“Prezados senhores,

Indignado pela leitura de informações inverídicas veiculadas a meu respeito, envolvendo meu posicionamento político e princípios morais e éticos, no artigo “Faculdade de Medicina da USP — entre conivência com a Ditadura Militar e resistência à opressão”, de autoria de Luiza Sansão, na edição de dezembro de 2023 da Revista Adusp, escrevo para esclarecer e reparar informações e inferências ali contidas. A mesma indignação se estende às menções ao posicionamento dos professores Paulo Correia Vaz de Arruda e Oscar Ribeiro de Lima.

Em dado momento a matéria trata das dificuldades que a professora doutora Lúcia Coelho teve, por questões da ditadura, para ingressar no corpo docente da Universidade de São Paulo. Refere que, doutorada pela Unicamp em 1972, neste mesmo ano tratava de seu ingresso na USP.

Em primeiro lugar quero expressar minha incondicional solidariedade à professora Lúcia e a todos os que de algum modo sofreram coerções ou qualquer outro tipo de arbitrariedade durante a ditadura militar. Quero dizer que nossa turma mesmo, a 54ª turma da FMUSP, que se formou em 1971, foi vítima de sanção por parte da diretoria da faculdade, que se negou a realizar a cerimônia oficial de formatura no recinto da faculdade, como de hábito sempre se fez, porque nós tínhamos — e tivemos — como homenageados os professores Isaias Raw e Alberto Carvalho da Silva, ambos cassados durante o malfadado regime. Nossa turma foi a única de toda a história de mais 100 anos da faculdade que não teve uma cerimônia oficial realizada, em virtude das imposições autoritárias da diretoria por questões políticas. Desta forma, está longe de minha intenção negar arbitrariedades, mas sim separar o joio do trigo.

Na matéria da revista, assim se lê: “No final de 1972, Lúcia foi convidada para um jantar na casa do chefe do departamento, Paulo Vaz de Arruda. Seu relato à Comissão, em 2015, sobre aquela ocasião diz muito sobre o clima pesado do momento: “Estávamos eu, o Ruy Coelho, meu marido, o meu muito amigo Antonio Candido. Depois ficaram só os professores da medicina. Oscar de Lima, Paulo Vaz de Arruda, Plínio [Luiz Kouznetz Montagna]. Não me lembro de todos. Começaram a fazer perguntas, mas, na verdade, mais parecia um interrogatório de polícia: por que fui presa, se eu escrevia algum jornal subversivo, onde eu distribuía, o que havia feito”, relembra. “No começo achei que era interesse pessoal. Percebi que estava sendo interrogada e achei muito antipático. Falei que não mudaria minhas posições. O Paulo [Vaz de Arruda] falou assim: ‘Lúcia, não vai dar para você continuar aqui, quando eu puder te chamo’.

Mencionemos as distorções:

Ocorre que eu (Plinio Luiz Kouznetz Montagna) não participei e nem poderia ter participado desse jantar, porque, formado em 1971, cursei nos anos de 1972 e 1973 a residência médica em Psiquiatria no HCFMUSP, não tendo nenhum acesso ao que ocorria no interior do Departamento, então de Neuropsiquiatria, da Faculdade. Eu era apenas, em 1972, residente de primeiro ano de Psiquiatria, sem nenhuma relação com docência ou com o Departamento e não era ainda contratado pela Faculdade. Somente fui contratado pelo Departamento em 1974, de modo que não participei de nenhum jantar deste no ano de 1972, nem tampouco frequentei reuniões com professores ou jantares na casa de qualquer dos professores do Departamento. Em 1972 eu cursava apenas o primeiro ano de residência. Não é verdade que eu estava presente na referida ocasião, mencionada pela professora Lúcia.

Quanto ao professor Paulo Vaz de Arruda, é necessário esclarecer-se que naquela época era o coordenador de Psiquiatria do Curso Experimental de Medicina, estrutura curricular de ensino integrado, por blocos, uma nova concepção de ensino que vigorou de 1968 a 1974 na FMUSP, quando houve a reunificação dos cursos experimental e tradicional.

O professor Paulo foi o único professor da Faculdade que naqueles tempos sombrios compareceu solidariamente a algumas assembleias do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz [CAOC] nas quais temas politicamente espinhosos eram debatidos. Isto pode ser atestado pelo dr. Reinaldo Morano Filho, colega meu de turma, presidente do CAOC em 1969, colega que foi preso, torturado, permanecendo por vários anos de prisão. Diga-se de passagem, nas comemorações havidas no ano em que a FMUSP completou 100 anos, o colega Reinaldo, para se ter uma ideia, foi escolhido como representante de todos os presidentes do CAOC, dos 100 anos de Faculdade.

