Meio ambiente
Em audiência pública no STF, entidades denunciam desmonte das políticas ambientais do estado de São Paulo, que agravou a crise das queimadas de 2024

Um ano depois da grave crise ambiental que o estado de São Paulo viveu em agosto de 2024, quando registrou 3.612 focos de calor, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou uma audiência pública para debater as políticas ambientais paulistas.
A audiência, realizada no dia 25 de agosto, foi convocada e presidida pelo ministro Flávio Dino, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1.201, proposta pelo PSOL.
Na ação, o partido alega que atos do poder público configuram afronta grave a preceitos fundamentais ligados à defesa do meio ambiente no estado e destaca a ocorrência de incêndios em larga escala nos biomas Cerrado e Mata Atlântica, especialmente no território paulista, que registrou níveis recordes de queimadas florestais em 2024.

As consequências foram sentidas na própria universidade, por exemplo com o cancelamento de aulas no câmpus de Ribeirão Preto por causa da fumaça dos incêndios na região.
O PSOL também afirma que há um desmonte de estruturas essenciais da política ambiental do estado e questiona dispositivos da Lei estadual 17.293/2020, oriunda do Projeto de Lei 529/2020, espécie de “minirreforma administrativa” aprovada pelo governo de João Doria (PSDB), e de decretos posteriores que extinguiram o Instituto Florestal, o Instituto Geológico e o Instituto de Botânica, instituições públicas com histórico de décadas na produção científica voltada à preservação ambiental.
A ADPF cita ainda o fechamento de 100 escritórios regionais do Departamento Estadual de Proteção de Recursos Naturais (DEPRN).
Os três principais pontos de controvérsia, segundo o despacho que convocou a audiência, são a alegada omissão da União e/ou do estado de São Paulo na prevenção e combate às queimadas no território paulista; a legalidade e a legitimidade das alterações legislativas estaduais que extinguiram ou reformularam órgãos de proteção ambiental; e a suficiência, a efetividade e a transparência das ações públicas adotadas (ou omitidas) diante da crise ambiental no estado.
Em dezembro de 2024, Flávio Dino deferiu parcialmente pedido de liminar e determinou ao governo paulista a apresentação de relatórios e documentos sobre a execução orçamentária dos programas de proteção ao meio ambiente e à prevenção de queimadas.
Ar de São Paulo foi considerado o mais poluído do mundo
A audiência pública integra a instrução do processo, “uma vez que todo o material será juntado aos autos e constitui subsídio para quando da possibilidade da apreciação de um complemento da liminar e, eventualmente, quando do julgamento do mérito”, explicou o ministro na abertura.
Representantes do PSOL, do governo estadual, da União, e de diversas entidades, além de professores e professoras, vários(as) deles(as) ligados(as) à USP, participaram da sessão.
A primeira oradora foi a deputada federal Luciene Cavalcante (PSOL-SP), que representou o partido na audiência, ao lado do historiador Juliano Medeiros, ex-presidente da legenda. A deputada lembrou que, em agosto do ano passado, São Paulo chegou a figurar como a cidade com o ar mais poluído do mundo durante vários dias, segundo medições da agência suíça IQAir.
“Não apenas vidas humanas foram impactadas, toda a dinâmica ecológica e climática foi afetada. O Cerrado paulista, responsável por armazenar a água das chuvas e alimentar importantes aquíferos, entrou em colapso”, apontou.
O quadro dramático, afirmou a deputada, não é fruto somente da estiagem ou do avanço do aquecimento global, mas “resulta também de um processo histórico de desmonte institucional da gestão ambiental do estado de São Paulo”, concretizado entre outros fatores pelo fechamento dos escritórios regionais do DEPRN e pela extinção dos institutos estaduais de pesquisa. “Esse desmonte comprometeu não apenas a conservação da biodiversidade, mas também a capacidade de resposta às crises ambientais”, considera.
A deputada apontou ainda obras como o Rodoanel Mario Covas e a Nova Raposo Tavares, que “avançam sobre áreas de mananciais estratégicos, fragmentam corredores ecológicos e estimulam a ocupação irregular em zonas de amortecimento”, e, no âmbito municipal, a aprovação pela Câmara Municipal paulistana de um projeto de lei que autoriza a ampliação do Instituto Butantan, levando ao corte de cerca de 1,7 mil árvores, além de gerar outras consequências.
