Ato na Faculdade de Direito defende revogação de lei estadual que promove liquidação de terras públicas para grileiros; STF deve julgar Ação Direta de Inconstitucionalidade
Pedro Serrano: direita usa roupagem liberal para escamotear posições extremistas (foto: Daniel Garcia)

Em vigor desde julho do ano passado, a lei 17.557/2022, que promove uma verdadeira “passagem da boiada” para legalizar a propriedade de terras devolutas estaduais para fazendeiros que as grilaram — processo que o deputado estadual Eduardo Suplicy (PT) qualificou de “liquidação ilegal de terras públicas para fazendeiros a preço de banana”—, é alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF), interposta pelo PT e que tem o PSOL como amicus curiae.

A ação, para a qual também solicitaram ingresso como amicus curiae entidades como a Associação Brasileira da Reforma Agrária (ABRA), a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de São Paulo (Faesp) e o Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp), solicita medida cautelar para suspender a eficácia da lei, bem como a do Decreto 67.151/2022, que a regulamenta. A relatora do caso é a ministra Cármen Lúcia.

“Prevemos que, com o fim do recesso, o processo seja julgado e essa inconstitucionalidade seja sanada o quanto antes”, afirmou o advogado Marcio Calisto Cavalcante, um dos responsáveis pela ação, no Ato em Defesa das Terras Públicas e pela Democracia, realizado no dia 8/8 na Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito (FD) da USP.

Na avaliação de Cláudia Dadico, diretora do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), trata-se de “uma demanda emblemática, um julgamento estratégico em termos de enfrentamento das pautas da extrema-direita”. “Toda a comunidade jurídica e as pessoas que lutam pela reforma agrária e direitos sociais no campo estão conectadas com o que pode ser decidido nesse julgamento”, disse no ato.

Daniel GarciaDaniel Garcia
Cláudia Dadico: julgamento é estratégico para as pautas da extrema-direita

De acordo com Cláudia, “o que se pretende em São Paulo é o que a extrema-direita quer fazer em todo o país”, ou seja, a “regularização” da propriedade de terras ocupadas ilegalmente.

“A quantidade de terras públicas estaduais e federais de que o Brasil dispõe para serem destinadas é uma quantidade razoável do território nacional e as elites, que em muitos casos já estão indevidamente sobre esses territórios, aguardam o resultado desse julgamento”, afirmou.

Cláudia Dadico espera que “o STF estabeleça um parâmetro jurídico que elimine essa lei do cenário jurídico brasileiro, que todas as regularizações e privatizações feitas com base nessa lei sejam anuladas, que tudo seja desfeito desde a edição desse diploma inconstitucional”.

Tarcísio está “grilando o grilo”, afirma professor Bernardo Mançano, da Unesp

No texto publicado pela Folha de S. Paulo, o deputado Suplicy, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp, estima que, no curto prazo, de 100 a 200 fazendeiros poderão se valer da lei 17.557 para ter as terras transformadas em propriedade privada por valores ínfimos, com “descontos” que chegam a 90%, de acordo com denúncias de entidades e órgãos públicos.

O projeto de lei que deu origem à medida foi proposto por um grupo de parlamentares dos partidos de direita e extrema-direita na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) e promulgado pelo então governador Rodrigo Garcia (PSDB). A “aceleração” dos processos de “regularização” vem sendo incentivada no governo Tarcísio de Freitas (Republicanos)-Felício Ramuth (PSD).

Os principais beneficiados com a lei são fazendeiros da região do Pontal do Paranapanema, no Oeste de São Paulo, na qual há dois grandes “grilos” que remontam à segunda metade do século 19, como explica em artigo publicado no Jornal da Unesp o professor Bernardo Mançano, docente da Unesp em Presidente Prudente: as fazendas Pirapó-Santo Anastácio, de 583 mil hectares, e a Fazenda Boa Esperança do Aguapeí, de 872 mil hectares.

“Somadas, suas áreas perfazem 1,455 milhão de hectares, ou 1,4 milhão de campos de futebol. A posse de toda essa terra é reivindicada a partir de ações de grilagem, de falsificação de documentos”, escreve. A notória origem fraudulenta das “propriedades”, prossegue, “não impediu que os grileiros fracionassem e vendessem os grilos”, o que ocorre até hoje.

