Lúcia Mendes, médica nefrologista, coordenadora do pronto socorro do HU, também questionou dados do relatório de Sebastião dos Santos: “Não concordamos com algumas informações que foram passadas ao sr. A relação leito/funcionário não é a relação atual, revisamos este dado e não conseguimos encontrar este número”, disse. “Sei que o sr. é um gestor. O sr. não está desconfortável por ter sido responsável por emitir um relatório na Sexta-Feira Santa e no sábado o reitor já tinha uma decisão?”
Outro médico do HU, Marcelo Rodrigues, cobrou do autor do relatório que informasse quantas visitas fez ao hospital antes de emitir seu parecer, com quantos alunos conversou e qual a opinião deles, indagando ainda “como o sr. vê a estrutura de ensino do HU?” e “como a vinculação do HU à Secretaria da Saúde melhoraria o ensino?”
Sebastião dos Santos procurou responder aos questionamentos: “A relação funcionário/leito foi difícil de obter. Consideramos funcionários terceirizados e plantão. Teve muita troca de e-mails. O pessoal do RH do HU é que me deu essa informação”. “Claro que estou desconfortável. Queria deixar claro o seguinte: nunca disse que a qualidade ali deixa a desejar; disse que fica difícil pela quantidade de gente atendida. Fiz um trabalho acadêmico, e do jeito que ele foi utilizado eu me senti muito mal, nunca me aconteceu uma reação tão violenta como essa”.
Após comentar que atualmente todos os hospitais possuem profissionais de todas as áreas (farmacêutico, assistente social), e que “a multidisciplinaridade permeia todos os serviços”, admitiu que esteve uma única vez no HU: “Conversei com alguns estudantes, sem dúvida. Fiz uma visita, mas tenho uma vivência que… trabalhei no Ministério da Saúde, visitei vários hospitais”. O autor da pergunta insistiu quanto ao número de alunos entrevistados, ao que ele devolveu: “Não contei com quantos estudantes [conversou]. Pesquisa envolve campo e informação. Olho clínico. Meu relatório está à disposição”.
Mais adiante, revelou que quanto ao HRAC “foi um processo diferente, fiz mais visitas, fizemos reunião com o Conselho Deliberativo lá”, e que o reitor “garantiu que tinha conversado” com esse colegiado. “Percebo que a USP tem coisas que não têm cabimento. Em Bauru não existe faculdade de medicina e a FOB praticamente não usa o HRAC. Um prédio de 12 andares está vazio”.
Maria Delizete Bentivegna Spallicci, ginecologista e obstetra do HU, comentou na sua intervenção que há três hospitais fechados na capital, entre eles Matarazzo e Sorocabano. Convidou o professor da FMRP a examinar os dados com a equipe do HU e não com a fonte a quem ele recorreu, a superintendente, “que eu não encontro no hospital, só o sr. encontrou”.
Fundações privadas
A atuação das fundações privadas ditas de apoio e das OS e o risco de se criar uma “segunda porta” no HU receberam muitas críticas das pessoas que se inscreveram para falar. “A segunda porta se não é ilegal é imoral”, externou um docente da FM. “É o que fazem HC e HCRP. Junto com isso as fundações, que fazem contratações”.
A professora Márcia Carr (EE), primeira enfermeira a ser contratada pelo HU, observou que a USP oferece salário para jornada de tempo integral: “Duplo vínculo, dupla porta, eu não gostaria que isso acontecesse com o HU”. A professora Valéria de Marco (FFLCH), usuária do HU desde que foi criado, reforçou: “Não queremos fundações aqui dentro, porque elas orientam o que é prioritário”.
O professor Américo Kerr (IF) mencionou que no HCRP a dupla porta, mantida pela fundação privada Faepa para atender pacientes de convênios, é literal, existe fisicamente. “É o que ocorre no InCor [Instituto do Coração], no HC, um modelo que já se pensou para o HU, houve convênio, depois recuaram. O esquema das fundações beira a corrupção, as pessoas usam a estrutura pública para fazer dinheiro”. Ele criticou o governo federal por haver criado a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH): “Hospitais universitários são plataformas de ensino. Não é que se quer dar solução para a população: não se quer é gastar dinheiro com a saúde. Essa é a discussão que está aqui”.
“O subfinanciamento do SUS é responsável pela porta 2, pelas fundações, por tudo isso que acontece no Brasil”, comentou Pinhata Otoch. “Ninguém que trabalha na saúde pode defender a porta 2. Sistema público é sistema público. A equidade tem que ser discutida. A EBSERH é uma aberração”.
Sebastião dos Santos disse que recusou a oferta de colegas para atender pacientes de convênio na emergência do HCRP (situada fora do campus de Ribeirão Preto da USP) e que os três hospitais que são semelhantes ao HU, aos quais o comparou no relatório, não têm segunda porta. “Não compactuo com dupla porta”, afirmou. No entanto, acrescentou, o HCRP campus segundo ele “atende muito pouco os convênios, só 6%”. Assim, “93% do atendimento do HCRP é SUS”.
No entanto, o autor do relatório preferiu não criticar as fundações privadas: “Tudo depende de como você usa o instrumento. Nossa fundação, [da qual] nunca fui diretor, nunca se envolveu em escândalos. Fundação para nós é só um banco. São instrumentos, depende de como os homens se utilizam”. Em comentário posterior ao debate, ele deixou claro que não se opõe à cobrança de “taxa de gestão” da verba SUS por fundações privadas como FFM, Faepa e Zerbini.
