Professora Marlene Guirado (IP-USP)

O contexto

Há mais de um mês, todas as categorias que fazem esta Universidade (funcionários, docentes e alunos), em número expressivo, sustentam uma greve em nome da abertura de negociação com as instâncias de direção das universidades estaduais paulistas e seus representantes (o Cruesp), que decidiram 0% de reajuste nos salários. Nesse momento, a revista Veja abre suas páginas amarelas para uma entrevista com o reitor da USP, Marco Antônio Zago. Numa sensível desigualdade de posição, os outros polos nesse jogo de forças não dispõem de espaço e de voz nos meios de comunicação. E são tomados de surpresa por uma curiosa e paradoxal fala desse Reitor, em nome próprio, sem respaldo numa prática institucional concreta de sua Universidade.

Por indicação da Assembleia Setorial dos professores do Instituto de Psicologia da USP, em greve, tomaremos em consideração a referida entrevista para proceder a uma análise do modo como se organizam o discurso e as posições daquele que, no início do ano, foi empossado Reitor desta Universidade de São Paulo.

A entrevista

O título da matéria condensa uma suposta posição de vanguarda do entrevistado e uma chamada geral que enuncia, logo, de seu ponto de vista: (a) o âmbito privilegiado do fazer universitário é a pesquisa; (b) os antagonistas de sua avançada estratégia são os professores/pesquisadores; e (c) a atitude reinante, indesejável e contraditória ao esforço do protagonista é a de pouco empenho na produção de conhecimento inovador por parte de estáveis e acomodados pesquisadores.

Como se demonstrará, já está praticamente desenhada aqui a cena imaginária que explicaria ao leitor um problema possivelmente grave pelo qual a USP estaria passando. Qual? A Revista fala de um problema de qualidade, conforme os rankings internacionais. Mas Zago descarta a gravidade desse fato; coloca-o como circunstancial; e dirige a atenção para outros, que seriam mais “estruturais”, como os alunos não saberem falar inglês (!!!), a estabilidade do vínculo empregatício, a idade e a atitude acomodada de professores que envelhecem na função, o baixo nível de conhecimentos e habilidades desenvolvido no ensino secundário, pouca dotação de verba para o ensino superior, o que impediria um sistema mais competitivo de contratação e promoção na carreira docente e… a organização sindical. Tudo com igual peso, sendo que as soluções que já estão sendo dadas, como se fossem a pedra de toque de saídas para todos os problemas, são as medidas referentes ao inglês e à inclusão (!!!).

Se, no entanto, considerarmos que toda a entrevista se esgota em argumentos e descrições em torno dessa cena que sugere um problema grave, que o descarta e o desloca para uma outra situação, supostamente mais séria, aliviada, de início, com soluções pontuais e periféricas, poderíamos nos perguntar se a gravidade não estaria em outro lugar, em outra cena.

É aí que a consideração do contexto em que a entrevista aconteceu aponta para um fato no mínimo controvertido: em seu transcorrer, em nenhum momento foi mencionada a situação de greve atual. Houve apenas uma menção genérica da própria Redação, que torna a greve um evento sazonal, que vai e vem (“A USP … sai de uma greve para entrar em outra”), de efeitos pífios para todos. Mas, se nos perguntássemos sobre a ocasião em que a matéria “sai” na imprensa, que outra ação social concreta teria dado visibilidade à Universidade na mídia, agora? E, numa leitura mais atenta da entrevista, podemos perceber que, ao não ser comentada, a greve se torna a importante cena ofuscada, encoberta, sobre a qual se coloca uma outra discussão que, por sua vez, não parece desinteressada. Tentaremos mostrar, na sequência, que isso causa uma distorção notável no conjunto da fala do Reitor e, nos detalhes, deixa mais claros os paradoxos das práticas e discursos da instituição universitária, na voz de seu dirigente. Vamos a eles.