“Ao vender as terras griladas com até 90% de desconto para as pessoas que [as] compraram […], o governo Tarcísio de Freitas está ‘grilando o grilo’”, afirma o professor. “O primeiro ‘grilo’ foi a falsificação das escrituras, o segundo ‘grilo’ é vender as falsas escrituras com 90% de desconto para pessoas que participaram do processo de grilagem. Ou seja, o governo está vendendo terras griladas para pessoas que estão envolvidas na grilagem.” Assim, em lugar de “resolver a questão com uma distribuição das terras para famílias sem terra, democratizando o acesso à terra e fazendo justiça”, o governo estadual “passa a fazer parte da grilagem”.

Diretor do Itesp pede rapidez a fazendeiros, porque “lei tem grande chance de cair”

O próprio governo estadual sabe que essa legislação tem pouca ou nenhuma base para se manter de pé e aconselha os fazendeiros a “dar o máximo de celeridade no processo” de “regularização” enquanto “a lei está vigente”.

Essas foram as palavras do diretor-executivo da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), Guilherme Piai, em reunião numa associação de produtores. O vídeo com as declarações foi divulgado pela Folha de S. Paulo.

“Essa lei tem grande chance de cair”, disse Piai na reunião. “É a verdade que a gente tá enfrentando, não adianta ficar alisando. O PT mandou essa lei [na verdade, a ADI] para o Supremo e nós já tivemos pareceres contrários do MPF [Ministério Público Federal], da PGR [Procuradoria-Geral da República] e da AGU [Advocacia-Geral da União]. Os três se manifestaram contrários à lei.” Se o título for entregue, considera o diretor, “a gente cria o ato jurídico perfeito”.

Piai é empresário na cidade de Presidente Prudente, região do Pontal, e concorreu a deputado federal em 2022 pelo Republicanos, mesmo partido do governador, que o nomeou para o Itesp. A CPI do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Congresso Nacional aprovou a sua convocação na condição de testemunha.

Capital privado quer criar grande mercado às custas das terras públicas

Cláudia Dadico, do MDA, lembrou no ato na FD que a avaliação das terras públicas precisa obedecer a uma ordem de prioridades, que podem incluir desde a sua destinação para unidade de conservação, demarcação de território indígena ou quilombola, fins de reforma agrária ou outras finalidades públicas, como cessão para institutos de pesquisa ou entidades educacionais.

“Por último, em caráter residual, se nenhuma dessas finalidades puder ser concretizada nessa terra pública, aí é que se fala em regularização fundiária. Só se regulariza o que está irregular. Se tem alguém em cima da terra pública usando-a indevidamente, está numa situação irregular”, disse. “O que essa lei determina, e por isso a extrema-direita está tão de olho nela, é a inversão dessa lógica. É colocar a regularização como primeira opção, à revelia do que a Constituição determina.”

A representante do MDA ressaltou que a Ouvidoria Agrária Nacional recebe diariamente “comunicações de conflitos os mais violentos, os mais sangrentos, e a grande maioria vem exatamente por parte de pessoas que querem usurpar a terra pública, se locupletar de terra pública, na tradição das elites que estão aqui há tempos como se fossem legatárias da Lei de Terras de 1850”.

De acordo com a geógrafa Yamila Goldfarb, vice-presidenta da ABRA, a lei 17.557 “faz uma verdadeira queima de estoque do patrimônio público e o coloca na mão daqueles que primeiro invadiram essa terra ilegalmente”. “Grande parte dessas terras vai ser colocada como ativo financeiro de grandes empresas. Esse é o verdadeiro interesse do capital financeiro: criar esse grande mercado de terras à custa das terras públicas do estado de São Paulo”, considera.

A geógrafa ressalta que “quem produz alimentos de forma saudável, de forma sustentável e gerando postos de trabalho não é o latifúndio, mas a agricultura familiar, a população indígena e as comunidades quilombolas que deveriam receber essas terras que estão sendo roubadas”.

Já a superintendente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em São Paulo, Sabrina Diniz, defendeu que acabar com a desigualdade no Brasil passa pela distribuição de terras. “A desigualdade no Brasil surge a partir do processo de escravidão, mas também pelo processo de concentração de terra nas mãos de poucos”, afirmou.