“Temos complementação sim lá no HCRP, mas não é da fundação: é do próprio orçamento do Estado. Dou plantão também: ganho 600 reais por plantão de 12 horas. Fundação é uma decisão da autarquia, a USP é que decide. Mas quem define o rumo dos hospitais somos nós”, aduziu Sebastão Neto.
Falta de democracia na USP
“Temos subfinanciamento do SUS e subfinanciamento da universidade. Há falta de investimento do poder executivo: Estado e Prefeitura. Mas o problema fundamental é a falta de democracia na USP”, disse o professor Tércio Redondo (FFLCH).
“Os conselheiros que votaram na desvinculação do HRAC fizeram isso baseados em poucos elementos. O ato do reitor foi irresponsável e os conselheiros que votaram em favor da desvinculação foram irresponsáveis — e também quem se absteve”, observou o professor Sean Purdy (FFLCH). “A gente não pode separar a desvinculação dos hospitais dos outros ataques: redução da dedicação exclusiva, influência crescente das fundações, modelo neoliberal da educação em geral”.
O professor Alberto Tufaile (EACH) citou o descaso da USP com a EACH: “Sou professor da USP Leste, então já bebo água suja há muito tempo, peguei sarna. Nosso reitor compactua. Ele não disse o que vai fazer com o criminoso que fez aquilo lá [aterro ilegal]. Minha pergunta é: se esse reitor cometer um erro agora, como a gente vai reverter isso? Vocês compactuam com essa falta de transparência?”
A professora Beth Franco (EACH) manifestou sua indignação com o fato de que “o compromisso com a educação e a saúde está submetido ao financiamento” e explicou que a medida proposta pela Reitoria representaria um duro golpe nos planos de se criar um serviço-escola de referência para Obstetrícia, curso no qual leciona.
A professora Leny Sato (IP) fez severa crítica ao procedimento da Reitoria, que considerou “extremamente leviano”, uma vez que “estudar o HU exige estudar sua singularidade, como instância da USP, e sua inserção num determinado território”. Pensar hoje o SUS, afirmou, é pensar que seus princípios estão sendo ameaçados: “Terceirizar via OS compromete a qualidade do trabalho e da prestação de serviço. Com a rotatividade dos trabalhadores perde-se a expertise coletiva”. Citou como exemplo desta última afirmação a equipe de Queimados do Hospital Matarazzo, a qual “resolvia seus problemas com qualidade notável”.
Após arriscar uma resposta ao professor da EACH (“Tivemos surto de febre maculosa no campus de Ribeirão Preto”, informação errônea mais tarde contestada por um participante do debate), Sebastião dos Santos explicou que atua muito mais como médico do HCRP do que como professor, de modo que não teria intimidade com a política universitária: “Não conheço bem a estrutura de poder da universidade, minha interface maior é com o sistema de saúde”.
Pinhata Otoch, por sua vez, classificou a proposta da Reitoria de desvinculação dos hospitais como um grande erro: “Tentamos evitar a todo custo que uma decisão precipitada fosse irreversível. Hoje os mecanismos de decisão dentro da universidade não são democráticos. Quinze dias entre saber da proposta e votar: isso não é democrático, de forma alguma pode ser uma atitude universitária”. E resumiu: “Não à falta de democracia, de discussão, a essa pressa abusiva de uma forma absolutamente leviana”.
“Militância do reitor”
A professora Linda Maximiano (FM) explicou, em tom de desabafo, que “realmente nos deixou irados sentir que simplesmente a universidade, na onda da crise, estava falando em desmanche”. A proposta de desvinculação, definiu ela, em alusão às alegações da Reitoria de alto custo do HU, “foi um pontapé no obeso”.
Ana Maria, pediatra do HU, relatou que se sentiu impelida a conhecer o Hospital das Clínicas de Botucatu, desvinculado pela Unesp (e atualmente gerido por três instituições diferentes): “Quando a ira foi desencadeada em nós no HU, fomos conhecer Botucatu. Tenho dois colegas docentes lá, [além de] residentes, alunos. Passamos o dia inteiro vendo a questão da autarquização. Saí de lá mais amedrontada ainda”.
O professor Marcos Magalhães (IME) criticou a visão de fundação privada como “banco”, e fez uma provocação a Sebastião dos Santos: “O sr. hoje é um militante da Reitoria. Meu convite é que o sr. saia da militância da Reitoria e venha para o debate que o professor Pinhata propôs”.
O professor da FMRP, ao responder, voltou a defender sua analogia entre fundações privadas e bancos: “Também odeio os bancos, o problema é que a gente não consegue viver sem isso. É falta de Estado, concordo”. Disse que não vai fugir do debate: “Não sou militante do reitor, aliás militamos em campos opostos, por longo tempo. Entendo perfeitamente a posição de vocês, estão defendendo um patrimônio construído a duras penas, que tem importância social, mas pode ser melhorado”.
Ao finalizar sua participação, Pinhata Otoch revelou-se “realmente preocupado” com o futuro do HU: “Hoje a questão do financiamento é premente e os modelos postos não me agradam. Não quero discutir com gestores municipais e estaduais. O reitor continua colocando a desvinculação como uma necessidade, vamos ter que continuar brigando. Briga para manter um método de trabalho que deu certo e não é comparável a nenhum outro”.
Ao encerrar o debate, o professor Ciro Correia assinalou que a forma como a Reitoria pautou e conduziu a questão compromete o devido lugar do debate na academia. “Que este debate de hoje seja seguido por muitos outros, sem o peso de uma decisão que vai ser tomada daqui a alguns minutos, ou alguns dias”, sugeriu.
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