Universidade
Docentes surdas reivindicam criação de Departamento de Intérpretes de Libras na USP; atualmente, serviço é prestado por terceirizados(as), e fim dos contratos coloca atuação acadêmica em risco
Egressos(as) do curso de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP criaram um abaixo-assinado na Internet para reivindicar a manutenção dos contratos dos(as) intérpretes de Língua Brasileira de Sinais (Libras) e o cumprimento da legislação que prevê a inclusão e a acessibilidade das pessoas com deficiência. O abaixo-assinado tem como principal motivação a garantia da continuidade do trabalho da professora Fernanda de Araujo Machado, contratada no ano passado pelo Departamento de Linguística da unidade.
A professora, que é surda, tem direito à presença dos(as) intérpretes “não apenas em suas aulas, mas também em eventos, reuniões, palestras e quaisquer outras atividades acadêmicas que fazem parte da rotina docente universitária”, diz o abaixo-assinado.
Atualmente, no entanto, os(as) intérpretes estão presentes apenas em duas situações, explica a professora em mensagem enviada ao Informativo Adusp Online: as suas aulas e as reuniões do Conselho do Departamento de Linguística.

Mesmo essa presença limitada, porém, corre o risco de ser interrompida, porque a USP não garante o direito ao serviço dos(as) intérpretes: tanto na FFLCH quanto na Faculdade de Educação (FE), onde atua a primeira docente surda contratada pela universidade, o serviço é fornecido por meio de contrato com empresas terceirizadas.
No caso da FFLCH, o custo da contratação vinha sendo coberto pela Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo (FUSP), mas o financiamento foi encerrado no último dia 12 de maio. De acordo com a professora, a faculdade assumirá os custos até o final de maio. “A Diretoria da FFLCH tem se mostrado empenhada em encontrar soluções”, considera Fernanda Machado.
Um edital de licitação foi aberto para a contratação de uma nova empresa para atender a diversas unidades. No entanto, observa a professora, “o termo de referência não exige formação de nível superior para os intérpretes, apenas o certificado do ProLibras, exame de proficiência que, segundo a legislação mais recente, não possui mais validade”.
Na FFLCH, o processo de contratação está em andamento, disse ao Informativo Adusp Online o professor Adrián Pablo Fanjul, diretor da unidade. O pagamento do serviço foi garantido pela unidade até o final de maio, quando a nova contratação já deve estar concluída, acredita o diretor.
Já o diretor executivo da FUSP, professor Marcílio Alves, informou à reportagem que a fundação “efetuará novo aporte de recursos visando a manutenção do serviço de intérpretes de Libras na FFLCH, pois entende que esse tema deve ser devidamente apoiado por toda a comunidade uspiana”. Alves, no entanto, não deu detalhes sobre como e quando a medida será adotada.
Rotatividade e falta de experiência acadêmica são problemas sérios, considera docente da FE
Sylvia Lia Grespan Neves, docente da Faculdade de Educação, foi a primeira professora surda contratada pela USP, ainda em 2023. No caso da unidade, o contrato com a empresa terceirizada que fornece os serviços de interpretação também está em vias de ser encerrado.
“A eventual interrupção dos contratos sem nova contratação imediata acarretará minha exclusão de todas as atividades acadêmicas essenciais, incluindo reuniões departamentais, aulas, eventos científicos e demais compromissos institucionais, comprometendo significativamente minha atuação profissional e participação na comunidade universitária”, afirma a professora em mensagem enviada ao Informativo Adusp Online.
“Atualmente, tenho conseguido acesso a todas as atividades e reuniões. Entretanto, existe a exigência de agendamento dos intérpretes com antecedência mínima de 15 dias. Esta condição impõe limitações significativas à minha participação em reuniões convocadas em caráter de urgência ou em congressos não programados com a devida antecedência, impossibilitando minha plena integração acadêmica”, continua.

Segundo a legislação que regulamenta a profissão de tradutores e intérpretes de Libras, em qualquer evento ou ocasião com duração superior a uma hora é exigido o trabalho em dupla, em esquema de revezamento.
De acordo com a Diretoria da FE, está em andamento uma nova licitação para contratação de empresa especializada. A sessão pública está agendada para a próxima sexta-feira (23 de maio). “Considerando que a licitação ocorra sem intercorrências (recurso, fracasso, revogação etc.) o prazo médio de conclusão é de 20 a 30 dias a contar da abertura”, informou a Diretoria em nota enviada à reportagem.
A professora Sylvia Lia ressalta que, para além da questão contratual, existe uma preocupação importante quanto à qualificação dos intérpretes. “Com base em minha experiência profissional, tenho observado que muitos intérpretes designados para atuação no ambiente universitário não possuem a necessária experiência acadêmica, o que compromete a qualidade da interpretação em contextos que exigem conhecimento específico”, aponta.
Outro problema está na “frequente rotatividade dos profissionais”, que “prejudica a continuidade e coerência das interpretações, uma vez que os intérpretes substitutos não acompanharam o desenvolvimento anterior das disciplinas, perdendo a contextualização necessária para uma interpretação precisa e eficaz”.
A professora abordou essas questões também num vídeo produzido pelo Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), gravado durante o IV Seminário Integrado da Coordenação do Grupo de Trabalho Política de Classe para as Questões Étnico-raciais, de Gênero e Diversidade Sexual do Andes-SN, realizado no final de abril em São Paulo, com organização da Adusp.
