Ação contra a Resolução 4.224/1995
“O Ensino na USP e os Direitos Humanos: a transversalidade da diversidade e dos direitos nos programas de ensino”
Pronunciamento que o professor César Augusto Minto, presidente da Adusp, faria na mesa de mesmo nome, que abriria a programação do III Seminário do Núcleo dos Direitos “Universidade Responsável: Educação dos Direitos e a construção da Cidadania”, agendado para 24/8/2015 na Cidade Universitária. Este evento foi suspenso pela PRCEU e só ocorreu, reformatado e desfigurado, em 4/12/2015, sendo que a Adusp foi “desconvidada”.
César Augusto Minto
Bom dia a todas as pessoas presentes, tanto no plenário como na mesa.
Consideramos muito importante a realização deste III Seminário, seja pelo tema escolhido, seja pelo momento oportuno em que ele ocorre. Contudo, gostaríamos de registrar o fato de que o formato adotado para o evento talvez não seja o mais apropriado, por conta da falta ou da previsão de pouco tempo para que as pessoas presentes no plenário possam participar, intervindo efetivamente.
Feito este registro, passamos a tecer algumas considerações sobre a temática proposta. Faremos isso em dois blocos distintos.
I
O título desta mesa diz muito, com destaque para a expressão “a transversalidade da diversidade e dos direitos humanos nos programas de ensino”. Neste caso, compreendendo-a, em síntese, como tema transversal, como ela está expressa nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, Apresentação dos Temas Transversais – Ética, MEC, 1997, p. 29)1:
“Por tratarem de questões sociais, os Temas Transversais têm natureza diferente das áreas [de conhecimento] convencionais. Sua complexidade faz com que nenhuma das áreas, isoladamente, seja suficiente para abordá-los. Ao contrário, a problemática dos Temas Transversais atravessa diferentes campos do conhecimento.”
Ou seja, a busca de tratamento adequado dos temas transversais nos diferentes programas de ensino, nos diversos cursos, parece-nos ser algo objetivo e que constitui uma necessidade já consensualmente estabelecida.
Ocorre-nos então que, por meio da expressão “transversalidade da diversidade”, se reconhece a existência de uma gama muito grande de questões relacionadas a “temas transversais” (tanto no que se refere aos direitos humanos, como a muitos outros temas também transversais…) que, portanto, precisam ser contemplados nos diferentes programas de ensino, nos diversos cursos.
A título de exemplo, o documento PCN elenca como temas transversais: Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual e, por certo, esta relação (talvez consensual no final dos anos de 1990) se já não foi deve ser ampliada, pois ela não esgota outros eventuais temas transversais, se assim fosse estariam excluídas algumas temáticas consignadas como direitos sociais na Constituição Federal de 1988:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 64, de 2010).
Nossa preocupação aqui se restringe apenas a de ressaltar duas questões: 1ª) há um número muito grande de aspectos relativos aos direitos humanos que precisam ser caracterizados como temas transversais nos diversos campos/áreas do conhecimento; e 2ª) a questão: como tratar tais aspectos nos diferentes programas de ensino, nos diversos cursos?
Reparem vocês que não nos preocupamos aqui com títulos ou nomenclaturas desses aspectos, mas sim com aquilo para o qual Marilena Chauí (1989, p. 19-20) já nos chamou a atenção – a importância da declaração de direitos:
“A prática de 'declarar' direitos significa, em primeiro lugar, que não é óbvio para todos os homens que eles são portadores de direitos e, por outro lado, significa que não é um fato óbvio que tais direitos devam ser reconhecidos por todos. A declaração de direitos inscreve os direitos no social e no político, afirma sua origem social e política e se apresenta como objeto que pede o reconhecimento de todos, exigindo o consentimento social e político”.
Assim, é tarefa relevante tratar, nas instituições educacionais, de cada um dos componentes dos direitos humanos, de modo a caracterizar suas interfaces com as diferentes áreas de conhecimento e, em cada uma dessas áreas, com seus respectivos programas, fazendo as devidas conexões com outros aspectos correlatos e considerando que sua abrangência extrapola aquela área ou aquele programa. Essa tarefa relevante precisa ser enfrentada sempre, cotidianamente.
Não por acaso, o Parecer nº 2 do CNE, de junho 2015, que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a formação inicial e continuada dos profissionais do magistério da Educação Básica, prevê que:
“Os cursos de formação deverão garantir nos currículos conteúdos específicos da respectiva área de conhecimento e/ou interdisciplinar, seus fundamentos e metodologias, bem como conteúdos relacionados aos fundamentos da educação, formação na área de políticas públicas e gestão da educação, seus fundamentos e metodologias, direitos humanos, diversidades étnico-racial, de gênero, sexual, religiosa, de faixa geracional, Língua Brasileira de Sinais (Libras), educação especial e direitos educacionais de adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas.” (Capítulo V, Art. 15, § 3º)
Reiteramos: é significativo que seja esta a temática deste III Seminário.
