O Projeto de Lei nº 8.035/2010 (PNE 2011-2020) em Trâmite no Congresso Nacional – Um Alerta do GTPE Nacional para os GT das Seções Sindicais

1. Contextualização

O ANDES-SN sempre defendeu, em toda a sua história de lutas, a construção de um projeto para a educação brasileira pautado no princípio da educação como direito de todos e dever do Estado, na promoção do ensino público, gratuito, laico e de qualidade socialmente referenciada. Um Plano Nacional de Educação (PNE) fundado nesses valores, dotado de metas factíveis, cujo alcance tivesse escalonamento adequado e que contasse com o financiamento condizente, seria claramente um instrumento valioso para a concretização desse projeto.

A política educacional tem sido alvo da atenção dos últimos governos, mas tem expressado, na prática, o novo papel que o Estado brasileiro assumiu no contexto das reformas neoliberais implantadas a partir dos anos de 1990, em que se desresponsabilizou e delegou grande parte de suas funções, privatizando suas ações. Tal reforma é parte constitutiva da mundialização do projeto neoliberal de sociabilidade que, alterando as funções e o papel político e jurídico do Estado, opera a diluição das fronteiras entre público e privado, mercantilizando os serviços públicos, inclusive a educação. 

A elaboração, implantação e monitoramento destas reformas estão sob a direção política dos organismos internacionais, ditos multilaterais, que têm desempenhado  papel central nas reformas neoliberais, especialmente nos países latino-americanos, com a anuência dos governos locais. Trata-se, portanto, do compartilhamento e não da imposição de um projeto de sociabilidade que necessita da reconfiguração do Estado e das políticas sociais, bem como da exploração intensa do trabalho para garantir a valorização/acumulação ampliada do capital.

Em contraposição a essa conjuntura, ainda no final dos anos 1990, o Andes e outras entidades científicas, sindicais e estudantis, bem como os movimentos sociais envolvidos com as lutas para a melhoria da educação, se mobilizaram e  construíram o Plano Nacional de Educação: Proposta da Sociedade Brasileira (II Congresso Nacional de Educação, II Coned, Belo Horizonte/MG,1997), que foi posteriormente transformado em projeto de lei (PL) e submetido ao Congresso Nacional. Tanto em termos de metodologia de construção como de princípios, essa Proposta da Sociedade Brasileira continua absolutamente atual, embora o diagnóstico da educação e o conteúdo numérico das metas tivessem que ser atualizadas; assim, o Andes-SN a mantém como referência na construção de seu projeto de educação.

Contudo, consoante com o direcionamento político da Reforma gerencial do Estado, o governo fez aprovar as metas de um Plano Nacional de Educação (PNE 2001-2010) elaborado no âmbito ministerial, não satisfazendo as necessidades educacionais da população brasileira no que diz respeito à melhoria de qualidade, à expansão do sistema público no ensino superior, ao financiamento, à gestão democrática, à avaliação, ao estabelecimento de um sistema nacional de educação (SNE), à formação e valorização dos trabalhadores da educação, contrapondo-se ao PNE da Sociedade Brasileira, do qual itens de diagnóstico haviam sido, contraditoriamente, incorporados ao PL do plano oficial, durante o trâmite congressual. Cabe lembrar que a maioria das metas do PNE 2001-2010, mesmo rebaixadas, sequer foram cumpridas, também em função dos vetos apostos pelo executivo a todas as metas relativas ao financiamento.

Findo o prazo de vigência do anterior, um novo projeto de Plano Nacional de Educação (2011-2020) surgiu, às vésperas do Natal de 2010, por iniciativa do executivo, que elaborou um projeto com vistas a referendar as políticas educacionais em curso. Anteriormente, no início de 2010, um texto fora encaminhado para debates em reuniões da Conferência Nacional de Educação (CONAE-2010), com a intenção de ter seu conteúdo refletido no relatório final, buscando, assim, obter uma pretensa legitimação da sociedade. O PNE 2011-2020, finalmente encaminhado ao Congresso como PL 8.035/2010, ao contrário, não contempla sequer questões importantes aprovadas pela CONAE, como, por exemplo, a destinação de 10% do PIB para educação (foram previstos apenas 7%, absolutamente insuficientes, e isso a ser alcançado somente em 2020), a gradual desvinculação das creches conveniadas e a proibição do emprego do EàD na formação inicial.

O PL 8.035/2010 sofreu mais de 3 mil emendas e, apenas no final de 2011, o relator nomeado produziu um primeiro Relatório, que, entretanto, estava longe de contemplar as ansiedades da comunidade educacional. Tendo novamente recebido mais de 4 centenas de emendas, deu origem a um segundo Relatório, atualmente em discussão na Comissão Especial, podendo ser votado, ainda nos meses de maio ou junho desse ano, e provavelmente em caráter terminativo, na Câmara dos Deputados. Como a essência do documento não mudou em todo esse trâmite, é importante que nos debrucemos novamente sobre ele.

