A educação pública no Estado de São Paulo não está bem, e a análise do Plano Estadual de Educação — que entrou em vigor em 2016 e tem vigência de dez anos — mostra que suas metas estão longe de ser cumpridas adequadamente. Apesar desse quadro, o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos)-Felício Ramuth (PSD) enviou à Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9/2023, que reduz a destinação mínima de recursos para a educação no Estado de 30% para 25% da receita de impostos.

“Temos um Plano de Educação que tem que ser respeitado, e com o investimento atual ele já não consegue ser cumprido. Se diminuirmos esse investimento, aí a coisa entorna de vez”, afirma o defensor público Gustavo Samuel da Silva Santos, coordenador do Núcleo Especializado da Infância e Juventude (NEIJ) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

O NEIJ considera que essa redução é inconstitucional, ponto de vista sustentado num parecer de 21 páginas no qual o núcleo afirma que “a conjuntura política e social no estado exige o fortalecimento do investimento em educação” e defende a rejeição da PEC 9/2023.

O parecer ressalta que “o investimento orçamentário no estado está aquém das necessidades” (grifo no original). “Temos um Plano de Educação robusto que, se cumprido adequadamente, significaria uma educação pública de qualidade. A opção por reduzir o financiamento da educação nesse momento aponta para um futuro desastroso, com professores mais empobrecidos, escolas com menos qualidade e com o aumento do analfabetismo no estado”, afirmam Santos e seus colegas Daniel Palotti Secco e Ligia Mafei Guidi, que assinam o documento.

O parecer da equipe do NEIJ cita inclusive declaração ao portal Metrópoles do professor José Marcelino de Rezende Pinto, docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCLRP) da USP e vice-presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), que definiu a PEC 9/2023 como “a pá de cal na educação básica”.

Santos foi um dos expositores do debate “Financiamento da educação pública em São Paulo”, promovido pela Adusp e realizado no dia 21/11 no auditório Gleb Wataghin do Instituto de Física (IF). Também compôs a mesa o professor Otaviano Helene, docente aposentado do IF e ex-presidente da Adusp. A mediação ficou a cargo da professora Michele Schultz, presidenta da Adusp, para quem a apresentação da PEC representa um grande ataque à educação.

Pandemia aumentou as diferenças entre escolas públicas e privadas, diz defensor público

No debate, Santos enfatizou que a análise do Plano Estadual de Educação demonstrou que boa parte das propostas que deveriam ser implementadas neste ano não foram concretizadas e que, com a pandemia, “muitas das metas ficaram mais difíceis de ser assimiladas”.

“A pandemia aumentou as diferenças sociais entre estudantes das escolas públicas e privadas. Diminuímos de forma generalizada a qualidade da educação e seguimos num momento muito difícil para diminuir o investimento”, prosseguiu.

Como exemplos, o defensor público citou os parâmetros de leitura e de entendimento de matemática, que “caíram drasticamente”. O Estado de São Paulo também reduziu o investimento na formação continuada de professores e nas políticas voltadas a temas como violência contra as escolas, racismo, bullying e homofobia, “coisas que dispararam nos últimos dez anos”.

O mais preocupante, alertou, é que “a proposta não traz uma vírgula sobre o impacto dessa decisão na qualidade da educação”.

O defensor público abordou a proposição do governo Tarcísio-Ramuth no contexto mais amplo dos direitos sociais, especialmente em relação ao Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1966.

O texto reconhece “o direito de toda pessoa à educação” e estabelece que cada Estado signatário “compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”.

Dessa forma, disse Santos, a convenção consolida o chamado princípio da proibição do retrocesso social, que não admite medidas judiciais, legislativas ou administrativas que ignorem os avanços na consolidação dos direitos sociais. Esse escopo inclui o orçamento. “Se você investe num direito social, não pode deixar de investir nele até que a situação esteja regularizada”, afirmou.

Como exemplo de jurisprudência internacional no campo dos direitos sociais, o defensor público citou o caso da Corte Suprema de Justiça da Colômbia, que considerou inconstitucional a redução do orçamento da previdência social no país. “Diminuir o financiamento de um direito social como a seguridade é inconstitucional e só poderia ocorrer se a totalidade da população estivesse usufruindo desse direito. Se conseguíssemos zerar o número de pessoas analfabetas com mais de 18 anos, obviamente poderíamos diminuir o orçamento da Educação de Jovens e Adultos [EJA], mas isso não acontece”, comparou.

Santos se referiu também a outras deficiências apontadas no parecer do NEIJ, como a falta de pessoal, a carência de equipamentos, que aprofunda as desigualdades e escancara a exclusão digital, e as condições precárias de infraestrutura, que agravam os efeitos da mudança climática — o calor extremo, por exemplo, especialmente nas ainda existentes “escola de lata”.