“Quando somamos todos esses fatores, o desmonte de estruturas, o ataque às carreiras de pesquisa, a alienação de institutos, a legalização da grilagem, o corte massivo de árvores, o quadro inequívoco é que trata-se de um projeto ativo de fragilização da política ambiental paulista”, destacou a deputada.
Ministro Flávio Dino requer informações sobre redução do quadro de pesquisadores
Helena do Nascimento Gomes Goldman, advogada da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC), apresentou dados que revelam que foram concedidas 1.101 autorizações para queimadas pela Companhia Ambiental de São Paulo (Cetesb) no dia 24 de agosto do ano passado.
“A Cetesb autoriza queimadas de forma simplificada e eletrônica, tendo o solicitante que comunicar o órgão com 96 horas de antecedência”, explicou. Essa postura revela um “viés permissivo e incompatível com a proteção ambiental” por parte do estado.

A entidade também demonstrou que a extinção do Instituto Florestal fragilizou a estrutura de pesquisa e conservação ambiental no estado. “O Instituto Florestal foi o guardião da biodiversidade no estado por mais de um século e responsável pela criação de 99% das unidades de conservação”, lembrou a advogada, que também citou a extinção dos institutos de Botânica e Geológico.
A advogada da APqC mencionou ainda o incêndio que atingiu 8 mil hectares da Estação Ecológica de Jataí, na região central do Estado, no final de setembro e início de outubro do ano passado. A área foi consumida pelo fogo durante 11 dias seguidos, levando à destruição de cerca de 70% de sua área.
O ministro Flávio Dino intimou o estado a fornecer informações sobre o caso. O ministro também intimou o governo paulista a informar sobre a redução na quantidade de pesquisadores científicos em matéria ambiental. De acordo com a advogada da APqC, não há concursos para contratação de pessoal há 20 anos, e a quantidade de cientistas caiu de 244 em 2005 para 120 na atualidade.
“A ciência aqui apresentada demonstra um quadro de omissão e desmonte que ameaça, de forma irreversível, o patrimônio natural de São Paulo. Rogamos a esta Suprema Corte, guardiã da Constituição, que reconheça a gravidade da situação e determine medidas urgentes para reverter este cenário, como a restituição dos Institutos de Pesquisa, de suas linhas científicas e de sua capacidade técnica, bem como a procedência dos demais pedidos contidos na ADPF”, finalizou Helena Goldman.
Secretária cita ações do governo estadual, incluindo operação “São Paulo sem Fogo”
Natália Resende, secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do governo paulista, afirmou que a estratégia climática do estado é dividida em dois eixos, um de mitigação e um de adaptação, com diversas ações adotadas em cada eixo.
De acordo com a secretária, o estado possui uma força tarefa com 29 divisões técnicas, 49 agências ambientais, cem unidades de policiamento ambiental integradas e 152 áreas protegidas sob gestão, englobando 4,7 milhões de hectares.
A secretária citou ainda a operação São Paulo sem Fogo, que em 2025 conta com a adesão de 414 municípios, e a contratação de 224 profissionais pela Cetesb. Respondendo a uma pergunta do ministro, Natália Resende afirmou que os(as) servidores(as) dos institutos de pesquisa extintos permanecem na carreira pública e estão vinculados(as) ao Instituto de Pesquisas Ambientais, criado em 2021 a partir da fusão das três instituições.
Um ponto criticado por vários(as) oradores(as) em relação à secretaria foi a junção da área de Meio Ambiente a uma pasta que engloba também Infraestrutura e Logística, setores que obviamente têm peso maior na escala de interesses do estado.
Falando da esfera federal, Isadora Cartaxo, secretária-geral de Contencioso da Advocacia-Geral da União (AGU), ressaltou que o Planalto “retornou com muito vigor à governança ambiental” desde janeiro de 2023 e tomou medidas como a retomada dos planos de ação para a prevenção e controle de desmatamento, envolvendo todos os biomas nacionais.
“Especificamente no contexto da crise climática de 2024, foi instituída a Sala de Situação, coordenada pela Casa Civil da Presidência da República, contando com a participação de diversos ministérios e coordenação executiva do Ministério do Meio Ambiente. Trata-se de uma instância estratégica que tem promovido ações de articulação, de prevenção, de combate e de responsabilização por queimadas ilegais, já com resultados concretos.”
