Ciência, Tecnologia e Inovação
As expectativas do ‘Marco Legal da Ciência e Tecnologia’
04/03/2016 15h40
O Marco parece não levar em conta a evidência empírica disponível sobre o resultado das medidas que vêm sendo implementadas com o mesmo objetivo
Em 11 de janeiro foi promulgada a lei 13.243/2016 do "Marco Legal da Ciência e Tecnologia e Inovação" (MLCTI) cujo objetivo é induzir comportamentos virtuosos dos envolvidos com a pesquisa em "ciências duras" e a pesquisa e desenvolvimento (P&D) que ela alimentaria.
Na ocasião, a presidenta destacou que o MLCTI irá fomentar a cooperação universidade-empresa de modo a transformar "mais ciência básica em inovação, e inovação em competitividade, gerando um novo ciclo de desenvolvimento econômico no País".
"É um momento histórico para a ciência brasileira", comemorou a presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência presente à cerimônia, ressaltando que "a presidente Dilma falou bem claro sobre a importância de o professor na universidade colaborar com inovadoras".
Lembrando o processo que originou o "Código de Ciência, Tecnologia e Inovação" mediante o PLC 77/2015 que o MLCTI sancionou, o presidente da Academia Brasileira de Ciências, referindo-se a "um sonho que se realiza" disse: "Foram 5 anos de luta. Foi um movimento muito bonito, que deu força à ciência brasileira".
"É a luta de uma nação que acredita que a ciência, a tecnologia e a inovação são as ferramentas que ajudarão o País a sair da crise", disse o presidente do CNPq.
Para o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, "a nova Lei amplia a inserção do Brasil entre os países mais inovadores, além de gerar mais riqueza, empregos, renda e consequente ascensão social". Adicionando um tom pragmático, disse que ela "cria possibilidades de novos investimentos na ciência e tecnologia. Cria facilidades e permite às instituições públicas buscarem dinheiro para seus projetos".
Como costuma acontecer quando expectativas otimistas sobre o MLCTI proclamadas num diapasão de magister dixit (o mestre disse) e aceitas pelo sentido comum como investidas de um estatuto de vox Populi vox dei (voz do povo voz de deus) essas manifestações repercutiram favoravelmente na imprensa, no meio político, e nas universidades e instituições de pesquisa públicas. Nelas, docentes e pesquisadores renomados de algumas das mais prestigiosas, diretamente interessados no persistente fomento à cooperação universidade-empresa há que anotar, declararam sua satisfação.
Diferentemente daqueles líderes da comunidade de pesquisa das "ciências duras" duas entidades, agora num tom explicitamente corporativo e na defesa de seus representados, manifestaram-se criticamente.
A primeira foi a Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento de Empresas Inovadoras. Embora saudando, entre outros aspectos, as implicações para a "desburocratização" dessa cooperação, ela criticou os vetos presidenciais ao PLC 77/2015 concentrando-se, como era de se esperar, em aspectos financeiros de interesse das empresas que já se utilizam do sistema de fomento à inovação, como os relativos às bolsas que o MLCTI facultará aos professores e estudantes interessados em realizar P&D na empresa e os relativos à utilização do poder de compra do Estado.
A segunda foi o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior, preocupado que o MLCTI reforce o processo em curso de privatização da educação pública. Ao flexibilizar o regime de Dedicação Exclusiva e possibilitar que empresas privadas remunerem dirigentes das instituições públicas de pesquisa e ensino por meio de fundações de apoio, ele induziria docentes e pesquisadores a complementarem seu rendimento mediante a reorientação de parte de seu potencial de trabalho custeado com o fundo público.
Não obstante a sua postura crítica, esse último ator, que é praticamente o único do campo da esquerda que se tem pronunciado sobre a PCTI, não questiona as ideias-força que animam sua elaboração. De fato, ao contrário do que ocorre com muitas outras políticas públicas em que possui um considerável acúmulo cognitivo, a esquerda não se tem preocupado em diagnosticar adequadamente o contexto em que se insere a PCTI e sobre o qual ela pretende incidir.
Correndo o risco de uma generalização e simplificação indevidas, mas dado o imperativo de fazê-las caber no espaço deste texto, essas ideias-força podem ser assim sintetizadas: (a) as empresas industriais locais veriam no aumento de sua atividade de P&D uma oportunidade para incrementar seu lucro; (b) sua maior lucratividade aumentaria a competitividade do País e estas levariam, "por transbordamento", ao desenvolvimento; (c) por verem a P&D como uma fonte de lucro, aumentariam seu envolvimento com as instituições públicas de ensino superior e de pesquisa; (d) essas instituições geram resultados de pesquisa e pessoas aptas a realizá-la que seriam de interesse das empresas locais.
A avaliação que o título promete da viabilidade de efetivação das expectativas de que o MLCTI venha a propiciar o "avanço da ciência", a "competitividade", o "desenvolvimento econômico" e a "ascensão social", se baseia em argumentos de pesquisadores do campo dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia relacionados ao tema e em evidências empíricas disponíveis sobre os países líderes em CTI e sobre o Brasil (embora, em favor da brevidade, se omita sua fonte, elas são facilmente acessáveis).
