No Sarau, Bosi encanta ao falar de Gramsci e Dante
Público atento à cativante exposição do professor Bosi

Ideologia e Contraideologia: o livro do professor Alfredo Bosi (FFLCH), ex-diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP, foi tema do Sarau da Adusp realizado em 5/5. Bosi encantou a platéia ao discorrer sobre os meandros da Divina Comédia, a poesia triunfalista dos Lusíadas, as definições do conceito de ideologia por Marx, Weber e Bobbio, a sociologia determinista, o “realismo socialista” e outras questões. Também fez um relato pungente de conversas que manteve com o economista Celso Furtado, a propósito do subdesenvolvimento do Brasil.

Ao apresentar o autor, o professor João Zanetic, presidente da Adusp, chamou atenção para o caráter interdisciplinar ou multidisciplinar de algumas das obras de Bosi: “Em geral se considera que física e literatura, física e arte, são como água e óleo. Não é o meu caso”, disse Zanetic, que leciona no Instituto de Física. “Alguns dos livros do professor Bosi têm sido parte da bibliografia que eu utilizo com meus alunos no mestrado em ensino de ciências, uma área interdisciplinar”. Leu um trecho de Dialética da Colonização, que a seu ver faz a ponte entre arte e ciência: “Começar pelas palavras talvez não seja coisa vã. As relações entre os fenômenos deixam marcas no corpo da linguagem”.

Bosi se disse contente com o convite para falar no Sarau: “Leio a revista, brilhante e que me interessa diretamente, por seus temas, mas eu não tinha a frequentação direta da Adusp, sobretudo depois que me aposentei. É uma instituição notável, na medida em que, no meio dessa fragmentação tão grande em que a gente vive dentro da universidade, ainda consegue aproximar professores de especialidades tão diferentes”.

Bacon e Marx

Professor Alfredo Bosi

O contraste entre ideologia e contraideologia é a espinha dorsal do livro apresentado ao Sarau, esclareceu Bosi, pois em várias dimensões — histórica, filosófica, política — essa polaridade lhe pareceu que “poderia ser o leit-motif do livro o tempo todo”. Disse ter exemplificado com autores diversos, períodos diversos, “começando de Bacon, da idéia dos ídolos (idola), que seriam uma espécie de matriz da denúncia da ideologia, os vários erros possíveis, os preconceitos, os falsos conhecimentos”.

“No fundo, a palavra ideologia, sobretudo a partir de Marx, tem forte acepção negativa: seria algo que pode ser desmascarado, porque é uma falsa totalização da realidade, uma pseudototalização”, prosseguiu. “Esse é o próprio sentido de Marx e Engels, na Ideologia Alemã: há interesses particulares, fortes, que representam necessidades de certos grupos sociais, e esses grupos aprofundam a particularidade do seu interesse, a ponto de parecer que é universal. O processo epistemológico da ideologia é esse: você levar ao extremo a particularidade do seu interesse”.

Palavras como evolução, progresso e liberdade “formavam um todo harmonioso e convincente” a serviço do liberalismo burguês, em voga na Europa do século 19. Interessado em desmontar a ideologia burguesa, mostrar os interesses do capital, a exploração do operariado, Marx teria procurado “sanar a ideologia com uma con­tra­ideo­lo­gia”, enfrentando a primeira com uma filosofia totalizante: o materialismo dialético.

Itália e Gramsci

O autor de Ideologia e Contraideologia disse ter-se valido de uma distinção proposta por Bobbio: o “sentido forte” da ideologia (negativo, valorativo), mais ligado à concepção de Marx, até hoje corrente, e o “sentido fraco”, vinculado ao historicismo de Durkheim e Weber. No período em que estudou estética na Itália, nos anos 1960, após formar-se em letras na USP, Bosi entrou em contato com uma espécie de fusão das duas visões. “Recebi uma bolsa e fui para Florença, quando estava se discutindo Gramsci na Itália. Esse descobrimento do Gramsci foi para mim uma grande descoberta”, relatou.

“Eu estava forrado de historicismo, com fortes tendências idealistas. Achava que os escritores escreviam o que escreviam por causa do talento deles, a inspiração e a imaginação, e ponto final. Eu via os grandes talentos, como Dante, Petrarca, Manzoni, como manifestações extraordinárias do espírito humano. Não tinha tido nenhuma formação que procurasse determinar sociologicamente o porquê do aparecimento daqueles autores. Foi um banho de realidade chegar à Itália e ouvir aqueles professores que estavam tentando superar o idealismo — que foi dominante na primeira metade do século, graças a Croce, um gênio”.

Bosi falou das “estranhas contradições” existentes na Divina Comédia, texto dotado de estrutura muito regular, quase matemática. Cada um dos três grandes cânticos, Inferno, Purgatório e Paraíso, tem 33 cantos; cada cântico é dividido em grupos de três, as tercinas. Embora a teologia de Dante seja fiel a São Tomás, muito metódico e moralmente rígido nas suas formulações (no dogma medieval, os pecados graves são punidos eternamente), Bosi encontrou contradições no tratamento dado a um casal de amantes: Francesca e Paolo, ambos assassinados pelo marido traído, irmão de Paolo. Ao deparar-se com eles na sua peregrinação pelo Inferno, Dante acaba por sentir pena, ao levar em conta os atenuantes no adultério por eles cometido. “As metáforas que ele usa para descrever esse casal são muito delicadas”.

Quando o casal vê Dante, Francesca sai de onde se encontra, e ela lhe conta sua história, profundamente emo­­tiva. Quando termina, tomado de compaixão, Dante desmaia e cai como se tivesse morrido. “Como é que Dante tem por eles tanta misericórdia, que é capaz de desmaiar de pena? Então ficou uma dualidade, que a mim sempre impressionou muito. A estrutura ideológica, que é muito poderosa como se vê no caso de Dante, é responsável pela arquitetura global do poema, pela sua divisão em partes, por tudo que é articulação lógica, mas ela é não-poesia. A poesia começa quando aquela estrutura toda não consegue tocar na complexidade do indivíduo. O indivíduo é e não é aquela soma de valores ideológicos”.

 

Informativo n° 325

EXPRESSO ADUSP


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