Luta pelo fundo público no cenário pós-reforma tributária já começou, e entidades da educação precisam se mobilizar para garantir autonomia e financiamento das universidades
Sebastião Guedes, Michele Schultz e Pio Romera: autonomia universitária está em risco (foto: Bahiji Haji)

A reforma tributária abre novas possibilidades de construção do futuro do financiamento das universidades estaduais paulistas. Porém, o contexto político e a correlação de forças são altamente desfavoráveis, e a autonomia conquistada em 1989 está em sério risco, avaliaram os participantes do debate “Como ficará o financiamento das universidades estaduais paulistas com a reforma tributária?”, promovido pelo Fórum das Seis nesta terça-feira (25/6). A atividade ocorreu na Faculdade de Ciências da Unesp em Bauru, e a íntegra está disponível no YouTube.

Um dos debatedores, Sebastião Neto Ribeiro Guedes, docente da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Araraquara e diretor da Associação dos Docentes da Unesp (Adunesp), afirmou que sempre houve setores contrários à autonomia da USP, Unesp e Unicamp. Porém, considera, no momento ela corre risco como nunca antes. “É preciso que haja um documento que de fato resguarde tanto a autonomia quanto o percentual de financiamento para garanti-la”, defendeu.

Um dos principais objetivos do debate promovido pelo Fórum das Seis era exatamente discutir como se dará a manutenção das universidades com a reforma tributária (Emenda Constitucional 132/2023), sancionada no final do ano passado. Atualmente, as instituições recebem o repasse anul de 9,57% da Quota-Parte do Estado do ICMS (ICMS-QPE), assim distribuídos: USP, 5,02%; Unesp, 2,34%; Unicamp, 2,19%. A reforma prevê a extinção do ICMS e a sua substituição gradual, até 2033, pelo novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Guedes fez parte de um grupo de trabalho criado pelo Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp) para elaborar um diagnóstico do quadro a partir da reforma e permitir que os reitores estabeleçam uma estratégia de ação em relação às mudanças.

O GT teve três representantes de cada universidade. Pela USP, participaram Eduardo Amaral Haddad (FEA), Fernando Facury Scaff (docente da FD e superintendente jurídico da USP) e Heleno Taveira Torres (docente da FD e superintendente de Relações Institucionais).

GT do Cruesp propõe repasse de 8,63% da receita total líquida do Estado

O GT trabalhou com a perspectiva de estimar quais seriam a fonte da receita e o percentual equivalente aos atuais 9,57% do ICMS-QPE. “Não estamos pedindo nem a mais nem a menos do que aquilo que financia as universidades hoje”, explicou Guedes.

O GT concluiu que a fonte seja a receita total líquida do Estado, que inclui outras receitas além dos impostos, e que o percentual necessário para financiar as universidades nos moldes do que ocorre hoje seria de 8,63% dessa receita.

Nas recomendações ao Cruesp, o GT traçou dois cenários. No mais otimista, a ideia é incluir esse percentual na Constituição Estadual, assim como ocorre com as verbas destinadas à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que recebe o mínimo de 1% da receita tributária, conforme determina o artigo 271 da Constituição Estadual de 1989.

Essa proposta garantiria a autonomia universitária, disse Guedes, referindo-se à posição do GT. O grupo reconhece, no entanto, a grande dificuldade de uma proposta como essa transitar na atual configuração da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), além da falta de interesse ou de condições do governador para encaminhar a questão.

A segunda alternativa é alterar o Decreto 29.598/1989, que instituiu a autonomia, e inserir nele o percentual de 8,63% como fonte de financiamento das universidades. “É uma alternativa provisória que nos daria algum tipo de caução até que as condições políticas pudessem permitir o avanço para a primeira proposta. Isso não seria o ideal, mas permitiria que a gente pudesse ter alguma iniciativa até que se viabilizasse a proposta de tornar constitucionais a fonte e o percentual de financiamento”, afirmou.

É preciso reagir aos ataques à educação, defende presidenta da Adusp

A reforma, definiu Guedes, “é uma luta política para você se assenhorar de parte do orçamento”, no qual “todos os atores políticos e econômicos estão de olho”. Por essa razão, justificou, “o que o GT colocou é uma tentativa de trabalhar com uma proposta, entre aspas, neutra, porque o embate político é o que vai resolver”.

