“Não são as plataformas que estão a serviço das escolas; as escolas é que estão a serviço das plataformas”, conclui Nota Técnica do Gepud e da Repu sobre política adotada na rede estadual sob Feder e Tarcísio
Equipamentos em escola pública: número insuficiente e excesso de exposição a telas (Foto: Governo de São Paulo)

A política de adoção do uso obrigatório de plataformas digitais na gestão e na prática pedagógica das escolas estaduais, a chamada “plataformização”, vigente desde 2024 na rede estadual paulista, amplia a sobrecarga de trabalho, prejudica a autonomia dos(as) profissionais da educação e apresenta retornos insatisfatórios em termos de melhoria de aprendizagem dos(as) estudantes.

As conclusões fazem parte da Nota Técnica “Plataformização e controle do trabalho escolar na rede estadual paulista”, recém-publicada pelo Grupo Escola Pública e Democracia (Gepud) e pela Rede Escola Pública e Universidade (Repu). Participaram da elaboração da nota as professoras Vera Bohomoletz Henriques, do Instituto de Física da USP e da Frente Popular em Defesa da Escola Pública; Andreza Barbosa, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e integrante do Gepud e da Repu; Márcia Aparecida Jacomini, da Universidade Federal de São Paulo e também integrante dos dois grupos; e Leonardo Crochik, do Instituto Federal de São Paulo e membro do Repu.

O projeto de “plataformização radical do ensino na rede estadual” desenvolvido pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) envolve cinco pontos principais, identifica a Nota Técnica: adoção de materiais didáticos digitais (slides) para uso obrigatório em sala de aula, acompanhada da aquisição de plataformas digitais de conteúdo e exercícios para uso pelos(as) estudantes; migração dos processos de formação docente em serviço na rede estadual para plataformas centradas em videoaulas e no uso dos materiais didáticos digitais; aquisição e adoção de plataformas para o controle e fiscalização de todos os aspectos da vida escolar, consumindo o tempo de trabalho de gestores(as) e docentes e o tempo de aprendizagem dos(as) estudantes; acompanhamento centralizado do acesso e do tempo de uso das plataformas digitais, atrelado a potenciais punições a gestores(as) e docentes, instaurando um clima de competitividade, ansiedade e medo nas escolas; fortalecimento do discurso que associa o uso das plataformas à melhoria de resultados no Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp).

A análise aponta a falta de transparência da Seduc-SP quanto ao funcionamento e os conteúdos das ferramentas digitais. Há plataformas, como o “Super BI”, que centralizam indicadores que impactam diretamente na avaliação do trabalho docente e da gestão escolar.

“Esses instrumentos passam a orientar práticas como o registro diário de frequência, o envio de tarefas, o cumprimento de metas de utilização de ferramentas digitais e a participação em formações obrigatórias”, diz o documento.

A Nota Técnica ressalta que, embora as plataformas digitais sejam hoje onipresentes na rede estadual paulista, “não há praticamente nada disponível sobre elas no site da Seduc-SP”. Para acessá-las, “é preciso estar na gestão da educação estadual, das Diretorias de Ensino ou das escolas e ter senhas de acesso”.

O tema também foi tratado no Simpósio Internacional Plataformização e Privatização da Educação Pública, realizado na Faculdade de Educação da USP no dia 1o. de julho, que contou com a participação de pesquisadores(as) ligados à produção da Nota Técnica. A íntegra dos debates está disponível no YouTube.

“Eu vou cobrar resultado, então foquem no resultado”, diz o secretário Feder

Além de pouco transparente, o modelo é bastante caro. Em 2024, o governo paulista destinou R$ 471 milhões para a aquisição de plataformas, “contratadas sem a apresentação de evidências de sua eficácia pedagógica”, dizem as entidades. “Os pareceres utilizados para justificar as compras carecem de fundamentação técnica e não consideram os impactos negativos do uso prolongado de telas na aprendizagem.”

Vale lembrar que a Seduc-SP é comandada por Renato Feder, empresário que construiu carreira como diretor e acionista da Multilaser, companhia que produz equipamentos digitais e que tem contratos firmados exatamente com o governo do Estado de São Paulo.

A pressão para o atingimento de resultados se dá não apenas em relação ao desempenho em avaliações como o Saresp, “mas também sobre a obtenção dos índices das plataformas que se baseiam na realização de tarefas, no tempo dedicado à leitura de textos, na escrita de redações, nos registros de frequência e detalhamento da utilização dos slides nas aulas, na realização de formações pasteurizadas ofertadas pela EFAPE [Escola de Formação dos Profissionais da Educação “Paulo Renato Costa Souza”]”.

