O Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha será celebrado neste 25/7 sob o impacto da divulgação, na semana passada, dos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, segundo o qual o ano de 2022 registrou o maior número de estupros nos 17 anos da pesquisa.

De acordo com o relatório, houve 74.930 estupros no país em 2002, crescimento de 8,2% em relação a 2021. Os dados correspondem ao total de vítimas que formalizaram denúncias em delegacias, o que faz supor uma expressiva subnotificação, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), que organiza o relatório – cuja íntegra pode ser acessada aqui.

O número representa uma média de 205 estupros por dia. As pessoas negras continuam sendo as principais vítimas da violência sexual. De acordo com o Anuário, em 2021, 52,2% das vítimas eram pretas ou pardas, enquanto em 2022 o percentual subiu para 56,8%.

Do total, 56.820 dos crimes foram praticados contra vulneráveis — quando a vítima tem menos de 14 anos de idade ou não tem condições de consentir. Também nesse caso o número registrado é o maior da série histórica. Mais de seis em cada dez vítimas (61,4%) estão na faixa de 0 a 13 anos.

“Explicar o crescimento da violência sexual no Brasil não é tarefa fácil. Em primeiro lugar, porque a subnotificação é regra nestes casos e está longe de ser uma especificidade do contexto brasileiro, estando presente em levantamentos em todo o mundo”, escrevem Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP; Marina Bohnenberger, mestre em Antropologia Social pela USP; Juliana Martins, doutora pelo Instituto de Psicologia da USP; e Isabela Sobral, mestre em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), todas integrantes do FBSP.

Estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) indicou que apenas 8,5% dos estupros no Brasil são reportados às polícias e 4,2% pelos sistemas de informação da saúde, citam as pesquisadoras. “Assim, segundo a estimativa produzida pelos autores, o patamar de casos de estupro no Brasil é da ordem de 822 mil casos anuais. Se considerarmos que desde 2019 (ano considerado no estudo) os registros cresceram, a situação pode ser ainda mais grave”, advertem.

Uma das hipóteses apontadas pelas pesquisadoras é de que haja um aumento das notificações uma vez que as vítimas estão mais informadas e se sentem mais empoderadas por fatores como a realização de campanhas do tipo #PrimeiroAssédio nas mídias sociais.

No entanto, lembram, “este argumento precisa ser relativizado quando verificamos o perfil das vítimas”. “No Brasil, 6 em cada 10 vítimas são vulneráveis com idades entre 0 e 13 anos, que são vítimas de familiares e outros conhecidos. Ou seja: ainda que estas crianças e adolescentes estejam mais informadas sobre o que é o abuso, é difícil crer na hipótese do empoderamento como única explicação para o fenômeno.”

Casos de violência contra crianças e adolescentes são “impressionantemente altos”

A realidade da violência contra a(o)s menores de 18 anos levou Sofia Reinach, pesquisadora associada do FBSP, e Betina Warmling Barros, doutoranda em Sociologia na USP e pesquisadora no FBSP, a ressaltar que “dificilmente teríamos como apresentar um cenário pior em relação à violência contra crianças e adolescentes do que o que se desenhou para o ano de 2022”.

“Diferentes formas de violência contra quem possui entre 0 e 17 anos cresceram no último ano. Os números são impressionantemente altos e, como previsto nos últimos Anuários, já extrapolam as estatísticas anteriores à pandemia de Covid-19”, constatam.

De acordo com as pesquisadoras, “o padrão de queda dos registros nos períodos de férias escolares tem se confirmado, evidenciando que não se trata de uma especificidade do período de isolamento social e indicando que, possivelmente, a rede escolar é protagonista na percepção e denúncia de casos de maus-tratos contra o público mais jovem”.

A queda de registros nos meses em que as crianças não estão na escola, portanto, enfatizam as pesquisadoras, reforça “a importância dos profissionais da educação na realização de denúncias e do setor educacional como um todo, como parte fundamental da rede protetiva às crianças”.

Nos casos gerais de estupro, a publicação aponta que a maioria das ocorrências (68,3%) se dá na própria residência — ou seja, é praticamente certo que o perpetrador conhece a vítima.

Do total das vítimas, 75,8% eram incapazes de consentir, fosse pela idade (menores de 14 anos), ou por outros motivos, como deficiência, enfermidade, etc.

“É muito provável que parte significativa das notificações decorra de estupros de vulnerável iniciados e/ou ocorridos durante o lockdown, mas que só vieram à tona quando as crianças voltaram a frequentar as escolas”, considera Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP. “E esse cenário, infelizmente, não é uma exclusividade do Brasil”.

Todos os indicadores de violência doméstica cresceram

O Anuário demonstra que a taxa de feminicídios cresceu 6,1% (1.437 casos) e que os assassinatos de mulheres tiveram alta de 1,2% (4.034 casos). Sete em cada dez vítimas de feminicídio foram mortas dentro de casa.

O relatório aponta ainda que todos os indicadores de violência doméstica aumentaram: 2,9% na taxa de agressões por violência doméstica (245.173 casos); 7,2% no número de ameaças (613.529 ocorrências); 8,7% nos chamados para o 190 (899.485, o que corresponde a 102 acionamentos por hora). O número de Medidas Protetivas de Urgência (MPU) concedidas foi de 445.456, crescimento de 13,7% em relação a 2021.

O número de casos de assédio sexual registrados foi de 6.114, o que configura um aumento de 49,7% em relação ao ano anterior, enquanto o crescimento de ocorrências de importunação sexual foi de 37% (27.530 casos).

O Anuário mostra que houve uma redução no total de mortes violentas intencionais, que agrega as vítimas de homicídio doloso (incluindo feminicídios e policiais assassinados), roubos seguidos de morte, lesão corporal seguida de morte e as mortes decorrentes de intervenções policiais.

Em 2022, o Brasil registrou 47.508 mortes violentas intencionais, contra 48.431 em 2021, redução de 2,4%. Essa pequena queda é positiva e precisa ser realçada, escrevem Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do FBSP e professor da FGV. Todavia, apontam, a redução também revela limites metodológicos e problemas devidos a fatores como a opacidade de dados — o governo Bolsonaro não encaminhou, por exemplo, as informações referentes a 2021 e 2022 ao Escritório das Nações Unidas para Crimes e Drogas (UNODC), o que não permite “saber qual a quantidade e/ou a proporção que os homicídios cometidos no Brasil representam em relação ao total de mortes violentas no mundo”.

Essas questões devem ser destacadas, salientam Bueno e Lima, para que a sociedade brasileira não seja “induzida a acreditar na ideia de que o país resolveu seu dilema civilizatório e agora é uma nação mais segura”. “Estamos longe disso. Ainda somos uma nação violenta e profundamente marcada pelas diferenças raciais, de gênero, geracionais e regionais que caracterizam quem são e onde vivem as vítimas da violência letal”, afirmam.

EXPRESSO ADUSP


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