Santos encerrou sua primeira intervenção afirmando que o tema está sendo pouco debatido na sociedade e que é necessário ampliar a discussão sobre a PEC 9/2023 para que ela seja rejeitada na Alesp, “porque ela seria um grande desserviço para a educação”.

Investimento no país alcança apenas a metade do que o Plano Nacional determina

Otaviano Helene traçou uma retrospectiva da luta histórica dos movimentos ligados à educação pela destinação de 10% do PIB para financiar o setor no Brasil. “A base para o cálculo veio da comparação com os países da América do Sul com melhores indicadores em educação e, a partir daí, qual seria o investimento necessário para atingir aquele patamar num prazo de dez anos. Ou seja: continuaríamos atrasados, mas diminuiria a diferença”, disse.

O Plano Nacional de Educação, que passou a vigorar em 2014, estabelecia que até 2019 o país deveria investir no mínimo 7% do PIB em educação pública e chegar a 10% em 2024. No entanto, o investimento em 2021 ficou em apenas 5,1%.

Diversos indicadores atestam que o Brasil é um dos países mais atrasados da América do Sul no que diz respeito à educação e foi ultrapassado por vários países que cuidaram melhor do seu sistema educacional, enfatizou Helene. Na alfabetização de adultos com mais de 21 anos, citou, o Brasil só não está pior do que a Guiana. “Isso mostra uma coisa crônica. Uma pessoa analfabeta de 60 anos de idade reflete o sistema educacional de cinquenta anos atrás, quando deveria ter sido alfabetizada. Esse atraso educacional não será enfrentado se não houver mais recursos para a educação pública”.

Em relação à PEC 9/2023, embora o governo alegue que o gasto em educação seria reduzido porque proporcionalmente caiu a população jovem do Estado e, além disso, aumentaria o investimento em saúde, o texto da proposta não diz claramente que os recursos serão destinados ao setor.

“O governo não quer melhorar a qualidade do ensino. Reduzindo a população jovem, vai reduzir o gasto e manter a baixa qualidade. É esse o projeto”, afirmou. “Não tem cabimento diminuir o investimento em educação pública.”

A redução do orçamento da educação será da ordem de pelo menos R$ 7 bilhões — “grosso modo, o equivalente ao orçamento da USP”, comparou Helene (em 2023, a previsão de repasses do Tesouro à universidade é de R$ 7,5 bilhões). Aprovar a medida seria como fechar a USP, apontou. A eventual diminuição do investimento deve inclusive ter repercussão no orçamento das universidades públicas estaduais. (A estimativa do docente do IF é mais modesta que a da bancada de oposição na Alesp, que fala em perdas de R$ 9,6 bilhões.)

Helene avalia que é o sistema educacional atual que define o nível escolar, a taxa de analfabetismo, a quantidade de profissionais, as desigualdades regionais, a distribuição de renda e outros fatores da sociedade no futuro. “Se uma criança sai sem terminar o ensino fundamental hoje, qual é a perspectiva dela no futuro?”, perguntou. “Hoje a sociedade está construindo o seu atraso do futuro, assim como a do passado construiu o atraso atual.”

Reajustes da categoria docente não acompanham crescimento da renda per capita

Helene ressaltou que na USP os(as) docentes usam a inflação como referência para lutar por reajustes salariais. “Mas, no longo prazo, além da inflação, existe a renda per capita. Quando corrigimos o salário pela renda per capita, perdemos a metade. Isso não é um acidente.”

Outro dado apontado pelo professor é a quantidade de docentes da universidade, que no momento é inferior à de 1990: eram 5.672 naquele ano e são 5.280 na atualidade, de acordo, respectivamente, com o Anuário Estatístico e o Portal da Transparência. No entanto, o número de alunos(as) aumentou expressivamente: eram 36 mil na graduação e 15,5 mil na pós-graduação em 1990, contra 60,1 mil na graduação e 29,4 mil na pós atualmente, um crescimento global de 42,5% no corpo discente.

“Aumentamos o número de alunos à base de sobrecarregar o corpo docente e de eventualmente reduzir a carga horária, o que foi feito disfarçadamente em algumas unidades”, constatou.

Helene chamou atenção ainda para a existência de um processo de favorecimento do setor privado em todos os sentidos. Na educação, “nenhum país tem uma taxa de privatização do ensino superior igual à brasileira”, afirmou. Enquanto nos Estados Unidos três em cada quatro alunos(as) estão matriculados(as) em instituições públicas, no Brasil ocorre o inverso: 75% das matrículas estão no ensino superior privado. “Essa privatização é muito grande e muito danosa”, considera.

O professor citou também a lei 13.800/2019, que permite que instituições públicas cujas atividades estejam relacionadas à educação, cultura e pesquisa científica ou tecnológica, entre outras, firmem parcerias e executem projetos com organizações privadas gestoras de fundos patrimoniais. A lei possibilita que a relação ocorra diretamente entre a entidade gestora do fundo e docentes ou funcionários(as) da entidade pública, não necessariamente intermediada por seus órgãos deliberativos, como os conselhos departamentais e universitários ou as congregações, no caso das universidades, e também prevê a destinação dos recursos para fins específicos, definidos pela entidade gestora do fundo.