As expectativas atinentes às mudanças que o MLCTI provocaria no comportamento das empresas e do complexo público de ensino superior e de pesquisa – refraseadas para resumí-las – são abordadas em sequência. Para as expectativas numeradas a seguir se indica o argumento que questiona a viabilidade de sua efetivação de modo a possibilitar um debate que oriente com segurança nosso potencial tecnocientífico para o desenvolvimento do País; o que, sem dúvida, é o desejo dos que as enunciaram.
As empresas (inovadoras)…
1- serão mais lucrativas porque terão mais acesso aos resultados da pesquisa pública (a realizada no complexo público de ensino superior e de pesquisa)
Não existem indicadores sobre a importância desses resultados para o Brasil, mas, o que ocorre em países avançados como os EUA, onde ela pode ser avaliada pelo porcentual do gasto em P&D pelas empresas que é alocado nas universidades e institutos de pesquisa, que é de 1% (sendo que 99% é gasto intramuros), não autoriza esta expectativa; há também que considerar que em relação ao PIB estadunidense o montante alocado pela empresa para P&D universitária é apenas 0,02%.
2 – serão mais lucrativas porque absorverão pessoal mais qualificado para P&D
O fato de que na indústria manufatureira, que é o setor alvo daqueles líderes da comunidade de pesquisa que compartem esta expectativa (haja vista as características da pesquisa que realizam), as empresas locais contrataram para P&D durante os anos de bonança econômica – entre 2006 e 2008 – apenas 68 dos 90.000 mestres e doutores "ciência dura" que formamos (enquanto que nos EUA esta proporção é de mais de 50%), e que dificilmente um instrumento legal por mais potente que seja possa mudar as características estruturais de nosso contexto periférico, parece apontar a inviabilidade desta expectativa.
3 – serão mais lucrativas porque terão mais incentivo à P&D
Talvez devido ao enorme crescimento dos recursos e mecanismos de apoio, apenas 12% das empresas locais que não introduziram inovações no mercado (que segundo se pensa aumentariam seu lucro se realizassem P&D) apontam como causa de seu comportamento a "escassez de fontes de financiamento", enquanto que as que declaram ser as "condições de mercado" são 70%.
4 – serão mais lucrativas porque passarão a basear sua estratégia inovativa na P&D
A informação levantada pela PINTEC/IBGE sobre o comportamento inovativo das empresas locais (que é a que fundamenta boa parte dos argumentos apresentados neste texto) mostra que ele vem se baseando na aquisição de máquinas, equipamentos e insumos (frequentemente provenientes do exterior) e que as atividades de P&D, além de relativamente bem menos importantes, se concentram invariavelmente num pequeno grupo em que a participação das multinacionais vem crescendo significativamente.
5 – irão produzir bens e serviços inovadores à escala mundial
Nesse período, mas de 80% das inovações de processo lançadas no mercado pelas empresas locais o são apenas para elas mesmas e alguns poucos décimos porcentuais são novidades à escala mundial; o que, mais uma vez, torna muito improvável o cumprimento desta expectativa.
6 – usarão os recursos adicionais disponibilizados através do MLCTI para alavancar maiores dispêndios em P&D
Ao contrário do que ocorre nos países da OCDE, onde, para cada dólar disponibilizado pelo governo para P&D as empresas gastam outros nove, as empresas locais beneficiadas tendem a diminuir os recursos próprios alocados à P&D (fenômeno denominado crowding out); apesar do substancial aumento dos recursos públicos disponibilizados ocorrido na última década, a parcela da Receita Líquida alocada pelas empresas inovadoras à inovação diminuiu de 3,8% para 2,5% e a orientada à P&D permaneceu estável em 0,6%; as inovadoras que declararam realizar P&D para inovar diminuíram de 33% para 11% (uma queda de 67%); as inovadoras que apontaram a P&D como importante para sua capacidade de inovar diminuíram de 34% para 12% (uma queda de 65%), e as que apontaram a aquisição de máquinas e equipamentos se mantiveram em cerca de 80%.
7 – sendo mais lucrativas, crescerão mais e desencadearão um ciclo de desenvolvimento no País
O fato da indústria manufatureira ter um porte diminuto (e decrescente) – sua participação no PIB é 9%, e somente 2 dos 160 milhões em idade ativa (cuja imensa maioria sobrevive na economia informal) nela trabalhem com carteira assinada, torna improvável um poder de indução de crescimento (muito menos de desenvolvimento) que torne viável esta expectativa.
8 – sendo mais lucrativas, crescerão mais e aumentarão a competitividade do País
Nossa competitividade se deve a vantagens comparativas naturais ou associadas ao baixo preço da mão-de-obra, e os produtos portadores de inovações de produto ou processo que são demandantes de P&D já contam com circuitos de produção e difusão de conhecimento consolidados (Embrapa para o agronegócio, etc.) e relativamente pouco sensíveis a instrumentos como o MLCTI.