2. Financiamento insuficiente para Expansão Ampla

O PNE apresenta vinte metas, abrangendo a totalidade dos níveis de educação, mas apenas uma com referência explícita ao financiamento. De modo geral, todas as metas se referem à ampliação do atendimento educacional, o que claramente é necessário e pode parecer positivo. O nó consiste no fato de que a proposta de financiamento (meta 20) não acompanha o alcance das metas quantitativas, o que pode prenunciar a manutenção do deplorável estado da educação básica pública –  verificado por todos os levantamentos – que impossibilita qualquer avanço real na educação, pois atende a mais de 85% das crianças e jovens deste país. Como será visto, pode também resultar diretamente numa queda adicional na qualidade da educação superior pública, ainda considerada substancialmente superior à da grande maioria das instituições privadas.

Lido isoladamente, o valor consignado na meta 20 (que prevê, no texto do segundo Relatório, ora em discussão, o investimento público direto em educação no patamar mínimo de 7,5% do PIB, ligeiramente superior aos 7% do texto original) também pode parecer positivo. Entretanto, para metas menos ambiciosas, o PNE: Proposta da Sociedade Brasileira determinava a aplicação de 10% do PIB, enquanto a situação da educação brasileira não tivesse alcançado o equilíbrio, no que concerne tanto à quantidade do atendimento quanto à sua qualidade social. Todas as vozes, com exceção às do governo, que por enquanto se levantaram são unânimes em afirmar que o financiamento proposto é insuficiente. Além disso, vale alertar que a redação do PNE usa, cuidadosamente, investimento público em educação e não investimento em educação pública.

Como várias estratégias prevêem a expansão do FIES (inclusive para a pós-graduação), a expansão do PROUNI e a implantação do Pronatec, a redação não garante, necessariamente, a expansão de recursos para a educação pública.

É necessário alertar também para a mudança na redação da estratégia 20.1, que originalmente afirmava "garantir fonte de financiamento permanente e sustentável para todas as etapas e modalidades da educação pública", e foi alterada no último substitutivo, apresentado em abril de 2012, para "educação básica", o que é incompreensível, ainda mais que a educação superior não aparece em nenhuma das outras nove estratégias associadas à meta 20.

Vale ressaltar que a educação superior brasileira apresenta grande distorção em relação à organização encontrada em outros países, ao ter somente 25% de matrículas no setor público. Na Europa ainda é usual que essa porcentagem alcance 90% e, nos EUA, está próxima aos 70%. Ademais, no caso brasileiro, a fração do ensino privado que, declaradamente, visa o lucro já ultrapassa a metade, em comparação com os apenas 9%, nos EUA. A meta 12, que tanto no texto original do PNE quanto no substitutivo, prevê dobrar as matrículas no ensino superior, alcançando 12 milhões, em 2020, pretendeu implicitamente cumprir essa expansão de monta, mantendo a atual divisão entre atendimento público e privado na proposta do governo, além de um incentivo declarado para cumprir parte substancial por EàD. Frente ao disparate, o relator dispôs que a ampliação se dê com oferta de 40% das matrículas no segmento público. Dado o financiamento insuficiente para a implementação da meta 12, o governo propôs e o relator manteve, entre outras, as estratégias 12.2 e 12.3, que são a utilização de cursos à distância e a imposição da taxa de 90% de conclusão dos cursos e a relação de 18 estudantes por professor em cursos presenciais em todas as IES públicas, ou seja, também nas estaduais, além das federais, onde são conhecidas como Metas REUNI. Tais metas estão em desacordo com o que é mundialmente aceito e têm-se mostrado como inaceitáveis ou inadequadas em muitas das análises realizadas sobre a educação brasileira. 

Como o PNE não foi precedido por um diagnóstico – conforme seria usual e necessário -, as análises têm que ser feitas a partir de dados coletados na vivência, em especial da própria comunidade educacional. Para a maioria dos educadores, para além de todas as mazelas elencadas anteriormente, sem uma real valorização da profissão do professor da educação básica – o que inclui uma substancial melhoria salarial, mas também uma extensa revisão das condições em que o trabalho docente é exercido – não há saída para essa etapa crucial na vida de nossa população, com reflexos negativos para todas as etapas posteriores. As quatro estratégias da meta 17, que trata do assunto, contudo, são altamente insuficientes, incapazes de produzir a inflexão necessária.

