Emoção e revelações no ato pela Comissão da Verdade

Homenagens, revelações, emoções combinaram-se fortemente no ato de lançamento da campanha pela instalação da Comissão da Verdade da USP, realizado em 12/6. Centenas de estudantes compareceram, lotando o auditório 5 da Faculdade de Economia e Administração (FEA), mas também estiveram presentes professores de várias unidades, em especial do Instituto de Psicologia (IP) e da Faculdade de Filosofia (FFLCH), além de funcionários técnico-administrativos e convidados. 

Daniel Garcia
Professora Elisabetta Santoro manifesta-se em nome da Adusp

O ato foi convocado pelo Fórum Aberto pela Democratização da USP, do qual participam a Adusp, Sintusp, DCE, centros acadêmicos e grupos como Levante Popular, Coletivo Quem e outros. A coordenação da mesa coube ao doutorando Renan Quinalha, do Fórum Aberto. Bruno Theodósio, representante do Centro Acadêmico Visconde de Cairu (FEA), fez a saudação inicial aos partipantes e homenageou as vítimas da Ditadura Militar.

“Os mais jovens não avaliam o que é o medo pânico. Paira sobre você uma ameaça assustadora. Isso foi a USP durante dez anos, quase todo dia, e as pessoas desaparecendo”. Assim a professora Marilena Chauí descreveu o ambiente de terror vigente na instituição durante a Ditadura Militar, após a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5). “Você vinha para cá e não sabia se voltava para casa, se não seria preso ou torturado. Portanto você não sabia se seus alunos viriam. Se faltavam, você não ousava perguntar por quê. A mesma coisa com relação aos colegas. Havia policiais à paisana nas salas de aula. Nós éramos vigiados noite e dia”, relatou.

Marilena enfatizou o papel das estruturas de poder internas na repressão: “As cassações [de professores] não vieram do alto: as congregações se encarregaram de delatar e denunciar. Foram os civis acadêmicos dentro da universidade que fizeram uma ‘limpeza de sangue’. Uma coisa sinistra! Isso não pode ficar em branco. Uma Comissão da Verdade tem que dizer isto. A estrutura da nossa universidade é a que a Ditadura, através do MEC e do acordo MEC-Usaid, introduziu no Brasil, e que na nossa [universidade] se cristalizou. A Comissão da Verdade tem que mostrar quem implantou tudo isso, as datas, os decretos. Precisamos fazer uma devassa do acordo MEC-Usaid, se quisermos democratizar a universidade”, disse. 

Daniel Garcia
A estudante Lira Alli

Sentimento

“Esse reitor teve o aprendizado dele como dirigente nesse caldo de cultura da Ditadura”, asseverou a professora da FFLCH, referindo-se a Grandino Rodas. “Isso nem a Ditadura fez, de pôr a polícia dentro do campus para espancar os alunos”, protestou. 

Marilena iniciou a sua exposição fazendo revelações carregadas de sentimento. Recordou sua amizade com a professora Heleny Guariba, assassinada pela repressão política em 1971 e até hoje oficialmente desaparecida: “Estudávamos juntas, ela escolheu o meu namorado, com quem eu casei. Estive com ela na véspera do dia da prisão, foi à minha casa e tivemos uma longa conversa, fizemos planos, íamos nos ver no dia seguinte, mas não a vi mais”. Enquanto falava, a professora dirigia-se à estudante Cândida Guariba, neta de Heleny e presente ao ato. 

Também relatou a tragédia vivida pelo professor Luiz Roberto Salinas (“amigo meu do coração, entramos juntos no Departamento de Filosofia”), que morreu depois de libertado, em decorrência das torturas sofridas na prisão. “Foi preso, torturado, e, na época, não fazia parte de nenhum movimento ou grupo. Ele nunca conseguiu realmente se refazer. Teve trombose nas duas pernas, tendo que cortar dedos dos pés e morreu com uma síncope. Ou seja, foi morto pela tortura”.

Daniel Garcia
Exposição do professor Edson Teles (Unifesp)

“Qual verdade?”