II
Passemos agora então a abordar outro aspecto que sempre nos preocupa muito – a coerência entre o discurso e a prática.
Inicialmente, cabe lembrar que o discurso pode cumprir um papel importante na defesa ideológica de uma determinada concepção ou de concepções, mas é, sem dúvida, a prática que de fato cumpre um inequívoco efeito exemplar.
Dito de outra forma: se não houver coerência entre discurso e prática, entre retórica e ações concretas, entre intenção e gesto, o discurso ou intenção pode resultar apenas e tão-somente em inoperância, se não houver correspondência entre discurso e ação concreta e entre intenção e gesto…
Mas, por certo, não é razoável supor que seja isto o que se almeja na USP!
Em qualquer instituição educativa, em especial, é necessário que a conduta institucional guarde correspondência entre o estágio de compreensão e de conhecimento a que se chegou em suas diversas áreas e o que os cursos dessas respectivas áreas oferecem às pessoas que a eles têm acesso.
Desse modo, é absolutamente improducente e socialmente nocivo que, por exemplo, em uma universidade pública como a USP não haja sintonia entre o que se ensina e se pesquisa e aquilo que de fato se faz nos diversos campos de atuação institucional, obviamente, guardando relação com os direitos humanos.
Enquanto tema transversal, os direitos humanos devem impregnar todas – absolutamente todas – as atividades realizadas por esta e nesta Universidade, incluindo, portanto, o Ensino, a Pesquisa e a Extensão.
Mas será que é isto que tem acontecido?
Argumentamos que não é bem isso que tem ocorrido. Senão, vejamos.
Considerando:
- o modo como a USP tem se esquivado de superar a falta de democracia decorrente da sua estrutura de poder — por exemplo, a manutenção de estrutura fortemente centralizada e hierarquizada, que sequer respeita a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) no que se refere à composição de seus órgãos colegiados, privilegiando a participação de docentes, em especial de professores titulares, em detrimento de funcionários técnico-administrativos e estudantes;
- algo à semelhança pode-se dizer da eleição de reitor ou reitora da USP, que em pleno século XXI continua indireta, sendo que da eleição de dezembro de 2013 participaram apenas pouco mais de 1.800 pessoas, das cerca de 116 mil pessoas que compõem a comunidade da USP. A chapa Zago-Vahan foi eleita com 1.206 votos. A título de comparação, o reitor da UFRJ acaba de eleger-se com 13 mil votos diretos no segundo turno, em sistema de voto universal com ponderação paritária e numa eleição na qual votaram 20 mil pessoas entre professores, funcionários e estudantes;
- a apologia à implantação de pretensa “meritocracia”, que não raro ignora direitos elementares de docentes, funcionários e estudantes, bastando aqui citar dois exemplos: 1º) o modo como as regras de produtividade impostas a docentes e programas de pós-graduação migraram para a graduação, por meio de restrições à concessão de bolsas de iniciação científica, bolsas Pibic: o que prevalece é a classificação dos docentes nos ranqueamentos da pós-graduação, nada importando a qualidade do projeto do estudante da graduação; 2º) os critérios meritocráticos aplicados pelas comissões avaliadoras que atuaram no programa de progressão horizontal na carreira, que em diversos casos terminaram por comparar docentes a seus pares;
- a violação de diversos itens constitutivos dos direitos humanos, como fez, por exemplo, a atual gestão reitoral ao desmantelar creches e hospitais por meio da Resolução 6.987, de 13/11/2014, que instituiu o Programa de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV), sem estudo prévio sobre eventuais conseqüências;
- o desrespeito freqüente a direitos previdenciários e trabalhistas, obrigando os servidores a recorrer aos tribunais para garantir direitos básicos: à insalubridade, à estabilidade no emprego, à aposentadoria segundo a legislação constitucional vigente (e não aposentadoria segundo normas internas superadas pelo ordenamento jurídico, como a Resolução 4.224, de 28/11/1995, na gestão Fava);
- a submissão a interesses particulares, por intermédio da realização de “parcerias” com fundações privadas ditas “de apoio” e outras entidades semelhantes, desvirtuando a função social da universidade, como mostram as graves revelações sobre a Fundação Universidade de São Paulo (FUSP) e sobre a indústria de cursos pagos existente na USP, em clara violação do Art. 207 da CF/1988 e da Súmula Vinculante 12 do Supremo Tribunal Federal (STF);