3. O Papel da Avaliação no Atual Contexto Educacional

A política de avaliação educacional promovida pelo governo e confirmada no PNE em trâmite no Congresso, tem no produtivismo, na competitividade individual e no ranqueamento sua regra geral, vinculando tal "avaliação" frequentemente ao financiamento. Na educação básica, é conduzida pelo SAEB (que engloba a Provinha Brasil, Prova Brasil, ENEM) e por índices de desempenho educacional, como o IDEB (sendo propostos até os parâmetros exógenos do PISA, em uma das metas do PNE); na avaliação das instituições de ensino superior/IES e de seus cursos, pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior/SINAES, utilizando também as notas atribuídas aos programas de pós-graduação pela CAPES e pelo CNPq; e na produção docente, pelo direcionamento da produção e difusão do conhecimento conduzido pelo sistema Qualis da CAPES. Esse tipo de abordagem é, então, reafirmado e até ampliado no PNE proposto. Assim, ao invés de ser constituído um Sistema Nacional de Educação – como, declaradamente, deveria ter sido a intenção da CONAE -, poderemos continuar a ter um pobre Sistema Nacional de Avaliação.

4. Privatização – Cumprimento do PNE e de suas Metas

Outra problemática a ser posta em evidência é o aspecto privatista que perpassa  diretrizes, metas e estratégias do PNE. Isso se revela já no próprio corpo do texto do Projeto de Lei 8035/2010 quando se expressa, como já dito, por meio de "investimento público em educação" (Art 5º), ao invés de, como defendemos, utilizar os termos "investimento público em educação pública". As evidências que desmascaram esta aparente sutileza podem ser identificadas ao longo do Anexo – que contém o PNE, em especial nas estratégias propostas para o cumprimento das metas, como vemos em alguns exemplos a seguir.

Na meta 1, que trata da educação infantil, a estratégia 1.7 propõe uma articulação que torna possível "a oferta de matrículas gratuitas em creches certificadas como entidades beneficentes de assistência social na área de educação", ao invés de garantir financiamento público para expansão da rede pública. 

Na estratégia 6.4, o Estado ensaia realizar o projeto da educação integral, que todos defendemos, repassando, como serviço, atividades de ampliação da jornada escolar a entidades privadas de serviço social vinculadas ao sistema sindical. É o mesmo caso da expansão da educação profissional técnica e da educação de jovens e adultos, incluindo pessoas com deficiência, que aparecem nos itens 8.4, 10.8 e 11.6, delegadas como serviço ao mesmo sistema sindical.

A estratégia 9.5 abre a possibilidade de privatização sob o eufemismo de "parceria com organizações da sociedade civil".

Na meta 11, o documento aponta o compromisso de triplicar a oferta de educação profissional técnica de nível médio, prevendo que o setor público será responsável por apenas 50% da oferta até o final da vigência do PNE. A estratégia 11.6 explicita que a complementação dessas vagas dar-se-á por meio de entidades privadas de formação profissional, vinculadas ao sistema sindical e entidades sem fins lucrativos.

A estratégia 12.20 torna evidente o comprometimento do financiamento público com a expansão do ensino superior privado, incluindo nisso, no substitutivo, até o ensino à distância (EàD); esse não é submetido a qualquer limite, nem para as IES privadas, que estão ávidas por essa possibilidade adicional de incrementarem seus negócios.

Uma novidade preocupante é a inclusão da pós-graduação stricto sensu no FIES, como já ressaltado, de acordo com a estratégia 14.3, que amplia ainda mais o período durante o qual o estudante acumula dívidas para realizar sua formação acadêmica.

5. Estranhamentos

Na segunda versão do substitutivo do relator (abril 2012) aparece um novo artigo (Art. 13), afirmando que "fica instituído o Sistema Nacional de Educação […]", sem, no entanto, definir como se organiza e funciona. Qual é a real função de tal artigo?

Outro motivo de estranhamento é a afirmação "[…] Fórum Nacional de Educação, instituído nesta lei, no âmbito do Ministério da Educação" (art. 6º). De qual fórum se trata, já que ele também não é definido no texto?

6. Conclusão

A falta de um diagnóstico da realidade educacional, a evidente insuficiência de financiamento e a ausência de ênfase na valorização profissional dos trabalhadores da educação, permitem concluir que a aplicabilidade desse PNE será restrita à transferência de recursos e responsabilidades do Estado à iniciativa privada, bem como ao estabelecimento de parâmetros de caráter mercantil e privatista no sistema público. 

Por certo, as metas propostas para a educação pública não serão atingidas com a qualidade necessária para reverter o quadro que penaliza a população de menor renda, pois o volume dos recursos previstos é insuficiente. Ao mesmo tempo em que o Sistema Nacional de Educação não está assegurado nesse Plano, temos de forma muito clara e objetiva o estabelecimento de um Sistema Nacional de Avaliação, muito embora numa perspectiva de controle.

Resta-nos questionar sob quais interesses esse Plano está sendo gestado e conclamar a todos a rejeitar o PNE em discussão no Congresso, ampliando a contestação, por meio do devido esclarecimento de seu real conteúdo, na próxima etapa legislativa, que deve ser o trâmite pelo Senado nacional.

 

Brasília/DF, 11 de maio de 2012

ANDES-SN, Anexo à Circular 127/12

 

 

 

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