Memória
Perdemos Marcos Silva, historiador avesso a hierarquias e “igrejas” acadêmicas, partidário da cultura popular e dos oprimidos
Professor titular de Metodologia da História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), Marcos Antonio da Silva faleceu na manhã de 31 de março de 2024, aos 73 anos de idade. Natural de Natal (RN), Marcos graduou-se em História e foi mestre e doutor em História Social pela própria FFLCH, com pós-doutorado na Université de Paris III, em 1989. Graduou-se também em Artes Plásticas pela Faculdade Santa Marcelina (1999). Atuou em variadas temáticas no âmbito da República brasileira: História e linguagem, caricaturas, Ditadura Militar, ensino de História, além de especializar-se nas obras dos historiadores Luís da Câmara Cascudo e Nelson Werneck Sodré.
Marcos publicou dez livros de autoria individual, entre os quais Prazer e poder do Amigo da Onça (Paz e Terra, 1989), História – O prazer em Ensino e Pesquisa (Brasiliense, 1995), Rimbaud etc. – História e Poesia (Hucitec, 2011), História: Que Ensino é esse? (Papirus, 2013), e o mais recente, Ditadura relativa e negacionismos (Maria Antônia, GMarx USP, 2021). Organizou vinte coletâneas, três das quais ele próprio destacou no seu Lattes: Dicionário crítico Câmara Cascudo (Perspectiva, 2003 e 2006), Ensino de História e Poéticas: baseado em fatos irreais ma non troppo (LCTE, 2016) e Moacy Cirne, Moacys Cirnes? Quadrinhos, Cinema, Literatura & Cia. (LCTE, 2018).
A Associação Brasileira de Ensino de História (ABEH), em nota de pesar, destaca que Marcos foi “defensor pioneiro da manutenção do ensino de História no currículo da Educação Básica, trazendo esse debate para dentro da universidade, em pleno contexto do fim da Ditadura Militar”, e que, sempre engajado nas discussões curriculares, “procurou contribuir com reflexões candentes sobre o ensino de História ao longo de quase cinco décadas de produção historiográfica significativa e consistente”.
Também o Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), na Paraíba, emitiu nota de pesar pela morte de Marcos, que atuou como docente permanente, “contribuindo enormemente na formação de nossos(as) mestrandos(as)”, desde a criação do programa (2006). “Estava, com muita frequência, presente na UFCG, ministrando cursos, palestras, disciplinas, participando de bancas de mestrado”, registra a nota do PPGH-UFCG. “Na véspera das ‘comemorações’ dos 60 anos do golpe de 64, falece um historiador que muito contribuiu nos estudos acerca da Ditadura. Além disso, destacamos a simplicidade e generosidade de Marcos em tudo aquilo que fazia no âmbito de sua profissão como docente e pesquisador do campo de História”.
A morte de Marcos vem suscitando também diversas homenagens de caráter pessoal nas mídias sociais. Uma delas partiu do professor Gilberto Maringoni, da Universidade Federal do ABC (UFABC), de quem Marcos foi professor e orientador de doutorado na FFLCH, entre 2001 e 2006. “Estou tristíssimo. A ele devo a possibilidade de ter dado uma guinada de propósitos em minha vida”, relata. “Marcos gostou do projeto sobre [o caricaturista] Angelo Agostini e a imprensa abolicionista no final do II Reinado que apresentei ao programa de pós-graduação em História Social. Do quase nada, recebo seu telefonema no final daquele ano, aceitando me orientar”.
Marcos, diz o docente da UFABC, “era um intelectual extremamente erudito e culto, ao mesmo tempo que se voltava para o estudo da cultura popular e de massas”, e foi “um companheiro de diálogos constantes e de uma atenção e afetividade ímpares”, mais que um orientador. “Deixou no prelo da Edusp o Dicionário crítico Jorge Amado, reunindo uma gama enorme de intelectuais e pesquisadores que analisaram, em verbetes, a enorme obra do escritor baiano. Formou várias gerações de pesquisadores desde os anos 1980. Crítico do revisionismo histórico em relação à ditadura, em voga nos dias que correm, Marcos se vai, ironicamente no dia em que o golpe de 1964 completa 60 anos”.
O historiador Fernando Frias, pós-graduando na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é outro que lamenta a perda. “É com pesar que recebo a notícia do falecimento do professor Marcos Silva. Cinéfilo, o professor Marcos possuía um saber enciclopédico sobre cinema e a relação deste com a História. Infelizmente era ignorado pelos seus pares”, comentou. “Fui aluno dele no curso de História e Fontes Visuais. A partir desse curso, o meu interesse pela sétima arte despertou. Grande professor Marcos Silva!”.
Como lembra o professor Osvaldo Coggiola, seu colega no Departamento de História, Marcos animava um grupo de teatro independente, “Ô de Casa”, que se apresentou várias vezes na USP. Em março de 2012, por exemplo, com a presença do próprio Marcos, o grupo apresentou-se num “Sarau” promovido pela Adusp, na sede da entidade (na época, localizada no prédio atualmente ocupado pela Reitoria), num espetáculo que homenageou Rimbaud, tema do livro que o professor lançou no ano anterior. “É um conjunto de textos que têm como centro a poesia de Rimbaud e seus contemporâneos, e mais dois textos que se articulam com esse universo”, explicou Marcos ao Informativo Adusp.
