Após críticas e ordem judicial, Tarcísio e Feder recuam e mantêm São Paulo no PNLD; Faculdade de Educação defende livros impressos e repudia “medidas inaceitáveis” da Seduc
Tarcísio e Feder: críticas e liminar da Justiça levam a recuo (foto: Governo do Estado)

Depois das críticas que sofreu de todos os lados —educadore(a)s, sindicatos, parlamentares, entidades acadêmicas e do mercado editorial etc. — e de uma derrota judicial, o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos)-Felício Ramuth (PSD) anunciou, nesta quinta-feira (17/8), que rescindiu o contrato para a compra de 200 milhões de livros digitais para uso na rede estadual. O contrato, no valor de R$ 15,2 milhões, foi firmado sem licitação, de acordo com a Folha de S. Paulo.

No dia anterior, o governo já havia recuado da decisão de não utilizar os livros do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) em 2024.

Em nota publicada na quarta-feira (16/8) em seu site, a Secretaria da Educação (Seduc) diz que no ano que vem “os alunos terão à disposição tanto o material baseado no Currículo Paulista quanto os livros didáticos fornecidos pelo MEC (Ministério da Educação)”.

“A decisão de permanecer no programa no próximo ano se deu a partir da escuta e do diálogo com a sociedade, que resultou no entendimento de que mais esclarecimentos precisam ser prestados antes de que a mudança seja efetivada”, afirma candidamente a nota, parecendo esquecer o procedimento truculento e atabalhoado que havia levado o governo a anunciar a saída do PNLD.

“A Secretaria acredita que o mais importante agora é planejar 2024 com foco no alinhamento desses materiais, buscando a coerência pedagógica, a qualidade no conteúdo das aulas ministradas e estabelecendo amplo diálogo para aperfeiçoar o trabalho dos professores”, prossegue a nota.

A Seduc não explicita o que entende por “alinhamento desses materiais” e “coerência pedagógica”. Também deixa no ar dúvidas sobre como avalia a “qualidade no conteúdo das aulas ministradas” e “o trabalho dos professores”, que afinal é preciso “aperfeiçoar”. Talvez fosse o caso de publicar outra nota para explicar a primeira.

TJ-SP concede liminar em ação que cita vínculo de Feder com empresa que vende material ao Estado

O comunicado da Seduc foi divulgado no mesmo dia em que o juiz Antonio Augusto Galvão de França, da 4ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), concedeu liminar na qual suspende “todos os efeitos do ato administrativo de retirada do Estado de São Paulo” do PNLD.

A “repentina retirada” do Estado do PNLD “configura, em princípio e em tese, patente violação ao princípio constitucional da gestão democrática que deve pautar o sistema de educação pública (artigo 206, inciso VI, da Constituição Federal), que exigiria, para a implementação de medidas como a ora em tela, profundo e amplo debate com representantes da comunidade acadêmica, dos estudantes, Conselhos Escolares, dentre outros agentes e gestores do sistema educacional do Estado de São Paulo”, considera o juiz.

A saída do programa “poderá importar na impossibilidade de os estudantes do ensino fundamental receberem as obras do PNLD” e, portanto, “a abrupta desconstituição administrativa da adesão ao programa é, em tese, apta a gerar sérios prejuízos à formação escolar dos estudantes e, também, ao erário estadual”, diz o magistrado na liminar. A urgência da decisão, explica França, se deve à proximidade do fim do prazo para adesão ao PNLD de 2024, que vai até a próxima quarta-feira (23/8).

O juiz atendeu a pedido formulado em ação civil pública impetrada pela deputada federal Luciene Cavalcante, pelo deputado estadual Carlos Giannazi e pelo vereador Celso Giannazi, todos do PSOL.

Na ação, o(a)s parlamentares argumentam que a decisão implica prejuízo de cerca de R$ 200 milhões aos cofres estaduais, “correspondendo ao montante do valor dos livros didáticos distribuídos pelo programa do Governo Federal”.

Além disso, lembram, o secretário da Educação, Renato Feder, é acionista e ex-CEO da Multilaser Industrial S.A., “a qual possui contratos com a pasta de educação estadual”.

De fato, Feder construiu sua trajetória profissional como empresário e não tem nenhuma experiência em sala de aula. Tomou posse na secretaria poucos dias depois da assinatura de um contrato de R$ 76 milhões entre o governo paulista e a Multilaser para a compra de notebooks. Em 2021 e 2022, a empresa recebeu mais de R$ 192 milhões do Estado pela venda de equipamentos à Seduc.

Em 2020, a Multilaser vendeu tablets para o(a)s aluno(a)s da rede municipal de São Paulo utilizarem no ensino remoto durante a pandemia. Os equipamentos, com os chips de acesso à Internet da Claro e da Oi Móvel comprados pela Prefeitura, só foram entregues em agosto de 2021, um ano e meio depois da suspensão das aulas presenciais.

Ligado a Gilberto Kassab, secretário de Governo e Relações Institucionais de Tarcísio, Feder chegou a ser cotado para ocupar o Ministério da Educação no lugar de Abraham Weintraub no governo Jair Bolsonaro (PL). Na época, era secretário da Educação no Paraná, onde ampliou a rede de escolas “cívico-militares”, tentou implantar o projeto privatista “Parceiro da Escola” e criou a plataforma Leia Paraná, nos moldes da que pretendia introduzir com os livros digitais em São Paulo.

Outra medida de Feder que revoltou a comunidade escolar e levou deputados da oposição a encaminhar representações ao Ministério Público de São Paulo (MP-SP) foi a invasão dos celulares de milhares de professore(a)s da rede pública estadual e pais de aluno(a)s para a instalação, sem consentimento, do aplicativo “Minha Escola”.

