Universidade
Audiência pública na Alesp expõe escassez de docentes e colapso de disciplinas e habilitações do curso de Letras da FFLCH
Na última quinta-feira 18/5 à noite, por iniciativa do deputado Carlos Giannazi (PSOL) e do Centro Acadêmico de Estudos Linguísticos e Literários “Oswald de Andrade” (CAELL), realizou-se uma audiência pública no Plenário José Bonifácio da Alesp sobre a dramática situação do curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP). Na semana anterior, estudantes paralisaram o curso para protestar contra a falta de docentes e exigir contratações imediatas por concurso público.
Além do parlamentar, compuseram a mesa Júlia Silva e Mandi Coelho, diretoras do CAELL, e quatro docentes: Adrián Fanjul, ex-chefe do Departamento de Letras Modernas (DLM) e representante da Congregação da FFLCH no Conselho Universitário; Leiko Matsubara Morales e Arlene Elizabeth Clemesha, ambas do Departamento de Letras Orientais (DLO); e Vanessa Martins do Monte, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (DLCV) e 1ª secretária da Adusp.
“Falamos sobre o que está acontecendo, sobre o fato de alunos não conseguirem cursar as disciplinas obrigatórias mesmo estando no semestre ideal; de não terem oferecimento de disciplinas no semestre que é para ter por conta da falta de professores; do fechamento de várias habilitações, mais frequentemente no período noturno, por causa dessa falta de professores; e da ilegalidade que isso é, porque afinal de contas eles ingressaram no curso dentro de uma habilitação que tem uma grade curricular que tem que ser cumprida, é um dever da universidade”, relatou ao Informativo Adusp a professora Vanessa, que é vice-presidente da Comissão de Graduação da FFLCH e coordenadora da Licenciatura.
Os estudantes expuseram a chocante realidade de suas habilitações. “Foram falas bem firmes, e algumas muito tristes, porque o aluno entra esperando conseguir cursar a habilitação em que ele ingressou e se vê impedido pela precarização extrema do curso, pela falta de professor, sendo que o orçamento da universidade aprovado para 2023 ultrapassa os R$ 8 bilhões e a gente tem a maior reserva em caixa dos últimos 40 anos”, lastima Vanessa. Esse processo de desmonte torna-se ainda mais nefasto, aponta ela, com a aprovação da medida reitoral que limitou em 50% a contratação de docentes.
“Então, se se aposentarem 30 docentes, vão ser contratados quinze, e os outros quinze vão para esses editais de mérito. Ou seja: a universidade cria ‘gincanas’, como Adrián bem disse [ver mais adiante], para dar conta das suas atividades-fim, e da atividade-fim mais importante, que é o ensino. Não é à toa que ensino vem antes: ensino, pesquisa, extensão”, prossegue. “É um projeto político que vai afetar imensamente cursos como o de Letras, que tem várias habilitações e trabalha no limite, não tem vários professores para dar a mesma disciplina. Pelo contrário, são disciplinas altamente específicas, se a gente pensar no caso das línguas, literaturas e culturas”.
O DLO, sozinho, oferece quase metade das habilitações existentes no curso de Letras: sete das 16, explica Vanessa. E o DLM oferece cinco. “Então esses dois departamentos são responsáveis por 12 das 16 habilitações. E o DLCV, que é responsável por outras três, tem uma situação lastimável também. Na área de literatura infantil e juvenil, por exemplo, o número atual é zero docente, porque recentemente tivemos a perda de um docente muito querido, que faleceu, e as duas outras docentes já se aposentaram ou estão em vias de. É uma situação calamitosa. A USP tem recursos suficientes para dar conta desse problema. Não era para isso estar acontecendo”, protesta ela.
Faltam 80 docentes para retornar ao contingente de 2014, diz dossiê do CAELL
“Nós chegamos a um número absurdo, de 80 professores. Isso é o que falta para repor aquilo que a gente tinha em 2014, não é nem para ter um nível top de professores”, disse Mandi Coelho, representante discente na Congregação da FFLCH, a respeito das conclusões de um dossiê elaborado pelo CAELL. De acordo com ela, o sucateamento do curso de Letras foi aguçado na gestão Agopyan-Hernandes e está relacionado ao projeto “USP do Futuro”, encomendado à McKinsey&Company.