Governo de São PauloGoverno de São Paulo
Renato Feder com Tarcísio de Freitas: o que interessa é “resultado”

Em live no dia 29 de janeiro de 2025, realizada como parte das atividades de planejamento de início do ano letivo direcionadas aos e às docentes de todas as escolas da rede, o secretário Feder foi enfático ao ressaltar que 2025 seria o “ano da autonomia”, com a Seduc-SP fornecendo as “ferramentas” necessárias e cobrando os “resultados”. A Nota Técnica reproduz trechos da fala do secretário:

“O que a gente quer é resultado, resultado. Então eu não tô aqui para ser legal, para ser sorridente, para falar que estamos todos juntos e unidos e que vai dar tudo certo e tal. O resultado precisa acontecer na tua escola (…), então vai ser o ano da autonomia. Vamos parar de ficar sugerindo passo a passo, cobrando passo a passo, que o que a gente quer é resultado. Principalmente resultado no Saresp, resultado no Saeb [Sistema de Avaliação da Educação Básica] e tudo que eu vou fazer esse ano, o que esperar da Secretaria esse ano é apoiar, dar as ferramentas e cobrar resultado. Eu vou cobrar resultado, então foquem no resultado.”

A utilização das plataformas consome parte considerável do tempo do trabalho de docentes e gestores(as), obrigados(as) a registrar em detalhes todo o trabalho que realizam, além de substituir as interações entre professores(as) e estudantes “pela gestão do preenchimento burocrático de tarefas digitais, assumido por todos os sujeitos escolares”. “Não é surpreendente, portanto, que a plataformização do ensino na rede estadual paulista tenha impactos profundamente deletérios sobre os/as profissionais da educação”, diz o documento.

Profissionais relatam perda de autonomia e assédio; virei “babá de plataforma”, diz professor

Professores(as) da rede estadual deram informações para a Nota Técnica, mas mantiveram o anonimato por medo de represálias. “A Repu e o Gepud lamentam que servidores públicos se sintam ameaçados por fornecerem dados que deveriam estar facilmente disponíveis a toda a população. Após vários anos produzindo Notas Técnicas com vistas a aumentar o controle social das ações estatais na educação, é desanimador perceber que os governos, tipicamente engajados na defesa das ‘evidências’ nas políticas educacionais, sigam tentando – inclusive por meio do assédio e da perseguição a educadoras/es – dificultar o acesso de pesquisadores/as independentes a dados públicos”, diz o documento.

Relatos de professores(as) da rede estadual apontam vários efeitos deletérios da plataformização sobre o cotidiano escolar, prosseguem o Gepud e o Repu. Entre esses efeitos estão: “perda de autonomia pedagógica, pressão para o registro da presença de estudantes ausentes, sobrecarga de trabalho administrativo, preenchimento burocrático de tarefas e ameaças constantes de sanções, como cortes salariais e não renovação de contratos de docentes temporários(as)”. A gestão escolar também é afetada, uma vez que diretores(as) ficam sujeitos(as) até a ser removidos(as) pelo tempo insuficiente de uso das plataformas.

Os depoimentos de docentes atestam as pressões. “Colegas estão sendo assediados o tempo todo para cumprir metas focadas em plataformas que não corroboram para a aprendizagem dos alunos. Nada importa além de frequência sem aprendizado, plataformas sem aprendizado. Se não tem meta alcançada, cessação quando [diretor escolar] designado e afastado quando titular. A população precisa entender que ficar ditando em computador, fazer uso de IA para copiar e colar na plataforma ‘Redação Paulista’, fazer games para aprender Matemática, não capacita os alunos para seguir na sua carreira acadêmica, não gera aprendizado”, diz um testemunho.

Um professor de Inglês se define como “refém da plataforma SPeak”: “Os alunos perguntam por que não há aula e respondo que é para realizarem a plataforma, pois é o principal. Além disso, somos cobrados incessantemente pela gestão quando alguns alunos não fazem a tarefa da semana, como se fôssemos os culpados, sendo que na sala chegamos a ter 53 alunos ativos por sala. Me sinto frustrado, achei que daria aula, mas na verdade eu sou ‘babá de plataforma’.”

Um professor com quase 18 anos de magistério na rede estadual testemunha: “Ao atravessar pouco mais da metade da carreira, posso recordar a quantidade de turmas que ajudei a formar e de políticas públicas que presenciei ao longo dos anos. A partir dessa experiência, afirmo que a rede nunca viveu tal angústia, instabilidade e assédio como ocorre nesses últimos tempos, em que uma política de Business Intelligence (BI) força a educação a adequar-se a uma natureza estranha e pouco transparente de indicadores e metas. No entanto, deve ser reconhecido por toda a sociedade que a política atual, implantada pela Seduc-SP, sob o comando de Renato Feder, é antieducativa, cruel e agressiva”.