- a ausência de mínimo respeito ético, favorecendo a ocorrência de inúmeras arbitrariedades em procedimentos administrativos como: concursos, definição de critérios para progressão na carreira etc.;
- a criação de um clima de insegurança, provocada pela ação da CERT, por conta da ameaça de retirar docentes que, além de concursados para trabalhar em RDIDP possuem atividade acadêmica reconhecida pelo departamento/unidade;
- a renúncia ao exercício de autonomia, sujeitando-se a políticas das agências de fomento, que passam a referenciar de fato as diversas atividades acadêmicas;
- na mesma linha de raciocínio, é inevitável lembrar que a Reitoria ensaia delegar quase inteiramente à Secretaria de Estado da Segurança Pública e à Polícia Militar a responsabilidade pela segurança da Cidade Universitária, em detrimento da Guarda Universitária e apesar de ser a PM de São Paulo, como até a ONU reconhece, uma das mais violentas polícias do mundo e, sobretudo, ignorando o conteúdo do documento sistematizado pela professora Ana Lúcia Pastore (“Por uma nova política de segurança na Universidade de São Paulo – avaliação da situação atual e propostas”, de 26 de janeiro de 2015);
- aliás, cabe lembrar ainda que, em momentos anteriores, outras administrações autorizaram a invasão de unidades e campi por tropas de choque da PM;
- mais, a criação, pela Procuradoria Geral da USP, de uma Procuradoria Disciplinar, de caráter abertamente repressivo e que forneceu subsídios para a expulsão de vários estudantes por motivos políticos; ainda hoje, neste exato momento, tramita processo disciplinar contra estudantes que são membros do Conselho Universitário, pela simples razão de haverem realizado protestos e haverem falado em voz alta nas reuniões do colegiado! Lembrando que o Regimento Disciplinar de 1971, copiado da Ditadura Militar, foi utilizado para expulsar estudantes na gestão Rodas e continua em pleno vigor na USP!;
- a abertura de processos contra dirigentes sindicais em pleno exercício de mandato eletivo e até demissão de um deles, Claudionor Brandão, por razões políticas;
- o descompromisso com o meio ambiente e com a saúde dos trabalhadores e estudantes da USP, como demonstrou, inicialmente, a construção do campus da EACH em Área de Proteção Ambiental (APA) e, por outro lado, em glebas altamente contaminadas por substâncias tóxicas e cancerígenas e saturadas de gás metano no subsolo; e, posteriormente, o descaso da Reitoria para com o crime ambiental ali cometido pelo diretor da unidade em 2010 e 2011;
- a ocorrência de ações/atividades violentas dirigidas a estudantes ingressantes (por exemplo, na Esalq e na FM) e de abusos sexuais e até estupros na FM, como revelado por CPI realizada recentemente na Alesp, sem providências à altura por parte dos dirigentes das unidades e colegiados competentes;
- a leniência na adoção de políticas efetivas de acesso e permanência estudantil – que sequer referendam cotas, respeitando a presença de pessoas negras, pardas e indígenas na população local;
- o descaso no que diz respeito a providenciar, direta ou indiretamente, condições mínimas de infraestrutura nos campi tais como transporte (mobilidade humana), iluminação etc.;
- a não fiscalização efetiva sequer das condições a que estão sendo submetidos os trabalhadores que realizam as atividades terceirizadas nos campi;
- a ocorrência de racismo contra estudantes de origem africana;
- a persistência de manifestações racistas e sexistas nos vários âmbitos da USP.
Enfim, apesar de a Agência USP de Promoção dos Direitos registrar a existência de 506 iniciativas de promoção de direitos nas várias unidades dos diversos campi da USP (acesso em 31/7/2015), a relação aqui mencionada mostra que, no mínimo, muito precisa ser feito.
Assim, talvez não seja excessivo lembrar que isolados, o discurso, a retórica, a intenção apenas contribuem para camuflar a inoperância, mesmo que involuntária…
Vale dizer, tudo isso precisa mudar, e se esse III Seminário contribuir nessa empreitada, por certo, terá sido de grande valia.
Esperamos que assim seja!
Agradecemos a todas as pessoas presentes pela atenção dispensada.
Referências citadas
CHAUÍ, Marilena. Direitos Humanos e medo. In. FESTER, A. C. Ribeiro. Direitos Humanos. São Paulo, Brasiliense / Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, 1989. p. 15-35.
MEC/CNE, Parecer CNE/CP nº 2/2015, aprovado em 9/6/2015. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica.
SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. “Por uma nova política de segurança na Universidade de São Paulo – avaliação da situação atual e propostas”. São Paulo, 26 de janeiro de 2015 (alps@usp.br).
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