Memória
“Arno Preis e João Leonardo da Silva, presentes!”. Emoção e depoimentos marcantes na homenagem da Faculdade de Direito a ex-alunos assassinados pela Ditadura Militar

Arno Preis e João Leonardo da Silva Rocha, opositores assassinados pela Ditadura Militar (1964-1985) em 1972 e 1975 respectivamente, foram finalmente homenageados pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (FD-USP), instituição da qual foram alunos, em cerimônia realizada no dia 11 de agosto de 2025, que contou com a presença da vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda, do diretor Celso Fernandes Campilongo, de ex-ministros e personalidades do campo democrático.

A homenagem, que teve lugar na Sala de Estudantes da FD, também contou com a presença, na mesa, de José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça e integrante da hoje extinta Comissão Nacional da Verdade (CNV); Paulo Vannuchi, ex-ministro de Direitos Humanos; Flavio Flores Bierrenbach, ex-ministro do Superior Tribunal Militar (STM); Belisário dos Santos Jr., advogado de presos políticos e ex-secretário de Justiça e Cidadania de São Paulo; Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado de presos políticos e ex-deputado federal; Ana Lanna, pró-reitora de Inclusão e Pertencimento; Aluisio Segurado, pró-reitor de Graduação; Ana Elisa Bechara, vice-diretora da faculdade; Júlia Wong, presidenta do Centro Acadêmico XI de Agosto; e Taís Gasparian, da Comissão de Direitos Humanos.

Na sua fala, Belisário resumiu a biografia dos homenageados e falou das circunstâncias em que foram executados.
“Arno Preis nasceu em 8 de julho de 1934, em Forquilhinha [Santa Catarina], terra de dom Paulo Evaristo. Era o oitavo filho de Edmundo e Paulina. Foi assassinado em 15 de fevereiro de 1972. Já era advogado, formado nessa São Francisco onde participou intensamente da vida acadêmica. ‘Enterra de qualquer jeito!’, teria sido dito com alguns palavrões ao humilde trabalhador Milton Guedes pelos policiais militares que o mataram em Goiás. Milton sabia que mais tarde alguém viria buscá-lo. E fez uma pequena pirâmide de pedra, que serviu depois para seus amigos o localizarem”, principiou Belisário.
“Arno Preis decidiu enfrentar a Ditadura pela luta armada. Foi uma decisão sua. É possível imaginar a angústia dessa decisão. Militante de organizações clandestinas, ALN [Ação Libertadora Nacional], Molipo [Movimento de Libertação Popular], foi acusado de ações armadas antes de ir para Cuba, de onde retornou em 1971”, prosseguiu.

“A falsa versão de sua morte foi anunciada pela Folha de S. Paulo em 22 de março de 1972, obedecendo a uma fórmula repetida inúmeras vezes pelos órgãos de repressão: ‘Ao ser abordado pelas forças policiais, reagiu a tiros’. Seu corpo só foi localizado em 1993, depois de longas buscas feitas por colegas de faculdade”. Uma necrópsia revelou que Arno foi torturado por seus algozes, que utilizaram contra ele “armas brancas, como facas e baionetas”.
O jornalista Luiz Maklouf Carvalho apurou a participação, nesse crime, do coronel Lício Augusto Ribeiro Maciel, notório integrante do aparato de repressão política do Exército e torturador. “Arno Preis tinha 37 anos. Falava doze idiomas”, concluiu Belisário.

Sobre João Leonardo da Silva Rocha, Belisário lembrou que ele nasceu em 4 de agosto de 1939, em Salvador, e foi assassinado em junho de 1975, em Palmas de Monte Alto, também na Bahia. “Foi diretor da Casa do Estudante. Era querido por seus amigos. Chegou a realizar alguns duelos musicais com Arno Preis. Belos músicos também, segundo se conta. Começou aqui sua militância política, intensa. Foi preso em São Paulo e libertado em troca do embaixador dos Estados Unidos, em setembro de 1969. Retornou ao país para prosseguir na luta pela derrubada da Ditadura, em novembro de 1971. Como havia decidido Brasília, ninguém que voltasse deveria permanecer vivo. Houve uma ou outra exceção”.
Para escapar da morte certa, acrescentou, João Leonardo teria se deslocado para o interior de Pernambuco, preocupado em sobreviver e em abrir nova frente de luta contra a Ditadura. Ao se despedir da noiva, deixou tudo que possuía, “um pedaço de terra para ela e seus herdeiros”. Na versão oficial ele teria sido morto pela Polícia Militar num conflito de terra, mas uma investigação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) liderada pelo jornalista Ivan Seixas concluiu que ele foi localizado pela repressão política, que o perseguiu até o interior da Bahia e o executou sumariamente. “João Leonardo tinha 36 anos”, destacou.
Arno Preis e João Leonardo foram “acadêmicos cujas vidas foram ceifadas pela Ditadura Militar”, frisou Belisário. “Eles andaram por essas arcadas, eles fizeram amigos, deixaram lembranças. Eles hoje são o signo perfeito de uma juventude morta por seus ideais, o signo perfeito de centenas de mortos e desaparecidos políticos. Suas vidas importaram muito. Nunca esquecer, não deixar que a Ditadura que levou vocês à tortura e à morte se repita”, completou.
Greenhalgh reverencia “pessoas que arriscaram a vida para o bem do país”
Luiz Eduardo Greenhalgh, que foi um dos últimos oradores do evento, decidiu prestar homenagens a diversas pessoas que participavam da cerimônia. “Aqui nesta sala há pessoas que arriscaram a sua vida para o bem do nosso país. Por pequenas circunstâncias, circunstâncias que o raciocínio não esclarece, estão vivas. Estão aqui, presentes, e continuam presentes. Eu vejo ali Aton Fon Filho, advogado. Eu vejo Takao Amano, exilado, banido, retornou: advogado. Eu vejo Reinaldo Morano Filho, médico, psiquiatra. E advogado”, disse, provocando fortes aplausos a cada um dos nomes que pronunciou.