Ao se pronunciar na audiência, o professor Adrián rebateu a afirmação da Reitoria de que desconhecia os problemas do curso. “Na reunião do Conselho Universitário de 22 de novembro do ano passado, na reunião de 29 de novembro e na reunião de 22 de dezembro, eu fui fazendo advertências de que nesse semestre iriam colapsar disciplinas”, relatou. “Por que? Porque neste semestre se juntaram dois processos. Por um lado, o acúmulo do sucateamento que já vinha acontecendo sem que sequer essa pequena reposição que a Reitoria está fazendo tivesse efeito, porque a própria Reitoria atrasou a reposição. [Por outro lado] a USP não conseguiu mais continuar com o recurso que vinha utilizando durante esses anos para dissimular a falta de professores, que era a contratação de professores temporários”.
A seu ver, “a USP estava abusando dessa prerrogativa e transformando o trabalho docente em precário a partir dos temporários”, quando uma lei estadual, votada em 2021, “estabeleceu que para contratar um temporário tem que ser porque realmente está substituindo alguém, não porque o gestor decidiu desmontar”, razão pela qual “a Reitoria se viu sem instrumento”. “Então era claro, havia uma questão matemática: no primeiro semestre de 2023 a coisa ia explodir. Está gravado, vocês podem ver, eu até falei: ‘13 de março de 2023 é o dia da verdade’. E aconteceu: disciplinas canceladas, disciplinas colapsadas”.
Adrián, que até recentemente exerceu a chefia do DLM, concordou com Mandi e com Giannazi quanto ao fato de que o desmonte é fruto de um processo histórico, atribuiu papel de destaque, nele, à gestão Zago-Agopyan e avaliou que as gestões reitorais posteriores fazem parte da mesma “família” ou “dinastia”, apesar de desentendimentos pontuais entre seus integrantes, “brigas para a plateia”. Porém, advertiu o professor, na atual gestão estamos diante de uma importante mudança qualitativa dentro desse processo.
“Além da proporção cada vez menor de professores por alunos, a atual Reitoria deliberou, constituída em Comissão de Claros Docentes [CCD] — que é a própria Reitoria que se desdobra em uma comissão que são eles mesmos: o reitor, a vice-reitora e os pró-reitores — deliberou em abril de 2022 o seguinte: que a partir de 2025 a reposição dos docentes que se aposentaram vai ser feita metade como reposição, e a outra metade vai a uma concorrência entre unidades. Então imaginem: uma faculdade teve 30 professores que se aposentaram. Vai receber 15. O resto vai para uma concorrência por suposto mérito”, disse. A avaliação desse mérito, contudo, caberá à CCD, “sem critérios, sem pareceres e sem qualquer tipo de transparência”, comentou. “A Reitoria acaba de fazer um balão de ensaio com 63 cargos, mas se a gente permitir isso, em 2025 vão ser centenas de cargos”.
Adrián informou que a FFLCH, que tem 15% do corpo discente da USP e cerca de 30% dos estudantes do noturno, recebeu apenas dois dos 63 cargos. “Isso é uma coisa muito grave. Se isso se consolida, o resultado é um processo de instabilidade curricular. Qualquer um que tenha tido que planejar um curso inteiro de graduação, não uma disciplina, sabe que você não pode planejar se você não sabe que professores vai ter, em que área. Então vamos eliminando áreas, vamos criando uma coisa suficiente ‘mole’, porque cada ano você tem que concorrer na ‘gincana’, então a solução vai ser cursos ‘mega’, que não tenham programas muito claros, currículos muito claros”. O que tornará inviável o curso de Letras com suas diferentes habilitações, que tende a tornar “um grande mastodonte, sem especificidades”. Em outros cursos, afirmou, poderá ocorrer o enfraquecimento de áreas: por exemplo, História “poderá continuar entregando o diploma de História, mas talvez sem História da Arte”.
