Na homenagem da Medicina a Antonio Cabral e Gelson Reicher, estudantes exigem fim do “regime disciplinar” da Ditadura ainda em vigor na USP
Na abertura do evento, Coral da FMUSP executa a canção "Cálice", de Gilberto Gil e Chico Buarque (foto: Daniel Garcia)

No dia 28 de agosto, a Faculdade de Medicina (FM-USP) realizou uma solenidade em homenagem à memória de seus ex-estudantes Antonio Carlos Nogueira Cabral e Gelson Reicher, aos quais foram conferidos diplomas honoríficos post mortem. Além do reitor Carlos Gilberto Carlotti Jr., da vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda e pró-reitores, participaram da cerimônia familiares, amigos e ex-presos políticos.

Cabral e Reicher foram presos, torturados e assassinados pelo Exército em 1972, quando tinham 23 anos. Ambos atuavam na Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo dissidente do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Cabral presidiu o Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC) e Reicher foi diretor da entidade. Ambos envolveram-se com o Grupo de Teatro da Medicina (GTM), fundado pelo professor Walter Colli, e que Reicher dirigiu de1969 até 1971.

O diploma honorífico conferido a Reicher foi entregue a suas irmãs, Felícia Reicher Madeira e Ruth Reicher, pelo professor José Ricardo Ayres, presidente da Comissão de Inclusão e Pertencimento da FM-USP, e pela pró-reitora de Inclusão e Pertencimento, Ana Lúcia Duarte Lanna. O diploma atribuído a Cabral foi entregue à sua irmã, Tania Cristina Cabral, pelo pró-reitor de Graduação, Aluisio Segurado, e pela professora Iolanda Tibério, presidente da Comissão de Graduação da faculdade.

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Jônatas Magalhães e Laura Panassol, representantes do DCE-Livre

“Estamos aqui para honrar a coragem e a determinação de estudantes que, em um período sombrio de nossa história, escolheram resistir. Eles são faróis de força e compromisso com os valores que tanto prezamos: justiça, liberdade e respeito aos direitos humanos”, declarou Eloisa de Oliveira Bonfá, diretora da FM-USP. “Esse evento é um passo essencial em nosso caminho de reconciliação e memória, reafirmando nosso compromisso com a verdade e com aqueles que foram injustiçados”.

O médico Reinaldo Morano, ex-aluno da faculdade e ex-preso político, fez um discurso marcante, sendo fortemente aplaudido ao criticar uma publicação oficial da FM-USP que traz elogios ao médico legista e professor titular Armando Canger Rodrigues (1921-1984), e que havia sido distribuída para familiares dos homenageados. Trata-se do livro Trajetória da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: aspectos históricos da “Casa de Arnaldo”.

“Nem vou perguntar quem financiou. Mas os familiares do Cabral e do Gelson não podiam receber isso aqui. ‘Bom didata’ (lê um trecho), alguém aqui assistiu às aulas desse cara?, ‘suas aulas eram sempre ilustradas com casos interessantes’. Ele assinou três laudos falsos de opositores dessa ditadura que a gente está aqui execrando. Que é isso aqui (mostrando o livro)? Ele é acusado de três laudos falsificados. Então ou a gente liga com isso, ou daqui a 60 anos nós vamos fazer outra solenidade”,

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Tania Cristina Cabral, irmã de Antônio, com Iolanda Tibério e Aluísio Segurado

Outro orador, Jônatas Magalhães, quintanista de Medicina, ex-diretor do CAOC (tal como Cabral e Reicher) e representante do Diretório Central dos Estudantes da USP, iniciou sua fala lembrando que o estudante de geologia Alexandre Vannucchi Leme, que dá nome ao DCE, “foi torturado e assassinado durante a Ditadura Militar”.

O termo “livre” em “DCE-Livre da USP” não é apenas “uma palavra a mais em nosso nome, mas sim carrega uma herança de luta e resistência”, explicou Jônatas. “Durante a ditadura, o DCE oficial era tutelado pela Reitoria e não representava a verdadeira voz dos estudantes. Estes então fundaram uma entidade paralela, clandestina e livre, para representar seus interesses e lutar contra a repressão”, esclareceu o dirigente estudantil.

“Hoje estamos aqui para honrar a memória de Gelson Reicher e Antônio Carlos Nogueira Cabral, assim como a de todos os outros 45 membros da comunidade USP que foram assassinados durante a ditadura militar. Quase 11% das vítimas do regime pertenciam ao corpo social da USP, uma universidade que foi, ao mesmo tempo, espaço de resistência, mas também de colaboração com o regime”, destacou Jônatas.

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Felícia Reicher Madeira e Ruth Reicher, irmãs de Gelson, com Ana Lanna e José Ayres

“Jamais podemos nos esquecer que a USP teve um papel importante na consolidação do golpe de 1964 e na manutenção do regime ditatorial. Seja através de figuras como Luís Antônio da Gama e Silva, então reitor, professor da Faculdade de Direito, e redator do Ato Institucional nº 5, ou através da criação da Assessoria Especial de Segurança e Informação [AESI] dentro da universidade, responsável por repassar informações sobre alunos e professores ao Serviço Nacional de Informações”, acrescentou.

