Opinião
Com quantos décimos de nota se faz uma reparação histórica?
“A prevalência ostensiva da branquitude no magistério superior da USP reflete um privilégio de acesso a um grande centro de poder simbólico e de produção de conhecimento”, defende neste artigo a pesquisadora Mariana Machado Rocha, mestra e doutora pela Faculdade de Educação da USP, que questiona a política de ação afirmativa para concursos docentes adotada pela Reitoria
É mês da consciência negra, mas hoje vamos falar de brancos, dos brancos que quase monopolizam as posições de docência e pesquisa na Universidade de São Paulo (USP). Matemática não é meu forte, mas o índice de mais de 90% de docentes brancos(as) em uma universidade que representa o Brasil, país com a maior população negra do mundo fora da África, me deixa perplexa.
Devo, antes de tudo, anunciar o meu lugar de fala, já que entendo que a ausência sistemática dessa enunciação é parte do que possibilita a perpetuação desse quase monopólio. Me formei pedagoga, mestra e doutora pela USP, estive por quase duas décadas como estudante negra nessa instituição, e a questão racial na história da USP foi meu objeto de pesquisa, como o Jornal da USP divulgou neste podcast e nesta reportagem. Hoje, entretanto, quero falar do presente. Falo do lugar de cientista e crítica do negacionismo das ciências. O negacionismo, visível ao causar mortes na pandemia, e invisível ao perpetuar o racismo.
A prevalência ostensiva da branquitude no magistério superior da USP reflete um privilégio de acesso a um grande centro de poder simbólico e de produção de conhecimento. A ausência quase total das vozes indígena e negra ocupando esse centro explicita a perpetuação de fronteiras para que esses grupos ocupem tais lugares. Além das bastante discutidas barreiras educacionais, deve-se reconhecer o papel da branquitude na defesa de sua própria hegemonia nesse espaço.
A USP oferece um variado catálogo: brancos(as) nas ciências exatas, biológicas, humanas e nas artes. Brancos(as) pesquisando células-tronco, brancos(as) pesquisando biodiversidade, brancos(as) pesquisando extração de petróleo, brancos(as) pesquisando arqueologia, brancos(as) pesquisando história, educação, música, cultura popular, cultura negra e, é claro, brancos(as) pesquisando racismo.
Não se trata de desvalorizar tal produção, tampouco de invisibilizar os 2,3% de negros(as) e os 0,2% de indígenas que existem e fazem seu trabalho nessa instituição. E quem vai poder dizer que a USP prefere não contratar negros(as) e indígenas? Ela até tem professores que são!
Além de estarem presentes, eles(as) fazem trabalho extra. Não só o trabalho subjetivo invisível, não reconhecido e não remunerado de lidar com o espaço hostil de seu ambiente de trabalho ostensivamente branco, mas também o trabalho objetivo realizado quando se manifestam perante a universidade para apontar que ela precisa de docentes representando os demais grupos raciais que constituem o país.
Não me é permitido incorrer no erro de generalizar a identidade branca. Quando a autoria tem mais melanina, o rigor em relação a qualquer generalização grita. Assim zelamos, por vezes até excessivamente, para que o rigor científico não se torne ferramenta que deslegitima nossa fala.
Farei então o devido recorte, driblando o temor de escrever o que Grada Kilomba anuncia como sendo forma de regulação dos discursos marginalizados, quando tudo ao redor é colonialismo. Analisarei uma fala do reitor como representativa de uma das perspectivas presentes na branquitude que ocupa posições de poder na USP, e que revela um dos olhares da branquitude para a instituição e, consequentemente, para si própria.
Diante de críticas às regras da recentemente implementada política de ação afirmativa para o ingresso no cargo de docência, em entrevista à Folha de S. Paulo (22/05/2023) o reitor afirmou: “Não podemos ter uma política muito agressiva, que coloque em risco a qualidade de uma universidade com o prestígio da USP”.
“Agressiva”! Isso mesmo que vocês leram! E ele não estava se referindo ao fato agressivo de haver mais de 90% de brancos(as) na posição de docência de uma universidade que ocupa o status de representante de um país majoritariamente negro, e nem à violação agressiva do direito de negros(as) e indígenas ocuparem, na posição de docentes-pesquisadores(as), esse grande centro de poder.
A palavra foi utilizada para caracterizar propostas efetivas de combate ao quase monopólio da branquitude nas posições de docência na USP, passando a impressão de que, com a adoção de tais políticas, algo estaria sendo violado. As únicas questões que uma política efetiva de ação afirmativa atingiria seriam o racismo institucional uspiano e a hegemonia indevida da branquitude nessas posições.
