Educação
Conferência Nacional da Educação aprova revogação do “Novo Ensino Médio” e recebe ministro Camilo Santana ao som de “Fora, Lemann”
O ministro da Educação, Camilo Santana, foi recebido com um longo coro de “Fora, Lemann” entoado por boa parte dos cerca de 2,5 mil participantes da sessão de encerramento da Conferência Nacional de Educação de 2024 (Conae), realizada nesta terça-feira (30/1) no Centro Comunitário Athos Bulcão da Universidade de Brasília (UnB).
O coro marcou o repúdio dos(as) representantes de estudantes, trabalhadores(as), conselheiros(as), dirigentes educacionais e pais e mães presentes na Conae, que teve início no dia 28/1, à influência das fundações privadas nas políticas públicas da educação. Entre as mais atuantes está a fundação que leva o nome do próprio Jorge Paulo Lemann, um dos donos, entre outras empresas, das Lojas Americanas, que teve um rombo de mais de R$ 40 bilhões revelado em 2023.
“A Conae 2024 começou com ameaças da extrema-direita e terminou com o ‘Fora, Lemann’. A extrema-direita participou, foi respeitada democraticamente, e perdeu. As fundações empresariais sequer participaram: optam pelos acordos de cúpula e pelo acesso privilegiado, sendo recebidas constantemente no gabinete do ministro para definirem políticas, em vez de enfrentarem o debate público. É isso que explica o ‘Fora, Lemann’. Um recado muito mais representativo do que parece e do que as duas palavras aparentemente dizem”, definiu em postagem em suas mídias sociais o professor Daniel Cara, docente da Faculdade de Educação da USP (FE-USP).
Em rápido pronunciamento após a “recepção” da audiência, o ministro Santana disse que a democracia é “respeitar as diferenças” e procurou ressaltar que a Conae – que não ocorria desde 2018 e foi convocada em caráter extraordinário pelo governo Lula (PT) – trouxe de volta “a participação popular na tomada das decisões na área da educação”.
O presidente Lula, que também participou da sessão de encerramento, falou dos cortes no orçamento da educação durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), destacou a ascensão da extrema-direita no país e no mundo e lembrou que as propostas aprovadas na conferência ainda serão debatidas no Congresso Nacional, no qual “nós somos minoria”.
O documento final, de acordo com o Ministério da Educação (MEC), passa por ajustes e ainda não tinha sido publicado até a tarde desta quinta-feira (1o/2). O texto será encaminhado pelo MEC ao Congresso Nacional e servirá de base para a formulação do Plano Nacional de Educação (PNE) 2024-2034.
Investimento em educação deve ser de 10% do PIB
A principal deliberação aprovada na plenária final da Conae foi a revogação do “Novo Ensino Médio” (NEM), instituído pela lei 13.415/2017, no governo Michel Temer (MDB). A conferência também aprovou a revogação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), substituída por um novo projeto curricular a ser construído, e da Base Nacional Comum (BNC-Formação), voltada à formação de professores(as).
A Conae decidiu ainda que o país deve investir 10% do PIB em educação, retomando reivindicação histórica dos movimentos progressistas; universalizar a pré-escola a partir dos quatro anos de idade, garantir o Ensino Fundamental de nove anos e a educação para toda a população até os 17 anos; triplicar o número de matrículas da educação profissionalizante no Ensino Médio; implantar educação de tempo integral, com jornada diária de sete horas, para pelo menos 50% dos(as) estudantes; e estabelecer padrões de qualidade para a educação a distância.
“Além disso, determina também a revogação da tentativa de Jair Bolsonaro de desconstruir o sistema CAQi-CAQ”, avalia Daniel Cara. O sistema, cuja sigla significa “Custo Aluno-Qualidade inicial” e “Custo Aluno-Qualidade” traduz em valores quanto o país precisa investir por aluno(a) ao ano, em cada etapa e modalidade da educação básica pública, para garantir um padrão mínimo de qualidade do ensino, define a Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Esse conjunto de deliberações significa que “a educação quer virar a página dos governos Temer e Bolsonaro”, considera o professor da FE-USP.