Sabrina disse que o Incra tem dialogado com o Itesp para retomar práticas já adotadas no passado de atuação conjunta dos órgãos, por meio das quais o Incra ajudava a pagar a indenização pelas benfeitorias para arrecadar de forma mais célere as terras estaduais. As famílias assentadas pelo Estado seguem sendo acompanhadas e recebendo créditos do governo federal.

“Caso o governo estadual não queira criar assentamentos, o governo federal fica com isso e assentamos. Gostaríamos muito que os assentamentos estaduais fossem federalizados”, disse, recebendo muitos aplausos do público. “A terra é para quem nela trabalha. Que os acampados do Pontal tenham o seu direito constitucional a essas terras”, completou.

“Tarcísio e Zema são tão fascistas quanto Bolsonaro”, diz Pedro Serrano

Também presentes à manifestação de 8/8 na FD, além de abordarem a chamada “lei da grilagem” os deputados estaduais Paulo Fiorilo (PT) e Carlos Giannazi (PSOL) repudiaram a chacina da Polícia Militar no Guarujá e as ações do governo estadual na educação, como a substituição dos livros didáticos impressos por materiais digitais produzidos pela Secretaria da Educação.

Daniel GarciaDaniel Garcia
Jovens do MST se manifestaram na abertura do ato

“Acredito que estamos próximos de uma grande vitória para barrar a entrega das terras públicas. Não podemos permitir um abuso institucional e inconstitucional como esse”, disse Fiorilo. Giannazi informou ter encaminhado representações ao Tribunal de Contas do Estado (TCE-SP) e ao Ministério Público (MP-SP) para questionar as vendas em andamento.

Gilmar Mauro, que representou o MST, enfatizou que as terras do Pontal devem ser destinadas para a reforma agrária e também para que as famílias assentadas façam uma recuperação ambiental das áreas por meio da adoção de sistemas agroflorestais.“Queremos parceria com a universidade, principalmente a pública, porque ela é paga pelo povo e deve estar a serviço do povo, para produzir tecnologias para diminuir a penosidade do trabalho agrícola e bioinsumos que agridam o mínimo possível a natureza e o meio ambiente para a produção de alimentos saudáveis para todos e todas”, afirmou.

Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ressaltou que a doação de terras públicas para fazendeiros e integrantes da elite agrária não é um fato novo na nossa história.Serrano afirmou que a extrema-direita brasileira utiliza uma linguagem mentirosa para escamotear, “com uma pincelada liberal”, o seu “conteúdo cruel, fascista, desumano e indigno”. Na sua avaliação, a lei 17.557 demonstra que a direita continua tentando utilizar “uma nova roupagem para esconder e escamotear as suas posições extremistas”.

Enquanto Jair Bolsonaro afirmava suas posturas desumanas e cruéis, disse, os governadores Tarcísio de Freitas e Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, dão continuidade “a essa tradição reacionária, violenta e desumana” com uma pincelada liberal.

“Temos que dar um alerta à sociedade. Tarcísio e Zema são tão fascistas quanto Bolsonaro, tão extremistas quanto ele e representam o mesmo perigo à democracia e a uma vida civilizada neste país”, afirmou.

Também se manifestaram no ato o diretor da FD, Celso Campilongo, que disse que a faculdade tinha “grande orgulho e grande honra” em receber o ato e os militantes do MST, e a estudante Christine Garabosky, diretora-geral do Centro Acadêmico XI de Agosto.

No encerramento do encontro foi lida a “Carta em Defesa das Terras Públicas e da Democracia”, que afirma que a lei 17.557 “entrega a última grande porção de terras públicas do estado de São Paulo justamente aos fazendeiros que se beneficiaram de um longo processo fraudulento, a grilagem de terras”. Parlamentares, representantes das entidades e docentes assinaram uma cópia da carta, que foi entregue na sede do Itesp.

EXPRESSO ADUSP


    Se preferir, receba nosso Expresso pelo canal de whatsapp clicando aqui

    Fortaleça o seu sindicato. Preencha uma ficha de filiação, aqui!