O professor Edson Teles, da Unifesp, comentou as limitações da Comissão Nacional da Verdade (CNV): por estar subordinada à Casa Civil da Presidência da República, ela não tem autonomia estrutural, orçamentária ou logística; o período fixado (1946-1988) descaracteriza a necessidade de apurar os crimes de Estado; a lei define como uma de suas finalidades “promover a reconciliação nacional”, ao invés de subsidiar a punição dos torturadores. 

Teles advertiu para o fato de que, uma vez constituída a Comissão da Verdade da USP, “em alguns momentos nós, do movimento, vamos nos confundir com as instituições”, o que pode trazer riscos. Por isso, é preciso que essa comissão disponha de “funcionamento político e material autônomo, para que seja eficiente”, e que o processo de escolha de seus membros seja transparente. 

Ele também sugeriu que a comissão resulte de uma definição prévia fundamental: “Qual verdade vamos apurar?”, de modo a evitar discussões disparatadas como a tese de que a CNV deveria apurar supostos crimes da esquerda (e não apenas os crimes da Ditadura Militar). Ainda sobre a CNV, Teles informou que a reunião realizada em 11/6 entre esta e os familiares das vítimas do regime militar foi “surpreendente, emocionante”. Ele encerrou sua exposição com uma homenagem a Heleny Guariba.

Estatuinte ampla

Rafael Pacheco, estudante que falou em nome do Fórum Aberto, destacou a grave situação atual da universidade, onde o “insistente recurso da Reitoria à força e à intervenção policial mostram incapacidade de lidar com o dissenso”, o que reforça a bandeira da “Estatuinte ampla e autônoma”.

Felipe Faria (Beira), pelo DCE-Livre, também chamou atenção para os instrumentos autoritários que vêm sendo usados pela gestão Rodas contra os movimentos, e afirmou: “Estamos completamente envolvidos na construção dessa campanha” (pela Comissão da Verdade da USP).

Uma universidade que não resolveu as gravíssimas violações de direitos humanos ocorridas no passado recente não pode construir com a necessária consciência o seu presente e o seu futuro, “não pode se conceber como lugar do pensamento crítico, da produção autônoma de saber e da transmissão de conhecimento”, declarou a professora Elisabetta Santoro, vice-presidente da Adusp, em nome da entidade. 

O Fórum Aberto, prosseguiu, decidiu concentrar esforços “na iniciativa de lançar uma campanha e um abaixo-assinado pela instalação de uma Comissão da Verdade da USP, autônoma e independente, à qual sejam dadas as condições de investigar os inúmeros casos de desaparecimentos, mortes, torturas, aposentadorias compulsórias aqui ocorridos”. 

A professora lembrou que já em 1978 a Adusp desenvolveu “uma campanha pela reintegração na vida acadêmica dos professores atingidos pelos atos de exceção”, e realizou um levantamento do processo de controle ideológico sobre o corpo docente da USP, que resultou na produção do Livro Negro da USP, reeditado em 2004 sob o título O controle ideológico na USP

Resposta de classe

“A Ditadura Militar não caiu do céu, foi uma resposta da classe dominante às manifestações dos trabalhadores, dos estudantes, que começavam a questionar os pilares da dominação”, afirmou Marcelo Santos (Pablito), diretor do Sintusp. “A transição democrática, em 1984, foi feita às custas de se manter a impunidade dos torturadores e dos patrocinadores da Ditadura Militar”. 

A professora Heloísa Borsari, presidente da Adusp, manifestou-se na condição de coordenadora do Fórum das Seis, articulação que reúne os sindicatos de docentes, de funcionários técnico-administrativos e entidades estudantis da Unesp, Unicamp, USP e Centro Paula Souza. No entender do Fórum das Seis, uma Comissão da Verdade da USP deve gozar de independência para examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos ocorridas na USP no período 1964-1985: “Desvendar os fatos reais que cercam uma das épocas mais obscuras da história brasileira, numa universidade da relevância que tem a USP, certamente contribuirá para que esse período seja passado a limpo em todo o país”.

Na presente conjuntura, ainda se mantém vivo na  universidade o “inaceitável legado” da Ditadura Militar, segundo a professora: “Em paralelo à importância histórica que cerca o pedido de criação da Comissão, é preciso situar o atual momento vivido pela USP, sob a gestão do reitor João Grandino Rodas, em que vigora um conjunto de políticas repressivas e autoritárias, com perseguições e práticas punitivas contra estudantes, servidores técnico-administrativos e docentes”.