“Não estamos respondendo com rapidez suficiente a todas essas agressões. Elas vêm paulatinamente ao longo do tempo, vão comendo pelas bordas e ao longo de vinte, trinta anos acontece isso que eu falei, ou seja: a USP tem o mesmo número de docentes de décadas atrás, os salários não acompanharam o crescimento econômico do país e a universidade pública vem perdendo a sua importância na sociedade”, afirmou.

Renúncia fiscal tira recursos fundamentais para a educação

Na sessão de perguntas e comentários, o professor Rubens Barbosa de Camargo, docente da Faculdade de Educação (FE-USP) , lembrou que o governo paulista vem se valendo da prática irregular de utilizar recursos da educação para o pagamento de aposentados(as).

Em relação ao quadro da USP, afirmou que “se não aumentou o número de professores e aumentou o de alunos e cursos, a qualidade cai ou a gente trabalha como louco”. Já na educação básica, “o que mais acontece é o adoecimento de docentes, uma rotatividade geral e a contratação de professores precários”, a chamada categoria “O”.

Outro ponto citado por Camargo é a renúncia fiscal patrocinada pelo governo de São Paulo, que pode ficar em torno de R$ 60 bilhões no ano que vem, de acordo com parlamentares da oposição. A Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2024 foi aprovada na Alesp no dia 14/12. São recursos que fazem falta a todos os setores públicos, e especialmente à educação.

Marcos Bernardino de Carvalho, docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), declarou que “é preciso manter o espanto com a nossa situação” e que “o que o Otaviano [Helene] nos mostra é uma intencionalidade destrutiva com relação à educação, uma realidade de desinvestimento”.

Carvalho também afirmou que as escolas “são muito utilizadas como abrigo em casos de enchentes, deslizamentos etc.”, e que elas “não estão preparadas para a catástrofe que vem por aí, para a tragédia climática, por exemplo”.

O professor César Minto, docente da FE-USP e ex-presidente da Adusp, ressaltou que educação e saúde “são as únicas áreas que têm recursos vinculados na Constituição” e que há uma tradição de tentar burlar essas normas. O professor defendeu que é preciso ampliar a mobilização contra a PEC 9/2023.

A professora Lucília Borsari, docente do Instituto de Matemática e Estatística (IME), lembrou que o Estado já não investe em educação os 30% previstos na Constituição por conta do pagamento indevido a inativos(as). “Propor a redução neste momento é dar um golpe duplo num direito social fundamental”, argumentou.

Por causa de descontos indevidos, Estado aplica apenas 22,8% na educação

Nas considerações finais, o defensor público Gustavo Santos citou artigo publicado na Folha de S. Paulo por Élida Graziane Pinto, procuradora de justiça do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, que chama de “preocupante” a PEC enviada pelo Executivo à Alesp.

De acordo com a procuradora, com a utilização de recursos da educação para cobrir insuficiência financeira da São Paulo Previdência (SPPrev) — o que afronta inclusive decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF) — o total de investimento do Estado até agosto deste ano ficaria em 22,8%.

Santos considera que o argumento da renúncia fiscal pode ser interessante na discussão de uma eventual ação de inconstitucionalidade ou provocação nas cortes internacionais sobre o desinvestimento em educação, se a PEC 9/2023 for aprovada.

No entanto, apontou, a discussão sobre orçamento no Judiciário é feita com muitas reservas, até por respeito à independência dos poderes. “É essencial que se discuta politicamente o erro desse projeto e os problemas que isso pode causar para a educação”, defendeu. Na sua visão, é preciso fazer pressão e conversar com os(as) deputados(as), mesmo que não sejam do campo político dos movimentos sociais. “Tenho muito receio em deixar essa questão para ser discutida no Judiciário”, disse.

Otaviano Helene reforçou que “não tem cabimento” fazer renúncia fiscal para coisas absolutamente necessárias. Ao mesmo tempo, o discurso dos grupos dominantes no país é de que o setor público já arrecada muito, o que não é verdade. “A soma total dos gastos públicos brasileiros nas três esferas é da ordem de 32% do PIB. Isso é insuficiente, você não consegue colocar educação, saúde, segurança, justiça, transporte, infraestrutura em 32% do PIB”, disse.

De acordo com o professor, se não houver investimento em educação não há como haver crescimento econômico. “A taxa de retorno econômico do investimento em educação é muito alta, comparável à dos investimentos industriais diretos. É um investimento que se paga e é essencial para o crescimento econômico”, salientou. “Temos que brigar contra essas mudanças ou tentativas de mudanças e isso depende de esforço nosso.”

EXPRESSO ADUSP


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