Intérpretes devem ser contratados(as) por concurso e ter dedicação exclusiva
A professora Sylvia Lia vem elaborando, a partir de discussões com colegas e com a comunidade surda acadêmica, a proposta de implementação de um Departamento de Intérpretes de Libras na USP. “A elaboração dessa proposta surgiu a partir de minhas experiências pessoais como professora surda na instituição e da observação das dificuldades enfrentadas por toda a comunidade surda no acesso aos diversos serviços universitários. A Unicamp tem esse modelo, excelente, conta com três intérpretes concursadas”, informa.
Um exemplo que demonstra as limitações da atual estrutura de serviços de interpretação em Libras na USP ocorreu recentemente no Hospital Universitário (HU), onde houve um caso crítico envolvendo uma criança de cinco anos em estado grave que necessitava de intervenção cirúrgica urgente. “A equipe médica, contudo, enfrentou sérias dificuldades de comunicação com os pais da criança, que eram surdos, comprometendo o processo de consentimento informado e o acompanhamento familiar durante o procedimento médico”, relata a minuta da proposta.
A solução para atender adequadamente às necessidades de acessibilidade em Libras na USP seria a criação de um Departamento de Intérpretes de Libras centralizado, com estrutura própria e autonomia administrativa, defende a proposta. O departamento seria responsável por atender às demandas de interpretação em todas as unidades e serviços da USP, incluindo unidades de ensino; hospitais e serviços de saúde; setores administrativos; eventos institucionais; serviços de extensão à comunidade; atendimento ao público em geral.
O departamento teria um quadro permanente de intérpretes, com dedicação exclusiva e contratados(as) por concurso público. A seleção deve levar em conta a formação específica e a experiência comprovada em diferentes contextos, incluindo o acadêmico e o médico-hospitalar.
A minuta da proposta argumenta que a criação de um Departamento de Intérpretes de Libras “representaria um avanço significativo nas políticas institucionais de acessibilidade, transformando a atual abordagem fragmentada e insuficiente em um modelo integrado e eficiente”, alinhando-se aos “princípios de universalidade do acesso ao conhecimento e aos serviços públicos” e “reafirmando o compromisso da Universidade com a inclusão plena da comunidade surda em todas as suas esferas de atuação”.
A professora Fernanda Machado, da FFLCH, endossa a reivindicação. “É necessário que a Reitoria crie o cargo de intérprete e realize concurso público para a seleção de profissionais com formação acadêmica e proficiência linguística adequadas ao ambiente universitário. Somente assim poderemos exercer nossas funções de ensino, pesquisa e extensão com dignidade e respeito”, defende.
FFLCH e FE apoiam criação de departamento
O diretor da FFLCH também corrobora a proposta. “Sem dúvida é necessário que a contratação seja por concurso público e com a estabilidade que dá, no mínimo, a contratação celetista. É algo que já defendemos e argumentamos reiteradas vezes diante de várias instâncias da administração central, e que consta, inclusive, no Projeto Acadêmico da faculdade”, diz Fanjul.
A contratação terceirizada, prossegue, não permite a verificação da real fluência em Libras do(a) intérprete, além de não garantir que o(a) profissional tenha condições de “circular com precisão por tipologias textuais, orais e escritas envolvidas na produção de conhecimento”.
O diretor também relata que a rotatividade dos(as) profissionais terceirizados(as) não permite que os(as) intérpretes se acostumem com as áreas de conhecimento específicas e nem aprendam o suficiente sobre o funcionamento da universidade, o que limita o seu trabalho em reuniões de departamento, por exemplo.
A Diretoria da FE igualmente apoia a criação de um departamento de intérpretes de Libras centralizado. A criação de um lugar institucional com um conjunto de intérpretes tem sido defendida por várias unidades nos Seminários de Políticas Linguísticas, ressalta a nota enviada pela FE.
Desde 2022, esse seminário solicita a criação de um Programa de Desenvolvimento de Políticas Linguísticas para a USP (PDPoLínguas-USP). O programa teria o objetivo de construir “políticas linguísticas pautadas pelo plurilinguismo” e inclui, entre suas propostas, o “incentivo ao ensino de Libras e de línguas indígenas, contribuindo para a ampliação do horizonte epistemológico e para a inclusão educacional e social de não falantes de português, via o reconhecimento de suas línguas maternas em diversas instâncias de sua formação”.
A criação do programa é necessária “para dar estabilidade às ações advindas da universidade nessa área, embasando essas políticas na reflexão constante e na necessária institucionalização das ações, tanto as permanentes quanto as que atendem a exigências pontuais, ligadas a programas de cooperação”.
Procurada por meio de sua Assessoria de Imprensa para se manifestar sobre os problemas envolvendo os contratos de prestação de serviços de intérpretes e a proposta de criação de um Departamento de Intérpretes de Libras na USP, a Reitoria não respondeu aos questionamentos enviados pelo Informativo Adusp Online.
Fortaleça o seu sindicato. Preencha uma ficha de filiação, aqui!
Mais Lidas
- Carta aberta de discentes de pós-graduação da FFLCH rejeita “novo modelo” de doutorado e mestrado proposto por Capes, Fapesp e PRPG
- Justiça Federal emite mandado de prisão contra o “hacker” Azael, autor de ataques à USP em março
- Conselho Universitário da USP aprova compra de terreno do governo estadual por R$ 281 milhões, seguida de cessão ao próprio governo, a pretexto de “expansão” do câmpus de Ribeirão Preto
- Vida e histórias de João Zanetic são celebradas em emocionante cerimônia que marcou primeiro ano do falecimento do professor, por duas vezes presidente da Adusp
- Assembleia Geral apoia contraproposta de 8% de reajuste apresentada ao Cruesp pelo Fórum das Seis; docentes criticam açodamento na compra de terrenos em Ribeirão Preto e São Carlos