Ao julgar recurso do professor titular Antonio Herbert Lancha Jr., da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE), contra sua condenação por improbidade administrativa em ação civil pública movida pelo Ministério Público (MP-SP), referente ao chamado “caso do Bod Pod”, a 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça (TJ-SP) decidiu manter apenas parcialmente a sentença decretada pelo juiz Kenichi Koyama, da 15ª Vara da Fazenda Pública. Embora tenham convalidado a condenação de Lancha Jr. por improbidade, os desembargadores da 5ª Câmara de Direito Público anularam “as penas de perda da função pública e de suspensão de direitos políticos impostas a Antônio Herbert Lancha Júnior”, bem como a pena de ressarcimento do dano imposta a ele e aos demais réus.

Os desembargadores Maria Laura Tavares (presidente da 5ª Câmara de Direito Público) e Fermino Magnani Filho acompanharam o voto do relator, desembargador Marcelo Martins Berthe, segundo o qual, embora “suficientemente demonstrada a improbidade administrativa no conjunto de atos praticados pelos apelantes, consistente no uso de bem público para fins particulares, com obtenção de vantagem patrimonial e prejuízo à pesquisa acadêmica”, as penas impostas a Lancha Jr. e demais réus “merecem reparo pelas pecularidades do caso concreto”.

O acórdão da 5ª Câmara, emitido em 17/2/2020, surpreende exatamente porque o relator tece extensas considerações sobre os atos que configuram a improbidade de Lancha Jr., que entende serem amplamente comprovados, para ao final concluir que certas penas são exageradas, com base no argumento de que “a ele foram aplicadas todas as penas previstas no artigo 12, inciso I, da Lei 8.429/92, ainda que mitigadas, o que não se coaduna com a gravidade dos fatos e nem com o princípio da isonomia”.

O relator considera “fatos incontroversos” que Lancha Jr., paralelamente ao seu cargo de professor titular na USP, “desde 2006 realizava consultas a pacientes particulares, na área nutricional, no consultório da Vita Clínicas Medicina Especializa S.A”; que o equipamento Bod Pod foi adquirido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e doado à USP em 2009, em razão de pedido formulado por ele, para a utilização em pesquisas científicas; que “desde o início o equipamento foi alocado dentro do consultório da Vita Clínicas, com anuência da Fapesp e da USP, para, em tese, facilitar o acesso pelas pessoas que estavam sendo estudadas”; e que nesse cenário, “os elementos coligidos nos autos demonstram que houve o desvirtuamento do uso do equipamento Bod Pod, já que o bem público foi empregado para fins particulares, inclusive mediante cobrança pelo seu uso em consultas ordinárias, fora da pesquisa científica para o qual seu uso foi autorizado”.

O desembargador Berthe acrescenta que “a prova dos autos é suficiente a demonstrar que o pagamento foi contraprestação pelo uso do equipamento Bod Pod em consultas particulares, realizadas sob supervisão de Antônio Herbert Lancha Júnior em seu consultório na Vita Clínicas”; que “o equipamento Bod Pod, bem público, foi usado em consultas particulares” realizadas pelo professor; e ainda que “por meio dos pagamentos feitos por seus pacientes, foi auferido diretamente ao menos [o montante de] R$ 3.600,00, repartidos entre Vita Clínicas e Quality of Life”, sendo esta última pessoa jurídica constituída pelo próprio Lancha Jr.

“Alavancagem de prestígio com utilização do equipamento público”

Ademais, prossegue, “em razão de sua raridade, a imagem do equipamento Bod Pod foi explorada em favor dos apelantes” (Lancha Jr., Vita Clínicas e Quality of Life), “e, especialmente, a aparição no programa de televisão ‘Fantástico’, da Rede Globo, no qual o equipamento foi utilizado pelo jogador de futebol Ronaldo Nazário ‘Ronaldo Fenômeno’, nas dependências da Vita Clínicas, sem fins científicos”. Tais circunstâncias, explica o relator, “demonstram a obtenção de vantagem patrimonial indireta, por meio da alavancagem de prestígio e renome dos apelantes com a utilização do equipamento público de alta tecnologia”, de modo que o valor de R$ 100 mil arbitrado pela 15ª Vara da Fazenda Pública, “a título de vantagem patrimonial indireta, é razoável e bem quantifica o acréscimo patrimonial dos apelantes, diante da autopromoção realizada e do custo de aquisição do equipamento”.

A prova dos autos também demonstra, continua o relator do recurso, que Lancha Jr. e seus sócios obstaram o livre uso do equipamento Bod Pod por pesquisadores da USP: “houve suficiente comprovação, notadamente pela prova testemunhal, de que o método e os horários limitados impostos por Antônio Herbert Lancha Júnior, em benefício dos apelantes, prejudicaram o acesso de outros pesquisadores da USP ao equipamento, consequentemente prejudicando a pesquisa acadêmica ao qual se destinava, violando assim os princípios da eficiência, moralidade, impessoalidade e supremacia do interesse público, que regem a conduta dos agentes públicos”, e por isso, arremata, ficou “suficientemente demonstrada a improbidade administrativa no conjunto de atos praticados pelos apelantes, consistente no uso de bem público para fins particulares, com obtenção de vantagem patrimonial e prejuízo à pesquisa acadêmica, que se amoldam às hipóteses dos artigos 9º, 10 e 11 da lei 8.429/92”.

Contudo, Berthe considera que “não é possível a aplicação da pena de ressarcimento do dano, pois não houve demonstração de efetiva ocorrência de lesão ao patrimônio público”, uma vez que o aparelho Bod Pod foi devolvido à USP em 2015, “em condições normais de funcionamento e apto a ser utilizado nas pesquisas científicas”. Não houve portanto, a seu ver, comprovação de prejuízo material ao patrimônio público.

