Educação
A pretexto de impedir “transferência de renda dos pobres para os ricos”, projeto de lei de deputado bolsonarista institui cobrança de mensalidades na USP, Unesp e Unicamp
Publicado no Diário Oficial do Estado de 7/8, o projeto de lei (PL) 1.202/2023, de autoria do deputado estadual Lucas Bove, do Partido Liberal (PL), propõe “cobrança de mensalidade para alunos das instituições públicas de Ensino Superior estaduais do Estado de São Paulo” e estabelece quatro patamares de pagamento de acordo com perfil socioeconômico dos e das estudantes, que variam de 25% a 100% do valor fixado. Estipula ainda um patamar de isenção integral, para estudantes cuja renda familiar mensal per capita seja igual ou inferior a 4 salários-mínimos. De acordo com o projeto, as próprias universidades fixariam o valor das respectivas mensalidades.
O PL 1.202/2023 determina que estudantes cuja renda familiar mensal per capita seja superior a 4 salários-mínimos e igual ou inferior a 6 salários-mínimos paguem 25% do valor total da mensalidade; estudantes com renda familiar mensal per capita superior a 6 salários-mínimos e igual ou inferior a 8 salários-mínimos paguem 50%; estudantes com renda familiar mensal per capita superior a 8 salários-mínimos e igual ou inferior a 10 salários-mínimos paguem 75%; e estudantes com renda familiar mensal per capita superior a 10 salários-mínimos paguem 100% do valor da mensalidade.
Na justificativa, Bove alega que a educação, “inclusive a de nível superior, é um dos principais meios de inserção democrática do cidadão na sociedade, promovendo uma formação que fará parte da sua história e do seu próprio ser enquanto membro de uma comunidade”, e que, apesar das políticas públicas e ações afirmativas que visam democratizar o acesso ao ensino superior, “ainda hoje o sistema de ensino traduz uma desigualdade principalmente em universidades públicas, em que se vê uma transferência de renda dos mais pobres, que pagam impostos e muitas vezes não obtêm acesso a esses espaços, aos mais ricos, que ingressam na faculdade e cursam toda a sua graduação de forma gratuita”.
O deputado bolsonarista recorre a dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para lembrar que 79% dos ingressantes no ensino superior são provenientes do ensino médio privado. Também cita um relatório do Banco Mundial segundo o qual, entre 2013 e 2015, o custo médio anual por estudante em universidades privadas sem e com fins lucrativos foi de R$ 12.600 e R$ 14.850, respectivamente, ao passo que em universidades públicas federais o custo médio anual teria sido de R$ 40.900, e em universidades públicas estaduais de R$ 32.200.
“Dados existentes apontam para desigualdade”, diz parlamentar do Partido Liberal
“Nesse sentido, a possibilidade de cobrança de mensalidades por parte das universidades públicas ganha espaço, considerando que os dados existentes apontam sempre para uma desigualdade, sendo urgente a criação de medidas legislativas que, além de permitir de imediato a cobrança pelas universidades, incentivem o debate acerca dos mecanismos capazes de gerar maior justiça no sistema de ensino superior”, continua a justificativa.
“Por um lado, é irrefutável que alunos advindos de colégios particulares, que, em tese, teriam mais condições financeiras de arcar com os custos de sua educação, acabam logrando maior êxito no acesso a universidades públicas”, sustenta ele, uma vez que “o nível educacional da rede pública ainda está, infelizmente, muito abaixo do ideal”.
Por outro lado, prossegue, “a cobrança indiscriminada dos mais ricos certamente acabaria por gerar uma distorção no acesso ao ensino superior público, de modo que estudantes das classes econômicas mais altas pagariam a mensalidade sem grandes problemas e estudantes das classses mais baixas gozariam do benefício da isenção total, ficando prejudicada a maior parcela da população, que se encontra nos níveis econômicos intermediários”.
Ainda segundo Bove, o PL 1.202/2023 não pretende instituir a cobrança para todos os estudantes, “como meio de contraprestação pelo serviço público de ensino superior prestado pelo Estado”, além do que “nem sequer visa angariar recursos para custear integralmente as universidades”. A proposta, alega, “almeja tão somente assegurar maior equidade e justiça entre aqueles que podem contribuir com o ensino que receberão e aqueles que não o podem”.
“Nossa luta é pela gratuidade. Não tem que pagar”, rebate deputado Carlos Giannazi
Em vídeo que circula nas redes sociais, o deputado estadual Carlos Giannazi (PSOL) classifica a proposta como absurda. “Um projeto como esse tem que ser aprovado em três comissões, e mesmo assim a gente pode obstruir, tem que ter acordo entre todos os líderes partidários para que ele entre em votação, e com certeza nunca haverá acordo para esse projeto entre nem na pauta”, diz ele.
“É um absurdo cobrar mensalidade de quem estuda em universidade pública. A nossa luta é pela gratuidade. Nós queremos mais universidades públicas, mais câmpus espalhados pelo Estado de São Paulo, para que nossos alunos, sobretudo aqueles das escolas públicas, possam ingressar nessas universidades. Não tem que pagar”, sustenta o deputado da Oposição.
O professor sênior Otaviano Helene, do Instituto de Física (IF), ex-presidente do Inep-MEC, observa que o documento do Banco Mundial ao qual o deputado Bove se refere na justificativa do projeto de lei foi elaborado com a finalidade de embasar o texto “Ponte para o Futuro”, que serviu de base programática ultraliberal ao governo de Michel Temer (MDB) e a medidas como o “teto de gastos”. “Contou com ‛valiosos […] comentários e a orientação’ (Agradecimentos, p. 3) de uma grande coleção de pessoas de vários ministérios. Isenção zero”, destaca Otaviano, em declaração prestada ao Informativo Adusp Online.
“Em nenhum momento, quer no projeto, quer na justificativa, o deputado cita como sua proposta poderia contribuir para melhorar a educação e a formação de quadros profissionais para o país”, diz ainda o docente do IF. “Se o raciocínio dele fosse válido (que as pessoas paguem pelos serviços públicos na proporção de sua condição financeira), deveria estender para outras situações, como saúde, justiça, segurança, transporte etc. Por exemplo, o valor dos pedágios dependeria da renda das pessoas que passam pelas estradas; Boletim de Ocorrência (BO) gratuito apenas para pessoas pobres”.
No entender do professor César Minto, ex-presidente da Adusp, “iniciativas semelhantes ocorrem de tempos em tempos”, e cumprem o papel de tentar desqualificar uma das poucas oportunidades abertas à população mais pobre, mais subalternizada, que é a de frequentar uma escola superior pública. A seu ver, o projeto de Bove serve também para “municiar setores da elite social, que se manifestarão, mais uma vez, inclusive nos editoriais de jornais de circulação nacional, por meio de um falacioso discurso moral de que as universidades públicas estão repletas de estudantes abonada(o)s”.
Nesta quarta-feira (9/8), a Diretoria da Adusp emitiu nota contra o PL 1.202/2023. “Mais uma vez, rebateremos tal iniciativa inconstitucional com argumentos”, afirma Minto, que é docente aposentado da Faculdade de Educação e integrante do GT-Educação da Adusp.
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