É totalmente inverossímil a ideia de que o professor Paulo Vaz de Arruda tivesse qualquer ato contrário a suas ideias. Ao contrário, era ele quem queria contratar a professora Lúcia (o que fez posteriormente, quando houve a possibilidade) e, se o diálogo mencionado de fato ocorreu, certamente terá sido para ver se havia condições políticas para a contratação da professora Lúcia — naquele momento. Um disparate imaginar o combativo professor Paulo Vaz de Arruda aliado a qualquer ato anti-democrático na Faculdade.

Para se ter uma ideia, em artigo de novembro de 2017 na revista Psychiatry On line Brasil sobre “História da Psiquiatria” (vol. 22, n. 12), o colega Walmor J. Piccinini publicou notícia do falecimento do professor Paulo escrita por mim, onde se lê:

O psicanalista Plinio Montagna (publicou no seu facebook)

Com enorme pesar compartilho a triste notícia do falecimento do Professor Paulo Correia Vaz Arruda. Certamente um dos nomes mais importantes da psiquiatria brasileira, um homem brilhante, agudo pensador, humanista a toda prova que desafiou o regime militar como professor, um estrategista expoente da educação médica da Faculdade de Medicina da USP à qual dedicou grande parte da sua vida, com amor verdadeiro. Seu humor fino, suas tiradas rápidas e irônicas eram exemplares.”

Continua o dr. Piccinini:

As orientações e os assuntos tratados mostram sua grande preocupação com a assistência aos alunos da USP e seu pioneirismo em abordar o tema do suicídio entre os jovens.

Graças à publicação do dr. Montagna pude acessar uma entrevista muito objetiva em que o professor Paulo Corrêa Vaz de Arruda expressa suas ideias de como ser médico.

Assim, é totalmente inverossímil qualquer interpretação de conversas com o professor Paulo que contrariassem sua posição francamente democrática.

Quanto ao professor doutor Oscar Rezende de Lima, pessoa de amabilidade reconhecida por todos que com ele conviveram, de quem nunca se ouviu qualquer comentário elogioso ao regime militar, ao contrário, só se ouvia críticas, é fora de propósito imaginar-se que ele se aliaria a censores no poder para avaliar uma possível colega de departamento. Nem era atribuição sua qualquer avaliação nesse sentido.

Assim, indignado pela versão errônea publicada a respeito do professor Paulo, do professor Oscar, e de mim mesmo, no artigo da revista, totalmente alheada de nossa história de vida, solicito a publicação desta manifestação de repúdio para que fique publicamente registrada a VERDADE dos fatos expostos e de nosso posicionamento de caráter político, ético e institucional”.

Plinio Luiz Kouznetz Montagna

NOTA DA REDAÇÃO. Como qualquer pessoa, Plinio Montagna tem o direito de questionar versões de fatos históricos que considere inverdadeiras, distorcidas e portanto injustas. Embora sua carta se dirija à Revista Adusp, decidimos publicá-la online em razão do fato de que a próxima edição da revista não circulará antes de agosto próximo, e dada a relevância das alegações levantadas pelo docente.

Contudo, é importante que se diga que o relato que Montagna contesta é de autoria da própria professora Lúcia Maria Sálvia Coelho, que a Comissão da Verdade da USP aponta, no seu Relatório Final (2018), como uma das diversas vítimas de perseguições administrativas ocorridas na Faculdade de Medicina durante o período ditatorial.

A reportagem que Montagna rebate, publicada na edição 67 da Revista Adusp, limitou-se a transcrever, literalmente, um trecho do depoimento da professora Lúcia Coelho à Comissão da Verdade da USP, trecho esse disponível nas páginas 37-38 do volume 4 do Relatório Final. O questionamento, portanto, deveria ser encaminhado à Comissão da Verdade. Porém, oficialmente esse colegiado ad hoc deixou de existir ao final de seu mandato (após prorrogação), que teoricamente extinguiu-se em 25 de julho de 2016, embora a Comissão tenha atuado de facto até 2018.

Infelizmente, a professora Lúcia Coelho faleceu no dia 7 de setembro de 2023, antes da finalização da reportagem e sem que a repórter Luiza Sansão tivesse conseguido contatá-la, como bem explicado no texto em questão.

Apesar da controvérsia suscitada por esta carta, deve-se destacar a seriedade do trabalho da CV-USP, que, não obstante tenha contado com meios escassos, conseguiu conduzir uma investigação idônea e produzir achados dignos de nota, apontados no seu Relatório Final.

EXPRESSO ADUSP


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