Abertura de rodovias espalha “vetores incendiários”, afirma pesquisador do INPE
Paulo Nobre, pesquisador do INPE, destacou que a maior responsável pela destruição das árvores é a abertura de rodovias, que causa o que ele qualificou como “vetores incendiários”. “Enquanto nós conversamos aqui, está sendo debatida a abertura de novas rodovias no Cinturão Verde em torno da cidade de São Paulo”, denunciou o pesquisador, que apelou para que o estado crie normas urgentes em relação ao tema.
Ana Maria de Oliveira Nusdeo, professora de Direito Ambiental da Faculdade de Direito (FD-USP), apontou que 2024 foi um ano atípico, “mas infelizmente o atípico tende a se tornar normal e frequente com a emergência climática”.
Marcelo Marini Pereira de Souza, professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), apontou que a sociedade está sub-representada em órgãos consultivos como o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema).
Marcos Silveira Buckeridge, docente do Instituto de Biociências (IB-USP), abordou a chamada “regra do 30-30-30”, ou seja, a ocorrência de temperatura acima de 30°C, umidade abaixo de 30% e ventos acima de 30 km/h, o que cria o cenário perfeito para a ignição e propagação explosiva do fogo. O professor defendeu a necessidade de investimentos massivos em ciência para prever com precisão onde e quando essas condições ocorrerão, permitindo ações preventivas.
Modelo de uso da terra no estado agrava insegurança alimentar, diz defensora pública
Thalita Verônica Gonçalves e Silva, defensora pública e coordenadora do Programa de Justiça Climática da Escola da Defensoria Pública de São Paulo, afirmou que os incêndios revelaram “causas estruturais e falhas institucionais”. “O modelo de uso da terra em São Paulo segue baseado na monocultura da cana de açúcar e das pastagens, que é vendido como parte de uma transição energética, mas que, na prática, desterritorializa comunidades, agrava a insegurança alimentar, intensifica o uso de agrotóxicos e aumenta o foco das queimadas”, apontou.
A defensora lembrou que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que a concentração de material particulado fino não ultrapasse 15 microgramas por metro cúbico em 24 horas. Na crise de agosto de 2024, a cidade de São Paulo registrou valores acima de 70. “No caso de particulado fino 10, cujo limite é 45, o registro foi a 100, mais que o dobro. O resultado? Um aumento de 77% nos casos de doenças respiratórias em crianças e de 34% de hospitalizações de idosos por doenças cerebrovasculares”.
Por sua vez, Luciano Rodrigues, diretor de Inteligência Setorial da União da Agroindústria Canavieira e de Bioenergia do Brasil (Unica), afirmou que o setor tem implementado medidas para mitigação e combate a incêndios. Ele salientou que a indústria da cana-de-açúcar vem mudando “de forma significativa ao longo dos últimos anos” no estado de São Paulo e que praticamente não existe mais queima para viabilizar a colheita manual, pois a colheita “é toda mecanizada”.
Autores de incêndios devem ser punidos; setor privado precisa auxiliar combate
Luiza Frischeisen, subprocuradora-geral da República, afirmou que as exposições apresentadas na audiência pública indicam que as políticas públicas do estado de São Paulo não são suficientes para prevenir incêndios, proteger as populações vulneráveis e ampliar a cobertura vegetal. A representante da Procuradoria-Geral da República defendeu que as políticas públicas estaduais devem se articular às da União e incorporar a experiência de outros estados.
Luiza Frischeisen também ressaltou que o setor privado – as concessionárias das rodovias, por exemplo – precisa participar dos esforços do combate aos incêndios. “Sem isso, é impossível que essa política pública seja realmente afetiva. A iniciativa privada tem que ser aliada da população e do estado na implementação de políticas públicas.”
O ministro Flávio Dino lembrou que o foco da ação não é punitivo, “mas nós precisamos de dados sobre punições de responsabilidade porque isso envolve o imperativo de justiça social”. “Se o incêndio é privado e o combate é público, significa dizer que você está pegando o dinheiro da sociedade e está transferindo às avessas. Por isso a responsabilidade é necessária para que haja a recomposição do patrimônio público”, defendeu.
Na avaliação do ministro, trata-se de “um problema de política pública”, uma vez que, se o dinheiro do conjunto da sociedade é aplicado nesse processo e não há responsabilização, ocorre “uma dupla punição à sociedade pelo incêndio e pelo emprego de recursos que talvez não fosse necessário se todos contribuíssem”.
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