As decisões da conferência apontam também para a regulamentação do setor privado na educação, que no caso do ensino superior responde por 78% das matrículas nos cursos de graduação do país, de acordo com o Censo da Educação Superior de 2022 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep), do MEC.
A proposta de inclusão da educação privada no Sistema Nacional de Educação, aprovada na Conae, foi classificada como “uma grande conquista” por Margot Andras, dirigente do Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro-RS) e da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee).
Ao jornal Extraclasse, a dirigente disse ainda que as moções aprovadas para tratar da regulamentação da Educação a Distância (EaD) e da criação de um organismo federal para regulação do ensino privado também são avanços importantes.
Outra moção aprovada foi proposta pela União Nacional dos Estudantes (UNE), com endosso de outras 20 entidades, incluindo as representativas de reitores(as), e pede a revogação da portaria 2.117/ 2019, publicada na catastrófica gestão de Abraham Weintraub à frente do MEC, no governo Bolsonaro. A portaria ampliou para até 40% a possibilidade de oferta de carga horária de EaD na grade total dos cursos de graduação presenciais – o limite anterior era de 20%.
Avanços aprovados na Conae não estão automaticamente garantidos no PNE
Uma vez concluído e encaminhado ao Congresso Nacional o documento da Conae, terão início novos capítulos em torno da formulação do PNE. Em artigo publicado no UOL, o professor Rodrigo Ratier, docente da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, apontou em linhas gerais quais são as três principais forças que conformam o “tabuleiro de xadrez” dessa disputa.
“Mais à esquerda, o campo popular reúne as entidades de representação de professores e alunos, pesquisadores de universidades públicas, sindicatos e associações. Foram as forças majoritárias na Conae. À direita, as fundações e institutos empresariais, de feição neoliberal e com interlocução no atual MEC. E à extrema-direita, o bolsonarismo e suas pautas antieducacionais, como homeschooling, pânico moral quanto à questão de gênero e militarização das escolas. Houve uma tentativa frustrada de ocupar a conferência, mas sua força em um Congresso conservador não é desprezível”, define.
Ratier diz que “as três forças vão atuar junto a deputados e senadores na batalha pela relatoria, emendas e votações para a aprovação do plano” e lembra que a tramitação deve demorar. O PNE 2014-2024 levou quatro anos para ser aprovado. Os indicadores de acompanhamento do INEP, por sinal, demonstram que muitas das metas do plano estão longe de ser alcançadas.
As disputas, na verdade, começaram antes mesmo do início da conferência. No dia 24/1, várias frentes parlamentares do Congresso Nacional, incluindo as que representam as chamadas “bancadas da Bala, do Boi e da Bíblia”, e até mesmo a Frente Parlamentar Brasil Texas, publicaram nota conjunta na qual pediram o adiamento da Conae para o segundo semestre deste ano e a suspensão do documento referência do encontro, publicado em outubro do ano passado.
Entre os problemas apontados pelas frentes estava o uso de “adjetivos pejorativos dirigidos a setores da população não contemplados pelas visões dos organizadores da Conae 2024”, como “a necessidade de uma contraposição urgente ‘às políticas e propostas ultraconservadoras’, ‘o freio ao avanço da educação domiciliar – homeschooling’ e ‘às intervenções do movimento Escola Sem Partido e dos diversos grupos que desejam promover o agronegócio por meio da educação’”. O documento e as propostas da organização da Conae teriam, de acordo com os parlamentares dessas bancadas, “viés político e ideológico”, argumentação costumeiramente utilizada pela direita para escamotear a defesa dos seus próprios pressupostos ideológicos.
Por sua vez, dias antes a Frente Parlamentar Mista da Educação divulgara nota na qual “reconhece e defende a legitimidade da Conae como instância vital para o debate e a construção de políticas educacionais no Brasil” e destaca “o papel dessa instância como complementar às discussões legislativas, sendo fundamental para o avanço das pautas educacionais no país”.
A perspectiva, portanto, é de disputas que seguirão acirradas, o que vai demandar do campo progressista capacidade de articulação e pressão para fazer frente ao crescente avanço do empresariado sobre a educação e à também crescente atuação da extrema-direita, que nos últimos anos transformou a escola numa de suas principais arenas de luta.
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