Grada Kilomba mostra como o colonialismo inverte as narrativas. No tempo da escravidão, caso as plantações e seus frutos fossem apropriados pelos(as) colonizados(as) que os produziam, os(as) colonizadores(as) interpretavam isso como um roubo. E assim, por meio da negação, a apropriação indevida das terras e dos trabalhos dos(as) colonizados(as) era interpretada como legítima, enquanto aqueles(as) que eram roubados(as) e escravizados(as) eram apresentados(as) como o perigo que deveria ser controlado (KILOMBA, 2019).
No racismo, a negação é usada para manter e legitimar estruturas violentas de exclusão racial: “Elas/es querem tomar o que é Nosso, por isso Elas/es têm de ser controladas/os.” A informação original e elementar – “Estamos tomando o que é Delas/es” – é negada e projetada sobre a/o “Outra/o”- “elas/eles estão tomando o que é Nosso” –, o sujeito negro torna-se então aquilo a que o sujeito branco não quer ser relacionado. Enquanto o sujeito negro se transforma em inimigo intrusivo, o branco torna-se a vítima compassiva, ou seja, o opressor torna-se oprimido e o oprimido, o tirano (KILOMBA, 2019, p.34).
A fala do reitor faz de negros(as) e indígenas os elementos intrusivos na Universidade em que legitimou-se a hegemonia descabida da branquitude. A reivindicação atual de alcançar 30% de docentes negros(as) e indígenas na USP é até comedida, se considerarmos que a Universidade representa o Brasil, onde há mais de 50% de negros(as), e que a posição de destaque que ela ocupa deve-se ao fato de estar situada no estado que constituiu seu poderio econômico graças ao café, produzido com trabalho escravo e roubo de terras indígenas.
Para justificar por que tal política supostamente “agressiva” não deveria ser implementada, o reitor afirma que ela colocaria em risco a “qualidade” da USP.
– Oi??
A preservação e proteção dos interesses dos(as) brancos(as) anda em paralelo com a inferiorização e culpabilização dos(as) negros(as) (BENTO, 2002). É exatamente o que vemos nas entrelinhas dessa fala. Para o reitor, romper de forma efetiva com a hegemonia branca nas posições de docência da USP traria o risco de perda de qualidade para a universidade. Sob o prisma do mais alto dirigente da USP, os(as) brancos(as) são entendidos como intelectualmente superiores, e sua suposta capacidade de manter a dita qualidade é o que justifica a manutenção do quase monopólio exercido por eles(as) nessas posições.
Mas os estudos sobre a adoção de ações afirmativas para estudantes em todo o Brasil, em grande parte, mostram que os(as) alunos(as) cotistas apresentam bons desempenhos. Por que com docentes seria diferente? Chega a ser engraçado um reitor, logo o da USP, basear uma fala como essa em evidência nenhuma. Não pode ter negro(a) e indígena com reserva de vagas, mas reitor pode falar o que bem entende sem embasamento científico nenhum! Realmente os critérios de “qualidade” andam de pernas pro ar!
O Magnífico Reitor indica acreditar que os concursos selecionam “os melhores”! Como se eles não estivessem sob influência do racismo estrutural e institucional – cientificamente constatados, inclusive em pesquisas efetuadas na própria USP. Se o processo seleciona os(as) melhores e ele foi selecionado, logo ele se vê como um dos melhores, e assim vê seus colegas. Eis por que uma política de reserva de vagas seria um risco para a qualidade da USP. Impediria a contratação dos(as) “melhores”, ou seja, dos(as) brancos(as). É disso que Cida Bento (2002) está falando quando nomeia o pacto narcísico da branquitude.
É mês da consciência negra. Mas é de brancos(as) que estamos falando. E não é que alguns(mas) deles(as) de fato se veem como superiores? Isso só é possível a partir de um posicionamento negacionista. E nem me refiro às ciências sociais, desvalorizadas desde suas origens. Mas à biologia, mesmo campo onde se desenvolvem as vacinas…
Existe uma fração negacionista na branquitude que ocupa lugares de poder no interior da Universidade de São Paulo. Cientistas negacionistas da ciência! Quem se contrapõe ao negacionismo da ciência dos próprios cientistas que ocupam o topo de uma instituição científica de grande prestígio?
A posição do reitor, entretanto, não pode ser generalizada. Há muitos(as) docentes brancos(as) que não pensam como ele. Aparentemente uma parte deles(a) encontra-se em silêncio neste debate. Segundo o dito popular, “quem cala consente”. Será?