O professor prossegue: “É antieducativa, posto que sujeita o tempo do educar ao cumprimento das variadas metas das plataformas. Ambiente tenso, onde estudantes e educadores se encontram pressionados para atingir índices dissociados da sua realidade escolar. Realidade tão distópica, que transforma a liberdade leitora em um exercício de virar páginas, sob monitoria e controle do tempo. E no qual o esforço do aprender perde espaço para a preocupação com tais metas, cujo insucesso resulta na expectativa de sanções. É cruel, posto que a escola, agora um adoentado galpão produtor de índices, tem como aparelhos para atingi-lo o uso dos tablets e dos computadores: contudo, estes sempre faltam ou acabam forçosamente desgastados pelo uso, das sete da manhã às onze horas da noite. Em minha escola, cerca de 900 estudantes dispõem de uma centena desses aparelhos. Consideremos a eficácia dessa linha de produção para a conquista das metas. Crua e insensível aos fatos, essa política é agressiva. Assim, obcecados pelo cumprimento das metas, os diferentes níveis da gestão e da vida escolar são conduzidos por uma rotina de ameaças e cobranças. Uma realidade sob o registro de resoluções que prometem cessar diretores, o que já ocorre em algumas escolas.”

Uso das plataformas reforça controle e esgarça relações na comunidade escolar

Entre as considerações finais, a Nota Técnica afirma que “a política de plataformização do ensino promovida pela Seduc-SP foi implementada sem o direito de contestação dos/as profissionais da educação atuantes na rede estadual paulista” e que o uso das plataformas digitais “não tem correlação com a melhoria dos desempenhos das escolas estaduais no Saresp, o que invalida o principal argumento da Seduc-SP para justificar a aquisição massiva desses insumos digitais”.

Pelo contrário, prossegue, “a obrigatoriedade da utilização das plataformas, o rígido monitoramento dos acessos e do tempo de uso por professores/as e estudantes e o estabelecimento de punições para gestores/as de escolas que não atinjam as metas de uso definidas pela Seduc-SP, permitem concluir que a adoção dessas ferramentas digitais visa unicamente reforçar um controle centralizado de todos os processos da vida escolar”.

Reprodução da Nota TécnicaReprodução da Nota Técnica
Plataformas digitais acessíveis a gestores(as) de escolas públicas

A prática tem levado “ao esgarçamento das relações de confiança entre os atores escolares, uma vez que o não atingimento dos índices das plataformas estabelece uma cadeia de responsabilizações cruzadas que, no limite, leva a situações de burla e fraude na realização de atividades pelos/as estudantes e – como informam os relatos de professores/as coletados na pesquisa – no registro de informações como a frequência dos/as estudantes nas aulas”.

“Longe de indicar desvios morais, esse quadro decorre do fato de que indicadores definidos externamente às escolas e desenhados para produzir um ambiente intimidatório e punitivo, necessariamente levarão os sujeitos escolares a se adaptarem às rotinas impostas pelas plataformas”, diz a Nota Técnica.

O Gepud e a Repu consideram que “seria prudente e necessário que a Seduc-SP introduzisse as tecnologias digitais na rede estadual de forma paulatina, garantindo uma ampla participação das comunidades escolares nos processos decisórios e respaldando-se em estudos científicos, não nos interesses empresariais dos setores de tecnologia em vender seus produtos, ao custo da destruição da escola pública de formação humanística, científica e cidadã (Maldonado; Jacomini, 2025)”.

A Nota Técnica ressalta ainda que “vincular o cumprimento de metas de uso de plataformas à remoção de diretores escolares afronta a legislação educacional brasileira, que desde a Constituição Federal de 1988 prevê a liberdade de ensinar, o pluralismo de concepções pedagógicas e a gestão democrática da escola pública”.

O uso exacerbado das plataformas, diz o documento, “tem produzido desinteresse e cansaço nos/as estudantes, indo na contramão de uma vasta produção científica contemporânea e das práticas de países desenvolvidos que vêm repensando a utilização das tecnologias digitais e o tempo de uso de telas por crianças e adolescentes”. Além disso, “as plataformas retiram dos/as professores/as a essência da atividade docente: o planejamento, a organização e a condução de suas aulas”.

“Não são as plataformas que estão a serviço das escolas; as escolas é que estão a serviço das plataformas”, conclui a Nota Técnica. “A plataformização do ensino na rede estadual paulista, nesse sentido, não tem qualquer relação com a oferta de processos educativos qualificados, capazes de propiciar as necessárias e adequadas condições de aprendizagem e formação dos/as estudantes.”

EXPRESSO ADUSP


    Se preferir, receba nosso Expresso pelo canal de whatsapp clicando aqui

    Fortaleça o seu sindicato. Preencha uma ficha de filiação, aqui!