Na sua opinião, é preciso haver um momento de responsabilização, “porque oferecer um curso, no manual do vestibular, e depois não poder garanti-lo, aí tem que haver algum tipo de entrave jurídico”. Haja ou não haja, continuou, a decisão da CCD de abril de 2022 tem que ser derrogada, “porque é uma deliberação dissimulada de fim da especificidade dos cursos, nos transformamos numa preparação para coisas como Novo Ensino Médio”.
Só para “repor aposentados, perdas, mortes”, DLO precisa de 13 docentes
Após elogiar a iniciativa do movimento estudantil, por mais vez colocar-se “na dianteira e se contrapor a esse sucateamento”, a professora Arlene Clemesha destacou a importância do DLO no tocante à inserção internacional do país. “Como o Brasil pode ter um papel no mundo, ter proeminência, ter voz na ONU, no [grupo] BRICS, em todas as instâncias internacionais, ter uma liderança por um diálogo Sul-Sul, se não tiver pessoas que possam falar as mesmas línguas?”, questionou ela.
A professora chamou atenção para o fato de que as habilitações de Letras Orientais da FFLCH são as únicas a oferecerem, além do ensino das línguas, disciplinas concernentes às respectivas literatura, filosofia e história. “Somos sete habilitações, com uma gama de áreas que são cobertas. Então temos universidades excelentes no Brasil, com Letras Orientais também excelentes, mas que não têm e nunca tiveram o que a gente batalhou — graças a essa coesão entre o movimento estudantil e as demandas do próprio corpo docente — para ter e oferecer e criar esse espaço de pesquisa, de ensino, de extensão”.
“Temos um déficit, só para repor aposentados, perdas, mortes, de 13 professores”, disse Arlene. “No DLO especificamente a gente tem armênio, chinês, coreano, hebraico, japonês, russo e árabe. Em todos elas faltam docentes. Em todos elas a gente está com o problema de um desmonte muito grave. E [a habilitação em] japonês vai fechar, se nada for feito. O árabe vai perder três docentes no próximo ano, são sete para dar conta de toda a habilitação”.
Criada em 1963, a habilitação em japonês foi a primeira a ser oferecida em âmbito público no Brasil, explicou a professora Leiko Morales, pois anteriormente a língua era ensinada apenas em instituições privadas. É a única que ainda é oferecida no período noturno. “Muitos pensam que a Ásia é uma coisa só. Somos um departamento muito, muito heterogêneo, e é importante manter essas especificidades”, enfatizou ela a propósito do DLO.
Leiko, que revelou ter sido a primeira professora contratada após a reposição de docentes conquistada pela histórica greve de 2002 da FFLCH (muito citada na audiência), reiterou a interpretação do professor Adrián sobre a instabilidade curricular gerada pela escassez de docentes. “Nós temos dois turnos completos, cheios, uma demanda muito grande. Uma professora foi agora estudar no Japão, porque a bolsa dela já tinha sido garantida, e nós tivemos que nos desdobrar porque não temos outro professor”, relatou. “Pedimos três vezes, não um claro, mas um professor substituto. Ouvimos ‘não’. Isso foi muito grave. Chegamos no fundo do poço”, desabafou.
“Nós recebemos alunos do Brasil inteiro, não só de São Paulo”, salientou a docente, lembrando que, por pertencer a uma universidade pública, o curso de Letras envolve, além da graduação, a extensão (“nós fazemos a ponte com a sociedade”) e também a pós-graduação. Ademais, observou, “nossos alunos não são mais descendentes de japonês, o curso é extremamente aberto, ele já está com foco de língua estrangeira, 95% dos alunos são não descendentes”.
Giannazi propôs, durante a audiência, que a Reitoria encaminhe à Alesp projeto de lei criando vagas no curso de Letras. Além disso, na avaliação do parlamentar, o reitor Carlos Gilberto Carlotti Jr. está cometendo improbidade administrativa ao não providenciar a contratação de novos docentes para o curso na quantidade necessária, o que o torna suscetível a uma denúncia por parte do Ministério Público (MP-SP). Giannazi também se comprometeu a solicitar a convocação do reitor para prestar esclarecimentos à Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação e Informação (CCTII) da Alesp.
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