Também estudante de Medicina, diretora do CAOC e integrante do DCE-Livre, Laura Panassol enfatizou, na sua manifestação, a atualidade das lutas travadas por Antônio Cabral e Gelson Reicher. “Acredito que a pessoa que eles foram mantém, ainda hoje, em nós, estudantes como eles, a luta que arde, segundo Drummond, ‘à maneira da chama que dorme nos paus de lenha jogados no galpão’. Inerte mesmo que fujamos dela; intensa, se a alimentamos”, disse. “E que possamos, então, hoje, alimentar essa chama que corria nos alunos assassinados pela Ditadura Militar e lutar pela justiça, a qual fora, por eles, almejada. É nosso compromisso histórico diplomá-los e nosso dever, continuar as suas trajetórias”.

Prosseguindo, Laura criticou a Reitoria, sem citá-la explicitamente, por não tomar as necessárias medidas contra o legado ditatorial na USP: “A luta que Antônio Carlos Nogueira Cabral e Gelson Reicher travaram dentro e fora da Universidade de São Paulo é ainda atual, apesar do hoje representar um avanço. É ainda atual aqui dentro de nossa universidade, a qual ainda não cumpriu com quase nenhuma das recomendações feitas pela Comissão da Verdade da USP por memória e reparação dos crimes cometidos pela Ditadura Militar brasileira e seus colaboradores”.

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Reinaldo Morano (ao centro), ex-deputado federal Gilney Viana (esq.), advogado Aton Fon e outros ex-presos políticos

Neste ponto, a diretora do CAOC e dirigente do DCE-Livre levantou a questão da vigência, até os dias de hoje, do Decreto 52.906/1972, parcialmente incorporado ao Regimento Geral da USP em 1990, conforme estipulado no Artigo 4o das Disposições Transitórias: “Enquanto não for aprovado o novo regime disciplinar pela CLR, permanecem em vigor as normas disciplinares estabelecidas no Regimento Geral da USP editado pelo Decreto 52.906, de 27 de Março de 1972” (destaques nossos).

De autoria do então governador Laudo Natel (Arena) e do então reitor Miguel Reale, ambos homens de confiança do regime militar, o decreto prevê a pena máxima de “eliminação” de discentes (expulsão), no artigo 248, e define como práticas de “infração disciplinar do aluno, passíveis de sanção segundo a gravidade da falta cometida”, no artigo 250, atividades legítimas tais como “fazer inscrições em próprios [prédios] universitários, ou em suas imediações, ou nos objetos de propriedade da USP e afixar cartazes fora dos locais a eles destinados”, “promover manifestação ou propaganda de caráter político-partidário, racial ou religioso, bem como incitar [sic], promover ou apoiar ausências coletivas [greves] aos trabalhos escolares”, ou ainda “perturbar os trabalhos escolares bem como o funcionamento da administração da USP”, definição vaga na qual pode ser enquadrado qualquer tipo de protesto.

Por essa razão, após citar como “ainda atual” a trajetória de Cabral e Reicher “porque aqui dentro [na USP] ainda vemos fotografias e homenagens a pessoas que historicamente violaram os direitos humanos”, Laura insistiu nesse mote para reiterar que a herança ditatorial persiste incólume na universidade: “É ainda atual aqui dentro porque persiste o regime disciplinar que foi criado durante a Ditadura Militar, que visava perseguir os estudantes, como Antônio Carlos Nogueira Cabral e Gelson Reicher, e porque ainda mantém sua estrutura extremamente não democrática”, frisou.

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Teatro da FMUSP recebeu numeroso público para a cerimônia realizada em 28 de agosto

No discurso, ela mencionou também a greve dos estudantes da FM-USP realizada no início deste ano, a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 e o projeto neoliberal conduzido pelo governador de São Paulo. Tarcísio de Freitas e o bolsonarismo, assinalou, “seguem com a militarização de nossas periferias e escolas, com a privatizações de nossos serviços públicos, a retirada de nossos direitos e”, ainda, o “genocídio de nossa juventude negra e pobre”.

A seu ver, a luta de Cabral e Reicher é atual porque derrotar a extrema-direita do presente é também fazer justiça à luta destes estudantes no passado. “A memória deles é uma de nossos armas e lutaremos até o fim por justiça e pela punição dos golpistas do passado e do presente! Que a escola militar, a repressão, a violência policial, o silêncio e o assassinato assentido sejam absurdos que jamais serão permitidos e repetidos. Aos nossos mortos, nenhum minuto de silêncio, mas toda uma vida de luta!”, finalizou.

O evento de 28 de agosto na FM-USP deixou de homenagear o médico e guerrilheiro Boanerges de Souza Massa, ligado ao Movimento de Libertação Popular (Molipo). Diplomado pela faculdade em 1965, Massa preso em Goiás em 1971 ou 1972, e oficialmente declarado como desaparecido pela Comissão Especial para Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) em 1997.

EXPRESSO ADUSP


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