Se, por um lado, generalizar a ausência de posicionamento sistemático, constante e organizado dos(as) próprios(as) brancos(as) em prol do fim do quase monopólio da branquitude na posição docente seria um equívoco, por outro o fato de que todas as pressões para a adoção de cotas venham do movimento negro (dentro e fora da USP) sugere conforto/passividade de parte importante dos(as) brancos(as) ao quase monopolizarem tais espaços. Estamos diante de um negacionismo agressivo. Estamos diante de um racismo passivamente agressivo! Se é que existe “agressividade passiva”.
Uma das regras de funcionamento da nova política de ação afirmativa para o ingresso no cargo de docência na USP instituiu a obrigatoriedade da presença de ao menos uma pessoa preta, parda ou indígena (PPI) nas bancas avaliadoras dos concursos para professores(as). A criação da regra indica que, antes dela, encarava-se com naturalidade a formação de bancas exclusivamente brancas para a seleção de “mérito” dos(as) candidatos(as) ao cargo de professor(a)!
E, assim, definiram seus iguais como “os melhores” mais de 90% das vezes…
A partir dessa regra, a Reitoria da USP elaborou e disponibilizou uma lista de professores(as) PPI dos mais diversos campos de conhecimento em diversos lugares do Brasil para que pudessem ser convidados(as) a compor as bancas. A necessidade da existência dessa lista indica que boa parte dos(as) docentes que montam bancas para concursos na USP não conheciam, não tinham um conjunto de relações pessoais e nem profissionais com acadêmicos(as) PPI de seus campos de estudo.
Parece até um quadro de segregação racial. Se não conheciam, então não citavam nem incorporavam as produções e perspectivas desses(as) profissionais. Do alto do trono da excelência uspiana, eles(as) os(as) invisibilizavam. Ninguém acha isso agressivo?
Um outro elemento da recentemente adotada política de ação afirmativa para o cargo de docência na USP me inquieta. A equação matemática que define uma pontuação diferenciada para os(as) candidatos(as) PPI: “PD = (MCA – MCPPI)/MCPPI” – onde PD é a pontuação diferenciada, MCA é a média da ampla concorrência e MCPPI é a média da concorrência de pretos(as), pardos(as) e indígenas.
Calculada a PD, é necessário calcular a nota final do(a) candidato(a), e para isso se utiliza a fórmula: “NFCPPI = (1+PD) xNSCPPI”, onde NFCPPI é a nota final na fase do concurso público após a aplicação da PD, e NSCPPI é a nota simples do(a) candidato(a) que receberá a pontuação diferenciada. Entendeu?
Se não entendeu, tudo bem! Quase ninguém entende mesmo. Por isso a Reitoria já envia uma planilha onde as notas são adicionadas e os cálculos são efetuados automaticamente. Quem não entendeu nem precisa entender. Nem o(a) candidato(a) beneficiado(a). Mas o fato é que com PD ou sem PD, entendendo ou sem entender, a definição do(a) primeiro(a) colocado(a) não costuma ser surpresa para a banca que atribui as notas.
Mas, como eu disse de partida, matemática não é meu forte!
Talvez eu esteja agressivamente enganada.
Mas ainda assim, olho para essa fórmula e me pergunto: onde entra o trabalho escravizado nas plantações de café que constituíram o poderio econômico paulista sobre o qual a USP assenta o seu prestígio (chamemos de TEPCSP-USP)? Onde entram as terras indígenas roubadas (TIR)?
É muita matemática!
Mas se PD fosse igual a “TEPCSP-USP + TIR”, seria reserva de vagas na certa!
É mês de consciência negra, mas hoje falamos de brancos(as), da branquitude negacionista do racismo e da branquitude do racismo passivo-agressivo que ocupa posições de docência e poder na USP. Não me levem a mal pela escolha do tema. Eu mesma não tenho nada contra brancos(as), até tenho amigos(as) que são! Até saberia indicar docentes brancos(as) para compor uma banca, se eu fosse encarregada de tal, sem precisar de lista disponibilizada pela Reitoria. Etc. Mas talvez eu escolhesse fazer o oposto… Convidaria quatro docentes PPI, junto comigo seriamos cinco. Igualzinho era antes da nova regra, mas pelo lado contrário! Mas é melhor eu encerrar, antes que achem o meu posicionamento agressivo!
Deixo com vocês a pergunta que teima em rodopiar, de um lado para o outro, na minha cabeça:
Com quantos décimos de nota se faz uma reparação histórica?
Referências
BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos Narcísicos no Racismo: Branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. 2002. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano.1.ed. Rio de Janeiro, Cobogó, 2019.
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