“Marcos Antônio Silva foi historiador e professor. Essas duas dimensões eram inseparáveis nele. Sua obra está voltada não apenas para pesquisadores, mas também para trabalhadores da educação. Ele atuou muito nas reformulações do currículo de História”, explica, em texto preparado especialmente para o Informativo Adusp Online, o professor Lincoln Secco, seu colega na FFLCH, que chama atenção para uma forte característica de Marcos na sua trajetória profissional e política.
“Como professor na USP era dotado de grande coragem intelectual. Para ele não havia vacas sagradas isentas de crítica”, assinala. “Politicamente, eu diria que Marcos se apropriava tanto do marxismo quanto de diversas orientações teóricas socialistas. Valorizava a cultura popular, combatia todas as formas de preconceito na universidade”, acrescenta. “Não podemos esquecer que ele era um trabalhador nordestino que estudou na década de 1970 na USP e que não quis ingressar em nenhuma das igrejas do poder acadêmico”.
Ademais, “Marcos era um decidido partidário dos de baixo e, por conseguinte, da historiografia que valorizava o olhar do oprimido”. Leia a seguir a íntegra do texto de Lincoln.
Marcos Silva
Marcos Antônio Silva foi historiador e professor. Essas duas dimensões eram inseparáveis nele. Sua obra está voltada não apenas para pesquisadores, mas também para trabalhadores da educação. Ele atuou muito nas reformulações do currículo de História. Como professor na USP era dotado de grande coragem intelectual. Para ele não havia vacas sagradas isentas de crítica. Politicamente, eu diria que Marcos se apropriava tanto do marxismo quanto de diversas orientações teóricas socialistas. Valorizava a cultura popular, combatia todas as formas de preconceito na universidade. Não podemos esquecer que ele era um trabalhador nordestino que estudou na década de 1970 na USP e que não quis ingressar emnenhuma das igrejas do poder acadêmico. Marcos era um decidido partidário dos de baixo e, por conseguinte, da historiografia que valorizava o olhar do oprimido.
Isento de modismos, recorria a autores sem qualquer compromisso com os silenciamentos impostos por pequenos poderes efêmeros universitários. Reconhecia autores comunistas anatematizados como Edgard Carone e Nelson Werneck Sodré. E também citava músicos populares em seus artigos científicos.
Quando a imprensa e parte da universidade festejavam a obra jornalística de Elio Gaspari sobre a ditadura, Marcos submeteu seus livros a uma rigorosa crítica científica que publicou na Revista Adusp e posteriormente no livro A Ditadura Relativa, pela editora Maria Antônia do GMarx-USP. Desmontou a “versão definitiva” do porta-voz de Golbery.
Fez o mesmo, embora reconhecendo a qualidade dos autores, com a coletânea História da Vida Cotidiana no Brasil, livro que deixou inédito. Entre suas referências estavam Gramsci, Thompson, Hobsbawm, Foucault, Luisa Passerini e Jean Chesnaux, autor que ele traduziu. Cultivava a História Oral, mas combatia a ideia de que só havia um uso consagrado no Brasil. Propunha outras abordagens. Leu profundamente Gilberto Freyre, Câmara Cascudo, Mário de Andrade, Paulo Prado e muitos autores e autoras brasileiros.
Eu conheci Marcos Silva quando eu era aluno de graduação em História na USP e ele já era professor. Estivemos juntos em muitos debates, festas populares que ele organizava e manifestações políticas. Organizei com ele e Olga Brites o livro Mulheres que Interpretam o Brasil, pela editora Contracorrente. A presença de mulheres que normalmente não participariam de uma antologia desse tipo deve-se principalmente ao Marcos. Para ele não havia patamares diferentes entre Mãe Menininha, Carolina de Jesus e Emília Viotti da Costa.
Marcos era assim. Avesso a hierarquias. Diferentemente de Braudel, o mestre que não acreditava na superação de todas as opressões, Marcos concordava mais com Sartre. E sonhava uma sociedade transparente e livre. Não fazia nenhuma diferença entre a fala de um aluno e a de um acadêmico consagrado e submetia ambos à crítica. Ele pensava assim e agia assim.
Lincoln Secco
Fortaleça o seu sindicato. Preencha uma ficha de filiação, aqui!
Mais Lidas
- Instituto de Psicologia confere diploma póstumo a Aurora Furtado, assassinada pela Ditadura Militar, em cerimônia tocante que também lembrou Iara Iavelberg
- Maioria governista na Alesp aprova em primeiro turno a PEC 9/2023, que corta verba da educação paulista
- Conselho Universitário vai debater na terça-feira (15/10) concessão do “Prêmio Desempenho Acadêmico”, em três parcelas de R$ 3 mil, e valores para progressão na carreira dos(as) funcionários(as)
- Processo disciplinar que ameaça expulsar cinco estudantes da USP terá oitivas de testemunhas de defesa e de acusação nos dias 13 e 14 de novembro
- “Existe uma parceria com o Batalhão de Engenharia e não há razão que desabone o pedido”, e Reitoria da USP “está de acordo”, diz prefeito do câmpus a respeito de cessão da EEL para treinamentos do Exército