“Justiça concreta”

No Peru, a Comissão da Verdade e Reconciliação, criada em 2001 para apurar atrocidades cometidas pelo governo de Alberto Fujimori e durante o conflito armado entre o Estado e o grupo Sendero Luminoso, entrevistou 17 mil pessoas em dois anos e elaborou uma lista de 69 mil pessoas mortas ou desaparecidas. As conclusões da Comissão puderam ser usadas como provas em processos penais. 

Os dados foram apresentados pelo sociólogo Eduardo Gonzalez Cueva, diretor do Centro Internacional para a Justiça de Transição (ICTJ), que foi um dos integrantes da comissão peruana. Para Gonzalez, é preciso que seja cumprida a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que determina ao Brasil a punição dos agentes da Ditadura Militar envolvidos em graves violações. A criação da CNV, ressaltou, “é apenas parte das obrigações do Estado brasileiro”, pois é preciso haver “justiça concreta, justiça penal”. 

Gonzalez destacou a importância da atuação da CNV para acabar com “a negação e a justificação”, elementos culturais que impedem o conhecimento da verdade histórica e favorecem a impunidade. Citou como exemplo a alegação usual de que foram “só 500 mortos” no Brasil, diante de muitos milhares de assassinatos ocorridos sob as ditaduras de outros países. “Essa justificativa tem que parar, porque direitos humanos não são uma questão de aritmética, mas de princípios. A Comissão da Verdade tem que combater essa lógica justificadora”. 

O diretor do ICTJ argumentou que cabe à CNV a apuração das autorias e responsabilidades pelas violações cometidas, e à Justiça a aplicação de penas. Para ele, o Ministério Público Federal tem cumprido seu papel de propor as ações penais, ao passo que a Justiça (STF e juízes) tem bloqueado as punições. “É preciso focar a críticas nos juízes”, propôs.

“Nunca mais”

A professora Vera Paiva (IP), filha do ex-deputado Rubens Paiva, assassinado em 1971 (vide Revista n° 50 – junho de 2011), até hoje um desaparecido político, considera que no Brasil houve “terrorismo de Estado com a cumplicidade de alguns órgãos de imprensa” e que é preciso fazer a verdade aparecer. “Verdade que nos permita dizer: isso nunca mais pode acontecer”. Expressou indignação com o fato de, ainda hoje, vias públicas levarem o nome de ditadores e torturadores: “É inaceitável andar no Viaduto Costa e Silva, na Avenida Castelo Branco…” 

Na opinião de Vera, professora na USP há mais de vinte anos, a Congregação do Instituto de Química deve pedir desculpas à família da professora Ana Rosa Kucinski, demitida por “abandono de emprego” em outubro de 1975, quando já havia sido assassinada pela repressão política. 

Ela retomou uma questão levantada por Gonzalez: “Negação e justificação acontecem cotidianamente na USP e na sociedade, na forma de racismo, sexismo e homofobia. Uma pesquisa com portadores de HIV foi proibida pela Congregação do IP, uma ação claramente homofóbica”. A professora lembrou a agressão a um estudante negro, praticada por um policial militar dentro do DCE em 2011, como um caso claro de racismo, mas justificado com a alegação de “estresse” do PM.

O professor Paul Singer defendeu a criação da Comissão da Verdade da USP e disse esperar que outras universidades instituam suas comissões. “A Ditadura atingiu o âmago da sociedade brasileira. É importante saber da verdade não só para evitar que coisas revoltantes venham novamente a acontecer. É mais do que isso: é entender o presente. Entender o passado é fundamental para saber por que as pessoas são como são”, afirmou. “É importante não só preservar a USP, mas torná-la melhor”. 

O ato foi encerrado após a leitura de um poema de Pedro Tierra pela estudante Lira Alli que, em seguida, acompanhada por todos os participantes, homenageou 40 estudantes e docentes da USP, assassinados pela Ditadura Militar, em um dos momentos mais tocantes do ato: a cada nome lido por ela, a plateia, em peso, respondia: “Presente!”.

 

Informativo nº 347

EXPRESSO ADUSP


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