“Eu vejo Ivan Seixas, que já foi citado várias vezes, pelo Belisário, pelo José Carlos Dias. Mas Ivan Seixas, 16 anos, preso com o pai, torturado no DOI-CODI [centro de torturas do Exército em São Paulo], viu o pai falecer na sua frente”, continuou Greenhalgh, puxando novos aplausos. “E está aqui, trabalhando permanentemente para o esclarecimento dos mortos e dos desaparecidos. Ivan Seixas é o autor deste relatório feito para a Comissão da Verdade. Ele esteve várias vezes nos locais procurando informações sobre o João Leonardo, esteve em Pernambuco, esteve na Bahia, tentou localizar no cemitério o João Leonardo”.
Tais pessoas, disse, “que sofreram, que estão vivas por circunstâncias não explicadas até agora”, reiterou, “são pessoas que renovam todos os dias, o dia inteiro, o seu compromisso de que nós não vamos esquecer aqueles que deram a vida para que a gente estivesse vivo, como Arno e como João Leonardo”. Citou igualmente a jornalista Maria Amélia de Almeida Teles, “Amelinha”, também torturada no DOI-CODI do II Exército. “Está aqui, todos os dias recuperando a história, a verdade desse período. Símbolo da defesa dos direitos humanos em nosso país, ela e toda a família Teles”.

Em seguida, mencionou outros advogados que atuaram como defensores de presos políticos durante a Ditadura Militar e compareceram ao evento, como Airton Soares, ex-deputado federal, e José Roberto Leal de Carvalho, além de Belisário dos Santos Jr. e José Carlos Dias. “Éramos poucos, mas éramos unidos, éramos amigos, éramos companheiros na acepção etimológica da palavra”, sustentou. Elogiou ainda o ex-deputado estadual Adriano Diogo, que presidiu, na Alesp, a Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva”.
Por fim, embora sem citar nomes, Greenhalgh censurou duramente o setor da extrema-direita que tem reivindicado a “anistia” de civis e militares envolvidos na conspiração golpista iniciada em 2022 e que desembocou na tentativa de golpe de janeiro de 2023.

“A anistia é uma espécie de autocrítica do Estado. É o Estado reconhecendo que em determinado período cometeu ilegalidades, abusos, praticou crimes contra os direitos humanos. A anistia não pode se confundir com a atividade daqueles que tentaram destruir a democracia, dar golpes na calada da noite, que batem continência a uma bandeira estrangeira”, defendeu. “Isso não é anistia. Não confundamos Arno Preis, João Leonardo e tantos outros que foram diplomados por esta Reitoria com esses que hoje malversam, dia e noite, a palavra anistia”.
O advogado e ex-ministro José Dirceu, que se encontrava na plateia, foi convidado a falar. Dirceu, líder estudantil que militou na ALN e foi preso político, conheceu Preis e João Leonardo e com eles conviveu tanto na Casa do Estudante da faculdade como, posteriormente, em Cuba. Dirceu e João Leonardo foram amigos próximos e ambos fizeram cirurgias plásticas numa mesma ocasião, relatou, com a finalidade de dificultar sua identificação pelos órgãos de repressão política. “Voltamos juntos para o Brasil. Estive com João Leonardo duas vezes entre 1971 e 1975”.

Os diplomas honoríficos conferidos a Arno Preis e João Leonardo foram recebidos por Júlia Wong, por sua condição de presidente do CA XI de Agosto. A cerimônia incluiu uma emocionante apresentação do Coral da USP (Coralusp), que cantou as canções “Opinião”, de Zé Ketti, “Canto das Três Raças”, de Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte, “Roda Viva”, de Chico Buarque, e “O bêbado e a equilibrista”, de Aldir Blanc e João Bosco. E houve a inauguração, no pátio da faculdade, de uma placa em homenagem a Arno e João Leonardo.
A concessão de diplomas de graduação post mortem a estudantes da universidade assassinados pela Ditadura Militar, que atende a uma das principais recomendações da Comissão da Verdade da USP, é uma iniciativa conjunta da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) e da Pró-Reitoria de Graduação (PRG), denominada “Diplomação da Resistência”, conforme proposta da vereadora paulistana Luna Zaratini (PT) e do coletivo estudantil “Vermelhecer”.

Como a Reitoria delegou a cada unidade (faculdade, escola ou instituto) a iniciativa de atribuição de diplomas honoríficos aos respectivos e respectivas ex-estudantes, o projeto, iniciado em dezembro de 2023 no Instituto de Geociências (IGc), ainda não foi concluído, faltando homenagear os ex-alunos do Instituto de Física (IF) José Roberto Arantes, Jeová Assis Gomes, Juan Antonio Carrasco Forrastal e Wilson Silva.
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