Ex-presidente do IBGE ataca “múltiplos papéis” da USP (graduação, pós-graduação e pesquisa) e dedicação exclusiva e pede “foco”

Apresentado pela revista Época como “cientista político especialista em ensino superior”, o ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) Simon Schwartzman afirmou à publicação que a USP precisa de autonomia para “negociar um salário diferente e dar boas condições de trabalho para atrair o talento internacional” e “também poder dispensar quem não é tão talentoso”. Schwartzman, que foi diretor do Núcleo de Pesquisas em Ensino Superior (Nupes) na década de 1990, é um defensor do Protocolo de Bolonha, embora não tenha citado, na entrevista, esse símbolo da supremacia neoliberal no campo da ciência e dos modelos de universidade.

A entrevista de Schwartzman provocou irritação na categoria, na medida em que a Pró-Reitoria de Pesquisa (PRP-USP) encaminhou o link com o texto a todos os docentes, recomendando a sua leitura, sem explicar o motivo e sem nenhum comentário adicional. Nela, o ex-presidente do IBGE mescla elogios genéricos à USP com críticas a problemas como “o excesso de burocracia”, a falta de “foco” e considerações outras que coincidem com teses que o reitor Marco Antonio Zago vem defendendo, como a prerrogativa de admitir e dispensar docentes a qualquer tempo.

Schwartzman assim definiu a situação financeira da instituição, dando a entender que é ou deveria ser confortável: “Há dois ou três anos, a USP tinha dinheiro sobrando. Não só ela, mas todas as universidades paulistas, que recebem quase 10% dos impostos do Estado mais rico do país”. Uma inexatidão surpreendente em se tratando de alguém que presidiu o IBGE. Afinal de contas, as universidades recebem 9,57% (e não “quase 10%”) da quota-parte estadual do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) — e não “dos impostos” em geral. A diferença importa, já que a receita do ICMS (R$ 112,7 bilhões em 2013) corresponde a cerca de 89% da arrecadação total de impostos em São Paulo (R$ 126,2 bilhões em 2013). Portanto, R$ 13,5 bilhões a menos nesse exemplo de um único ano. Não contente, acrescentou: “A gestão do dinheiro é complicada. O controle dos gastos é muito burocrático.”

Chamado a comentar a “queda” da USP em um ranking britânico, Schwartzman pontificou: “Realmente importa que, no cenário internacional, a USP continua muito mal … abaixo das 150 melhores do mundo”. Ao final, instado a falar do futuro da instituição, afirmou que “é de longe a melhor do Brasil” e que sua “reputação é boa aqui dentro”, porém… “é uma qualidade convencional [sic], que não corresponde ao que ela custa e ao que o Brasil precisa”, de modo que “poderia ter um papel mais importante”. A ideia de que a USP “não vale quanto pesa”, não faz jus aos recursos que recebe, já fora antecipada por Zago em reuniões realizadas em Ribeirão Preto.

“De ponta”

Na opinião de Schwartzman, a instituição deveria preocupar-se em tornar-se uma “universidade de ponta”, porque no “mundo inteiro, os países estão preocupados com isso”, ninguém “quer ficar para trás, então há um esforço para incluir pelo menos algumas de suas universidades de melhor qualidade nesse circuito mundial de conhecimento, informações e competências”.

No Brasil, lamenta ele, o assunto está fora da pauta. “Ficar de fora desses rankings significa que não passam por aqui as principais pessoas competentes, ideias e tecnologias. Não há circulação de conhecimentos e ideias”. Mas, adverte, é “claro que não dá para transformar todo o ensino superior em universidades de excelência internacional”, pois a “maior parte do ensino superior cuida de ensino, e essas universidades internacionais são fortes em pós-graduação e pesquisa pesada”. Assim, conclui, caberia à USP (“que tem mais dinheiro, um acervo de competências de professores e institutos”) assumir esse papel. Como? Definindo seu foco.