Além disso, argumenta, as penas previstas na lei 8.429/92 devem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a extensão do dano causado e o proveito patrimonial obtido pelo agente. “Nesse sentido, a conduta dos apelantes, embora reprovável, não acarretou em efetiva lesão ao patrimônio público pelo uso particular do equipamento Bod Pod. Ademais, embora prejudicada, a pesquisa científica não foi impedida, tendo sido realizada em alguma extensão com o uso do equipamento. Anote-se, ademais, que a permanência e uso do equipamento Bod Pod nas dependências da Vita Clínicas, para pesquisa científica, foi autorizada pela Fapesp e pela USP, conforme documentos […]”.

No caso das corréus empresas Vita Clínicas e Quality of Life, diz o relator, as penas de perda do valor acrescido ilicitamente ao patrimônio, de pagamento de multa de duas vezes este valor, e de proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios pelo prazo de 10 anos, tais como impostas na sentença, “são adequadas à reprimenda das condutas praticadas”, não merecendo reparos. “Contudo, no caso de Antônio Herbert Lancha Júnior, além das penas acima mencionadas, também lhe foram impostas as penas de perda da função pública sobre qualquer cargo ou função que esteja desempenhando, e a suspensão de seus direitos políticos por 9 anos”.

“Não há como ignorar que é ocupante do cargo de Professor Titular”

De acordo com o voto de Berthe, a aplicação simultânea de todas as penas previstas no artigo 12, inciso I, da lei 8.429/92 é excessiva e desproporcional aos ilícitos praticados pelo docente. “Ademais, não há como se ignorar o fato de que Antônio Herbert Lancha Júnior é ocupante do cargo de Professor Titular da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, topo da carreira acadêmica dentro da instituição líder em pesquisa científica da América Latina, a apontar a relevância de seu trabalho à instituição e à comunidade acadêmica. Embora reprováveis os fatos por ele praticados, não são dotados de gravidade extrema, a evidenciar a desproporcionalidade na imposição de todas as penas previstas na lei, especificamente as penas de perda do cargo ocupado e de suspensão dos direitos políticos. A reprovabilidade da conduta é suficientemente sancionada pelas demais penas impostas, de modo que, por desproporcional, devem ser afastadas as penas de perda do cargo ou função pública e de suspensão dos direitos políticos a ele impostas”.

Por tais razões, finaliza o acórdão, a sentença da 15ª Vara da Fazenda Pública “comporta parcial reparo, para afastar a pena de ressarcimento do dano imposta aos apelantes, afastar as penas de perda da função pública e de suspensão de direitos políticos impostas a Antônio Herbert Lancha Júnior, e afastar a incidência da Taxa Selic para juros e correção monetária”.

Reformada a decisão de primeira instância, a 5ª Câmara condenou os réus às seguintes penas: “1) A Antonio Herbert Lancha Júnior, Vita Clínicas Medicina Especializada S.A. e Quality of Life Atividades Físico Corpóreo Ltda., solidariamente, à perda dos valores acrescidos ilicitamente aos patrimônios, no valor total de R$ 103.600,00, correspondente a R$ 3.600,00 de vantagem patrimonial direta e R$ 100.000,00 de vantagem patrimonial indireta; 2) A Antonio Herbert Lancha Júnior, o pagamento de multa civil de duas vezes o valor acrescido ilicitamente ao patrimônio, de R$ 103.600,00, e a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos; 3) A Vita Clínicas Medicina Especializada S.A., o pagamento de multa civil de duas vezes o valor acrescido ilicitamente ao patrimônio, de R$ 103.600,00, e a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos; 4) A Quality of Life Atividades Físico Corpóreo Ltda., o pagamento de multa civil de duas vezes o valor acrescido ilicitamente ao patrimônio, de R$ 103.600,00, e a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos”.

A aceitação parcial do recurso de Lancha Jr. e seus sócios pela 5ª Câmara desconsiderou o parecer do procurador de justiça Tiago Cintra Zarif, do Ministério Público, para quem o dolo dos recorrentes foi demonstrado: “Agiram com vontade consciente de auferirem lucros materiais e imateriais em prejuízo dos cofres públicos e dos serviços públicos. De qualquer forma, cabe consignar que a configuração do ato de improbidade administrativa não exige o dolo específico de gerar um prejuízo ou lesar os princípios fundamentais da Administração Pública. Ao contrário, contenta-se com o dolo genérico, consistente na vontade consciente de praticar a conduta vedada pelo ordenamento jurídico”. A seu ver, por tais razões “os cofres públicos devem ser ressarcidos do prejuízo causado” pelos réus.

No parecer, emitido em outubro de 2019, Zarif rebateu a tese dos recorrentes de que o equipamento teria voltado à EEFE em bom estado. “Quando o Bod Pod foi devolvido à Universidade de São Paulo, o equipamento já possuía tecnologia defasada e pouca utilidade teve. Do ponto de vista econômico, nada valia”. Ele também defendeu que Lancha Jr. deveria perder seu cargo na USP, conforme sentenciou o juiz Koyama: “Seu nível de conhecimento impunha outra conduta, norteada pela retidão. Não o fez. Optou por mares turvos, pelo enriquecimento a qualquer custo, pelo prejuízo alheio. Os atos gravíssimos por ele praticados são incompatíveis com o exercício do magistério. Acertada foi, portanto, a perda de sua função pública”.

EXPRESSO ADUSP


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