“Se aumentarmos o financiamento do equivalente a 9,57% para 10%, vamos aumentar nossa participação, e isso significa que alguém perdeu. Se aumentar para 11%, alguém perdeu mais. Está todo mundo se mobilizando para ganhar”, afirmou.

Na sua avaliação, o momento atual é o mais delicado em relação à preservação da autonomia (“estamos numa encruzilhada terrível”, definiu) porque houve mudanças importantes na sociedade. “As mudanças políticas no Estado de São Paulo são claramente conservadoras, quando não extremistas, e temos uma maioria na Alesp esmagadoramente conservadora.”

Guedes considera que é preciso aguardar a realização das eleições municipais deste ano para que se possa avaliar a correlação de forças e quais as suas repercussões na luta pelo orçamento. “Se houver uma vitória fragorosa desse bloco conservador, nossas esperanças vão ficar cada vez menores, porque isso fortalece o governo do Estado numa negociação cuja pauta vai ser instalada depois das eleições municipais”, disse.

A professora Michele Schultz, presidenta da Adusp e coordenadora do Fórum das Seis, que também integrou a mesa, concordou com a avaliação sobre as dificuldades do cenário político, mas defendeu que a intervenção das entidades ligadas à educação deve se dar imediatamente.

A professora listou uma série de ataques perpetrados pelo governo Tarcísio de Freitas (Republicanos)-Felício Ramuth (PSD), como a criação das escolas “cívico-militares”, a licitação para privatização da gestão de 33 escolas públicas, a tentativa de redução do investimento do Estado em educação de 30% para 25% da receita de impostos (consubstanciada na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9/2023, que tramita na Alesp), e a possibilidade de corte de 30% do orçamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) prevista na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2025, cujo projeto foi aprovado pela Alesp nesta quarta-feira (26/6), depois da realização do debate.

“Não estamos reagindo à altura dos ataques que estão ocorrendo no Estado de São Paulo. Temos que fazer um tsunami da educação paulista, como fizemos em 2019. Temos que construir isso. Por isso digo que [a luta] é agora. A disputa pelo fundo público já está colocada”, afirmou.

Em relação à PEC 9, Michele defendeu que os conselhos universitários devem se pronunciar sobre o tema. “Que silenciamento é esse?”, questionou. “Essa discussão nos conselhos é para termos incidência a posteriori, quando fomos disputar o orçamento de fato.”

Na avaliação da coordenadora do Fórum das Seis, dado o contexto do Estado, será necessário “disputar um programa político nas eleições de 2026, cujo mandato vai até 2030”. “Considerando a constituição atual da Alesp e as prerrogativas do governo do Estado, acho que vamos ter um tempo em que precisaremos estar muito mobilizados em defesa das universidades públicas, porque o risco é bastante grande”, enfatizou.

Há também acentuada preocupação com o que está acontecendo em âmbito federal, na discussão do arcabouço fiscal e da redução dos pisos constitucionais para a saúde e a educação, alertou, “pela sinalização política que isso pode dar, com efeitos nos Estados que têm governos com alinhamento à direita e à extrema-direita”.

Expansão do ensino superior se deu com subfinanciamento e salários defasados

Michele Schultz traçou um panorama histórico das lutas do Fórum das Seis desde a sua criação, em 1991, na defesa da autonomia universitária e do aumento do percentual de repasse para o financiamento da USP, Unesp e Unicamp.

“A autonomia de gestão financeira definida no decreto nos diferencia de outras universidades estaduais Brasil afora que ainda têm que negociar suas verbas com o governo. Em Minas Gerais, a defasagem [de reajuste] salarial é de 75%, e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro [UERJ] chega a mais de 100%”, comparou. A vigência do decreto de 1989 e a existência do Fórum das Seis têm sido muito importantes “para garantirmos o financiamento das universidades e as campanhas de data-base que temos conseguido manter todos os anos em maio”.

O percentual do repasse definido em 1989 pelo então governador Orestes Quércia (PMDB) foi de 8,4% do ICMS-QPE. Em 1991, houve um aumento para 9%, e desde 1995 o repasse é de 9,57%.

Em 2006, a Alesp aprovou a elevação do índice para 10%, mas o então governador Geraldo Alckmin (à época no PSDB, hoje vice-presidente da República e filiado ao PSB) vetou o artigo. Em 2014, Marilza Rudge, então reitora da Unesp e presidenta do Cruesp, propôs ao governo um aumento para 9,907%, o que também não foi acatado. “Atualmente o Cruesp nem lembra que apresentou esse documento lá atrás”, ressaltou Michele.