“O que queremos que a USP seja?”, insiste Schwartzman. “Hoje, ela tem múltiplos papéis: a graduação, a pós, a pesquisa. Tem até uma tentativa ruim de investir em ensino técnico, com o campus da Zona Leste de São Paulo. Falta um foco. Se for para ser uma universidade de massa, que dará educação profissional, então não precisa pagar professor e pesquisador de dedicação exclusiva. Se for fazer pesquisa, não precisa do ensino profissional”.

Universidade “de massa”, logo sem docentes em dedicação exclusiva: eis aí algo que Zago também defende, ao criticar o “excesso” de docentes em Regime de Dedicação Exclusiva à Docência e à Pesquisa (RDIDP) na USP e criar um grupo de trabalho para desmantelar o RDIDP. Será que, no que diz respeito à EACH, o reitor advoga o mesmo ponto de vista que Schwartzman, qual seja, “tentativa ruim de investir em ensino técnico”? A propósito, a Assembleia Geral da Adusp de 2/7 aprovou moção de repúdio a esta e outras opiniões do ex-presidente do IBGE.

Cientometria

Ao falar em “principais pessoas competentes”, Schwartzman dá a entender que sua concepção de competência é cientométrica, meritocrática, vinculada exclusivamente ao produto dos rankings e das normas hierarquizantes das agências governamentais. Subentende-se que a “circulação de conhecimentos e de ideias” também seja exclusivamente a que deriva desses ranqueamentos e do mainstream acadêmico.

Supondo-se que realmente fosse interessante ao país criar as festejadas universidades de excelência internacional, por que razão não seria possível transformar todo o ensino superior em universidades desse tipo? Vejamos: a linha de raciocínio de Schwartzman é a das “ilhas de excelência”, associada à lógica da exclusão inspirada no Protocolo de Bolonha, que vem norteando a atuação da Capes: docentes de excelência (capazes de alta produtividade), cursos de excelência, programas de excelência, instituições de excelência. Quem não for “excelente” está fora do mapa dos recursos e, claro, jamais chegará a ser “muito bom”, quanto mais “excelente”. A docência é vista como algo de segunda linha, “de massa”, portanto o que importa mesmo é “pós-graduação e pesquisa pesada”.

Ao deplorar os “múltiplos papéis” que a USP exerce hoje, Schwartzman faz parecer que é uma colossal tonteria reunir graduação, pós-graduação e pesquisa numa mesma instituição de ensino! Note-se, ademais, que ele sequer inclui a extensão entre os papéis da universidade: está simplesmente fora de questão. O fato é que incorre num erro conceitual profundo, pois não há universidade sem pesquisa. Ensino superior sem pesquisa é o que faz hoje a maior parte do sistema privado, com os resultados conhecidos. Combinar docência, pesquisa e extensão é um atributo típico das universidades públicas, com ganhos recíprocos para as diferentes faces desse tripé.

Quanto à liberdade para contratar e demitir, o entrevistado apresentou como exemplo saudável um traumático episódio ocorrido na Universidade da Califórnia, em Berkeley: “O departamento de biologia ficou velho. Era um excelente departamento, com gente qualificada, mas a biologia feita lá dentro ficou antiga … principalmente na área da genética. O pessoal não se atualizou”. Uma comissão externa concluiu que o departamento precisava mudar. “As pessoas foram afastadas … eles saíram à procura de pessoal qualificado para tocar o novo departamento. Foram perguntar quanto queriam ganhar e que equipe precisariam montar. Esse tipo de ação é impensável na USP”.

Ufa! Felizmente esse tipo de ação é mesmo impensável na USP, ao menos por enquanto. Mesmo porque seria difícil de entender como “um excelente departamento, com gente qualificada”, tenha ficado ultrapassado da noite para o dia, e pesquisadores qualificados pudessem ser jogados no olho da rua, substituídos como peças descartáveis. Mas o exemplo ilustra bem o que seria a Universidade de Mercado idealizada e pretendida por Zago e seus gurus.

Informativo nº 385

EXPRESSO ADUSP


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