O complexo público de ensino superior e de pesquisa:
1 – irá contribuir para gerar resultados de pesquisa para a empresa local
Embora na última década o numero de matrículas em unidades de ensino superior públicas venha crescendo numa taxa superior à das privadas (que praticamente não realizam pesquisa e são pouco sensíveis ao seu sistema de fomento) e tenha ultrapassado a proporção de 20%, é pouco provável que o MLCT possa aumentar significativamente a produção nacional de resultados de pesquisa.
2 – irá obter recursos suplementares mediante o aporte das empresas para P&D conjunta
Em países avançados como os EUA o porcentual do gasto total das universidades que é captado por esta via é de apenas 1%; na Unicamp que é provavelmente a universidade onde este porcentual é mais elevado ele não chegue a 0,8%, sugere que para o conjunto das universidades ele seja inferior a 0,2%.
3 – em função da maior proximidade com a empresa, irá formar pessoas e realizar pesquisas mais conducentes à competitividade do País
As universidades públicas, cuja participação no complexo é quantitativamente mais importante, engendram profissionais e resultados de pesquisa muito semelhantes àqueles que nos países avançados são essenciais para a competitividade de suas empresas; o motivo deles aqui não serem contratados, como apontado anteriormente, não se deve à sua inadequação ao ambiente empresarial e não tem porque se alterar significativamente "por decreto", dado que decorre de uma condição estrutural e recorrente típica dos países citados na periferia do sistema capitalista.
4 – como o MLCTI fará crescer o apoio às empresas, aumentará sua relação com elas
O fato de que apesar do incentivo já concedido às empresas inovadoras, apenas 7% possuem relações com universidades e institutos de pesquisa e que, destas, 70% consideram essas relações de baixa importância, não autoriza esta expectativa.
5 – os arranjos institucionais que o MLCTI irá criar ou ativar, e que levará a um aumento do segmento de empresas inovadoras, terão impacto significativo na geração de emprego
O fomento a incubadoras de "empresas de base tecnológica" (a maior parte delas software houses), que ocorre há mais de 30 anos e custa meio bilhão de Reais por ano, é hoje responsável por 200 delas, que incubam menos de 10 empresas por ano (com taxa de mortalidade superior a 50%) que geram 3 empregos cada uma.
6 – a universidade pública, agora estimulada a atender a demanda incrementada da empresa, irá aumentar sua relação com ela
Apesar da América Latina ser a região onde desde meados do século passado mais se tem falado, escrito, teorizado e tentado fomentar essa relação, obstáculos estruturais associados à nossa condição periférica, que reforçam a legítima baixa propensão da empresa a realizar P&D – uma atividade em todo o mundo custosa, arriscada, com frutos de difícil apropriação, etc. -, seguirão inibindo esta demanda; sobretudo dada a tendência à desindustrialização e reprimarização e a "ameaça chinesa".
7 – a demanda empresarial pelo que os que suportam o MLCTI chamam de novo conhecimento tecnocientífico, que provocará a "inserção do Brasil entre os países mais inovadores", engendrará pesquisas originais que tornarão as universidades mais "competitivas"
Não tenderão a ser conhecimentos novos e sim os já desenvolvidos nos países avançados o que poderá alavancar a improvável inserção contida na expectativa citada no início; além do que é justamente neles que estão focadas suas atividades de ensino e pesquisa.
8 – a compensação financeira recebida pelos docentes aumentará a propensão da universidade pública a colaborar com a empresa e irá transformar seu ethos
Apesar de compensações orientadas para os líderes da comunidade de pesquisa das "ciências duras" e suas equipes, como as que o MLCTI pretende, existirem há mais de cinco décadas, nunca silenciaram as vozes dos que consideraram que a universidade pública deve servir ao que é "público" (e aos pobres que pagam o imposto que a mantém) e não ao "privado".
9 – em função da maior proximidade com a empresa, aumentará sua contribuição para o desenvolvimento
Se entendermos por desenvolvimento o processo de elevação do bem-estar do conjunto da sociedade (o qual, por incluir o das gerações futuras, impõe a consideração ambiental) é difícil aceitar a ideia de que o conhecimento que ele requer seja aquele que proporciona o sucesso empresarial; contribuirá mais para ele a orientação do potencial tecnocientífico do complexo para a formação de profissionais e a realização de pesquisa concernentes ao componente cognitivo associado às demandas materiais e culturais da maioria da população.
Antes de concluir, vale a pena sintetizar o argumento desenvolvido. O MLCTI parece não levar em conta a evidência empírica disponível sobre o resultado das medidas de política que vêm sendo implementadas com o mesmo objetivo, nem as inovações conceituais que vêm sendo proporcionadas pelos analistas da PCTI. O fato de que a conjuntura atual torna o contexto que determina o comportamento da empresa local ainda mais adverso à realização de P&D contribui ainda mais para a avaliação apresentada sobre escassa viabilidade daquelas expectativas.
Encerrando este texto que se limita à "problemática" e esperando que ele possa suscitar um debate cada vez mais qualificado e realista que nos conduza a uma "solucionática" como a que cobrava Dadá Maravilha, convido os interessados em discutí-la a entrar em contato: rdagnino@ige.unicamp.br.
Artigo originalmente publicado no portal Carta Maior, em 29/02/2016.
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