  1. Ainda no texto da Redação, os problemas para os quais o Reitor é convocado a falar (a queda da USP nos rankings internacionais, a crise financeira e o sair e entrar em greve) são por ele assumidos como passíveis de solução, sendo que, com surpreendente naturalidade, desliza para a primeira delas: cursos de inglês aos estudantes que têm se mostrado inábeis nessa língua tão importante(!!) para o seu sucesso para “trabalhar globalmente”. A surpresa vem por conta da redução, aparentemente gratuita, do quadro das dificuldades, no momento de propor saídas. Como assim? É porque é ranking internacional? Claro que não! Muito provavelmente, a internacionalização é que é uma meta anterior que já funciona como critério de avaliação, não para estudantes, mas para professores e pesquisadores, alimentando uma maquinaria avaliativa que envolve agências de pesquisa, financiamentos, cursos de pós e graduação, uma industriosa rede de publicações como produção intelectual. Ou seja, o “desavisado” afunilamento no raciocínio de Zago já carreia, por contexto institucional, todos os naturalizados/legitimados mecanismos dessa nossa comunidade discursiva universitária.

  1. “Outros entraves tiram o sono do reitor, diz o editorial: “a falta de ousadia dos pesquisadores e a predominância da cultura sindicalista”.

Leia-se, aqui, que: (a) há uma cultura sindicalista e, que ela incomoda; (b) há falta de ousadia e que ela se dá no âmbito da pesquisa, por parte dos pesquisadores; (c) citadas na sequência, essas duas afirmações sugerem o envolvimento dessa categoria profissional, o professor, na pesquisa e no sindicato. No decorrer da entrevista este ponto (c) se confirma, praticamente indicando uma resistência ao desafio e ao risco da produção científico-intelectual de ponta, por esses que se protegeriam no sindicalismo e na estabilidade profissional como docentes que apenas replicariam estudos já consagrados. “A estabilidade precoce de professores e funcionários paralisa as coisas. Isso depende de questões políticas e leis federais. Mas, internamente, é preciso abandonar a dinâmica de sindicalismo na vida universitária”. São palavras do Reitor que, pelo avesso, acusam haver algo mais acontecendo, neste momento, entre nós…

  1. Entre ditos expressos e outros colhidos por esta análise, vai-se construindo a base, que chamamos paradoxal, da proposta de implantar o modelo da meritocracia na universidade. Em princípio, por um outro deslizamento, meritocracia torna-se superposta a qualidade: “O foco na qualidade e na meritocracia não predomina na administração do ensino superior no país”. Novamente, como as duas palavras se seguem (e isto acontece em outros trechos da entrevista), a associação ou a equivalência semântica entre elas é um efeito de linguagem e pensamento.

  1. A pergunta que fica é: onde estão as outras possibilidades de qualidade, não só em pesquisa (aliás, outro notório afunilamento que faz o reitor em seu discurso) mas também em ensino e extensão? Ainda: quais poderiam ser os outros modelos de produção (pelos quais alguns segmentos dentre nós insistem em lutar internamente aos seus Programas e Colegiados, bem como nas pesquisas, aulas e trabalhos de extensão) e que não excluam a participação em ações e entidades organizativas, que façam política e ética no exercício mesmo de suas especificidades de área de conhecimento, que busquem medidas de avaliação que levem em conta outros critérios que não aqueles que mencionados no item 1?

  1. É interessante notar que Zago entoa a crítica ao sistema de avaliação de desempenho dos docentes, vigente, com base na publicação de trabalhos. Mas o que coloca no lugar? Em suas palavras: “produção de patentes, de material crítico e a realização de debates”. Sem esclarecer o que entende por “crítico” ou exemplificar a que tipo de “debate” se refere, prossegue, indicando sentidos possíveis para esses termos, no contexto de “seu” projeto para a Universidade, tendo como norte sempre os condicionantes da internacionalização ou os modelos de outros países. Aliás, não fica claro se, quando e em que nível tem um olhar concretamente voltado para o contexto regional e institucional da USP. E, nesse mesmo jogo de uma fala que não denuncia oposições intrínsecas, estende a avaliação com vistas à meritocracia desde a contratação de docentes até a mudança no regime de dedicação exclusiva, como uma espécie de exigência praticamente necessária para que haja um aumento na qualidade da produção científica. Pesquisadores seriam pagos por quanto valessem e a diferenciação salarial seria o incentivo para o trabalho de cada um, que passaria, assim, a entrar numa “benéfica e desafiadora” concorrência com seus pares (!!), saindo do que ele chamou de “zona de conforto” (!!) em que vivem os pesquisadores.