A professora lamentou que nos últimos anos a disputa tenha se concentrado em garantir a inclusão da expressão “no mínimo” no texto da Lei das Diretrizes Orçamentárias (LDO) para que se mantenha ao menos o repasse dos 9,57%.

Michele lembrou ainda que há descontos indevidos no repasse. De acordo com o GT Verbas da Adusp, entre agosto de 2022 e abril de 2023 foram descontados mais de R$ 7 bilhões da base de cálculo da arrecadação do Estado, o que significa que as universidades deixaram de receber cerca de R$ 670 milhões.

“Isso poderia ser verba destinada à permanência estudantil, à valorização dos níveis iniciais da carreira, a melhores condições de trabalho. Temos feito essa denúncia recorrentemente”, disse a professora.

Michele Schultz apresentou um quadro comparativo produzido pela revista Pesquisa Fapesp em 2019, na comemoração dos 30 anos da autonomia. O quadro mostra que, de 1989 a 2017, as universidades ampliaram em 76% o número de vagas na graduação, em 199% o total de títulos concedidos e em 1.514% a produção de publicações científicas — isso tudo com redução de 22% no número de funcionários(as) e de 1,4% no total de docentes.

“Esses números concretizam aquilo que o Fórum das Seis denuncia há muito tempo, ou seja, a expansão sem financiamento adequado. Estamos trabalhando muito mais, com salário defasado e com subfinanciamento”, afirmou.

Cruesp não aceitou defesa de proposta conjunta com o Fórum das Seis

José Luís Pio Romera, diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp (STU) e membro do GT Verbas da Adusp, ressaltou que a autonomia das universidades em São Paulo resultou de uma grande greve da educação paulista em 1988. “A autonomia é uma conquista nossa, do movimento sindical naquela época. Isso é fato. Se temos até hoje USP, Unicamp e Unesp com essa qualidade, é por conta da autonomia que foi conquistada lá atrás”, declarou.

O servidor também avalia que o cenário político “é o pior possível” e que é necessário que estudantes, professores(as) e funcionários(as) retomem o movimento para defender a educação pública e a escola pública. “O Tarcísio está executando o seu projeto. Ele não está parado, o projeto está em curso”, afirmou. “No Estado de São Paulo, esse governo vai privatizar o que puder e reduzir ao mínimo o investimento em educação e saúde. Eles são representantes do capital.”

Pio Romera lembrou que ao longo dos anos houve várias promessas de sucessivos governos de aumentar o repasse de recursos por conta da expansão das universidades, inclusive com a criação de novos campi — promessas nunca cumpridas.

O diretor do STU apresentou os dados de um estudo produzido pelo GT Verbas para estimar qual seria o repasse necessário para o financiamento das universidades depois da reforma tributária.

Se forem utilizados os critérios atuais do ICMS-QPE, o índice seria de 8,09% da receita tributária líquida. Se não houvesse os descontos indevidos nos repasses, o percentual seria de 8,27%.

O resultado do estudo não está distante do percentual apontado pelo GT constituído pelo Cruesp. O objetivo do estudo, explicou Pio Romera, era propor aos reitores fazer uma negociação conjunta com o governo estadual, para garantir um percentual de financiamento das universidades no novo cenário.

“O Fórum das Seis propôs aos reitores elaborar um documento conjunto para negociar com o governo do Estado, mas o Cruesp rejeitou. O Cruesp preferiu, e o Tom Zé [reitor da Unicamp] disse isso, que cada um aja em seu campo de atuação”, relatou.

A professora Michele Schultz também lamentou a rejeição dos reitores. “A nossa avaliação está muito próxima daquilo que o próprio Cruesp está estabelecendo, e aí há uma dificuldade grande de entender por que o Cruesp não aceita apresentar conjuntamente uma proposta com o Fórum das Seis”, criticou.

Entre as intervenções do público, a professora Silvia Gatti, presidenta da Associação dos Docentes da Unicamp (Adunicamp), defendeu que “o Fórum das Seis seja protagonista e não fique esperando uma atitude dos reitores, porque de alguma maneira eles são secretários de Estado”.

A professora ressaltou a importância da participação dos(as) estudantes na luta pela educação pública e pela garantia do financiamento e da autonomia das universidades estaduais paulistas.

EXPRESSO ADUSP


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