Feusp repudia ideia de abandonar o PNLD e condena chacinas da Polícia Militar

A Faculdade de Educação da USP (Feusp) se somou a outras entidades e instituições que repudiaram a decisão da Seduc de abandonar o PNLD. “Esta Faculdade de Educação reitera o valor inestimável do livro como artefato cultural que enriquece não apenas as práticas escolares de letramento, como também as práticas de letramento em contextos familiares, as quais, por vezes, revelam-se escassas”, diz nota divulgada pela unidade na última terça-feira (15/8).

A Feusp reitera “o valor inestimável da autonomia da escola e da liberdade de cátedra dos(as) professores(as) na escolha e mesmo na elaboração de materiais didáticos, bem como na produção e planejamento de suas aulas, refutando o desejo de controle e padronização sob o pretenso argumento de ‘coerência pedagógica’”.

A nota diz também que, ao recusar o PNLD, o governo do Estado “nega o importante papel do livro didático na ampliação do repertório letrado dos(as) estudantes, sobretudo em contextos familiares menos favorecidos, demonstrando não apenas falta de responsabilidade pedagógica, mas também descaso político com uma agenda educacional e científica compromissada com a democratização do conhecimento e o combate à desigualdade social”.

A Feusp repudia ainda “outras medidas inaceitáveis da Seduc que afrontam a liberdade de cátedra, como a atual determinação autoritária de diretores e coordenadores das instituições estaduais assistirem, duas vezes por semana, as aulas ministradas pelos(as) professores(as) de suas respectivas escolas e elaborarem relatórios (formulários denominados Instrumentos de apoio presencial), os quais, entre outros aspectos subjetivos, devem registrar o ‘clima da sala de aula’, informação a ser enviada à Secretaria de Educação”.

“Tais procedimentos de constrangimento, controle e vigilância não só ferem a autonomia dos(as) professores(as) como cerceiam o direito à liberdade de ensinar e aprender, além de pressupor a ignorância dos diretores quanto ao trabalho realizado pelos professores das escolas que dirigem”, prossegue a nota.

A Feusp encerra o texto com uma manifestação de repúdio às operações policiais no Estado “que têm promovido chacinas, em especial de jovens e crianças e demais pessoas da população trabalhadora em territórios populares e negros”, e chama a atenção “para o impacto preocupante da ação repressiva do Estado no conjunto dos direitos humanos, inclusive no direito à educação, com a suspensão de aulas e ameaças à segurança de alunos(as) e professores(as) das escolas”.

Material da Seduc tem erros conceituais e má contextualização, afirma Repu

Os conjuntos de slides oferecidos pela Seduc e que seriam utilizados como único material a partir do ano que vem exibem “problemas metodológicos, erros conceituais e má contextualização”, diz nota técnica elaborada pela Rede Escola Pública e Universidade (Repu). A rede envolve professore(a)s e pesquisadore(a)s de universidades públicas (USP, Unicamp, UFABC, UFSCar e Unifesp), do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) e professore(a)s da rede estadual.

A nota técnica apresenta vários exemplos retirados do material destinado a diferentes disciplinas, inclusive daquela chamada “Projeto de vida” para aluno(a)s do terceiro ano do ensino médio.

Entre os problemas metodológicos apontados estão: “linguagem inadequada à idade dos/as estudantes, ‘comandos’ ambíguos, excesso de atividades ou conteúdos, falhas nas sequências didáticas”.

Já os erros conceituais incluem “conteúdo ultrapassado, imagens/modelos geradores de concepções alternativas [concepções dos/as estudantes sobre determinados fenômenos que não coincidem com a forma como a ciência os explica ou interpreta], uso incorreto de teorias e conceitos científicos, erros grosseiros”, enquanto a má contextualização é caracterizada por “informações/dados equivocados ou insuficientes, exemplos descolados da realidade”.

A nota chama a atenção para o fato de que o processo de avaliação pedagógica dos materiais didáticos do PNLD é coordenado pelo MEC “e conta com comissões técnicas integradas por especialistas das diferentes áreas do conhecimento, escolhidos a partir de indicações de entidades representativas dos entes federados, como o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), as Universidades e outras instituições científicas”.

Os “rigorosos sistemas de controle de qualidade do PNLD” certamente exigiriam revisão global, correção e/ou adequação dos materiais oferecidos pela Seduc, dada a “recorrência de erros conceituais, a inadequação de exercícios e atividades dirigidas e diversos outros problemas identificados”, afirma a Repu.

“Diferentemente do que anunciou o secretário Renato Feder, é o material produzido pela Seduc-SP que apresenta problemas de aprofundamento e qualidade”, e não o do PNLD, considera a rede.

A nota técnica ressalta ainda que a proposta de adotar um material didático único “fere o princípio constitucional da pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas, retirando de professores/as e estudantes a possibilidade de organizarem as aulas a partir de material diversificado e aprofundado, com evidentes prejuízos às aprendizagens na rede estadual”.

“Não há evidências na literatura científica das áreas de Educação e Ensino de que o estreitamento do acesso a recursos didático-pedagógicos traga qualquer benefício aos processos de ensino e aprendizagem”, diz a Repu.

“O que está em jogo nesta decisão é a retirada de materiais didáticos que vêm orientando os processos de ensino e de aprendizagem nas escolas públicas (e também nas privadas) há várias décadas, elaborados de forma mais republicana, transparente e cuidadosa do que os conjuntos de slides produzidos e distribuídos às escolas estaduais pela Seduc-SP”, finaliza a nota técnica.

EXPRESSO ADUSP


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