  1. É nesse ponto que seu discurso beneficia-se, insidiosamente, da ambiguidade do dizer para o giro que faz uso de termos e conceitos que, outra vez deslizam, sem fronteiras, do raciocínio que responsabiliza um modo de funcionamento institucional, um procedimento, para atingir qualidades e características pessoais no segmento docente. Algumas delas inalienáveis, como a idade por exemplo, dividindo os pesquisadores entre velhos e jovens, sem ter usado a primeira qualificação, em qualquer momento. Tudo ficou por conta da sequência de enunciados e do sentido global do texto. O caráter mais moralizante da fala, entretanto, vem exatamente quando por associações feitas às condições geracionais no trabalho, afirma que, no regime de estabilidade, os jovens “se casam, têm filhos, ficam mais prudentes e o sistema aceita”. Ou seja, a comunidade dos produtivos no modelo reitoral é uma sociedade discursiva que atrela saltos no escuro, descobertas decisivas, avanços revolucionários, por indivíduos que, para permanecerem for ever young, precisarão não se casar, não ter filhos ou… não pertencerem ao sistema da USP.

  1. Como sua proposta é essa de mudar o “sistema” e sua fala é autobastante, sugerindo prescindir de suportes e interlocuções, no rebote, indicam-se não mais do que duas direções: ou (a) apostar em sua aposta e comprar todo o pacote de mudanças (e cada um pode imaginar a cena docente uspiana para daqui a alguns anos: de um lado, sem a prudência dos mais velhos, mas também sem seus defeitos de ficar repetindo experimentos, e, de outro, com o arrojo e a criação, na pesquisa e na vida familiar, dos mais jovens, em concorrência aberta por melhores salários, mostrando eficiência e novidade na produção de patentes, financiados por agências de pesquisas e qualificados por órgãos e comissões provavelmente externos ao…sistema!); ou, (b) insistir, ainda, em discutir, em várias instâncias da própria universidade, com todos os seus segmentos, um estatuto que atenda suas exigências e seu lugar social, num país como o nosso, com vistas, sim, à comunidade internacional, mas que parta do contexto regional e institucional concreto que fazemos e temos hoje, como instituição pública (a organização da Estatuinte, como nos habituamos a nomear).

  1. De fato, há muito o que pensar. O cenário é complexo. As divergências se anunciam de todos os lados. Mas como imaginar que poderia ser de outra forma?

  1. O Reitor definiu seus antagonistas: todos os setores que hoje estão em greve (alunos, funcionários e professores), sem em qualquer momento mencioná-la. Somos os entraves para seus visionários vaticínios de progresso. Mas mais do que isto: praticamente negando em sua fala as instâncias institucionais que fazem a USP, ratificou seu caráter burocrático (da instituição universitária, hoje, pautando-se por uma organização da divisão no poder de decidir e pela produção de indivíduos e grupos movidos por um radar que sonde e reconheça os interesses dos grupos de decisão) quando privilegiou a meritocracia e atribuiu, às raias da indelicadeza com seus parceiros, uma espécie de indolência a todos os que, hoje, exercemos lugares de pesquisadores; nós, deixados ao azar do “sistema”, da natureza (!!) e da idade (!!), estragaríamos todo o produto e o brilho que a Universidade deve oferecer “ao mundo”.

  1. Ora, Senhor Reitor, que mundo é esse? E até quando o senhor o estará dirigindo?

EXPRESSO ADUSP


    Se preferir, receba nosso Expresso pelo canal de whatsapp clicando aqui

    Fortaleça o seu sindicato. Preencha uma ficha de filiação, aqui!