Caso Gabriel
Prisão ilegal de Gabriel Scarcelli
“Apesar de nunca ter posto o pé numa Delegacia de Polícia; apesar de ter trabalho lícito e com registro na mesma empresa, há seis anos; apesar de ter residência fixa […]; enfim, apesar de ser cidadão honrado e de bem, vê-se o paciente agora, abruptamente, na contingência de responder a três processos-crime pelo delito de roubo”.
Tal descrição de uma situação definida como “kafkiana” inicia o primeiro habeas-corpus impetrado no Tribunal de Justiça (TJ-SP) em favor do jovem Gabriel Scarcelli Barbosa, 23 anos, entregador de pizzas encarcerado desde 21 de junho último no Centro de Detenção Provisória (CDP) IV, o chamado Cadeião de Pinheiros.
A vida de Gabriel tinha singularidades. Filho da professora Ianni Scarcelli, do Instituto de Psicologia da USP, ele teve oportunidade de viajar pelo mundo com os pais, poderia comportar-se como um típico jovem de classe média, mas optou por uma vida modesta e por cultivar amizades entre a população pobre paulistana, como observou o jornalista Bruno Paes Manso em reportagem publicada no portal digital do Estado de S. Paulo. Porém, tudo virou de ponta-cabeça desde que um delegado da Polícia Federal, vítima de assalto à mão armada realizado em 2013, “resolveu” que o motoboy e seus amigos, moradores da Favela Mário Cardim (na Vila Mariana), foram coautores deste e de outros crimes.
“Tudo pela simples circunstância de [Gabriel] aparecer em fotografias postadas nos Facebooks de alguns jovens acusados de roubarem a carteira e os celulares (um funcional) de um delegado da Polícia Federal de São Paulo, Kleber Massayoshi Isshiki que, mesmo vítima, foi nomeado encarregado do inquérito”, assinalam os advogados Luis Eduardo Greenhalgh, Fábio Gaspar de Souza e Luiz Paulo Horta Greenhalgh no texto do habeas-corpus.
“O fato de manter relações de amizade com esses jovens, moradores da comunidade carente (favela) onde [Gabriel] veio a conhecer a sua companheira com a qual tem um filho e onde a família dela vive, o fez ser considerado suspeito de integrar quadrilha e de ser assaltante, erigido a essas condições pela ação do delegado/vítima”, explicam.
No documento, eles enumeram as ilegalidades praticadas no decurso da ação policial e que contaram com a colaboração de magistradas como a do Departamento de Investigações Policiais 3 (DIPO 3), pois “apesar de ostentar todos os requisitos legais para responder a tais processos em liberdade, o paciente está preso por ato da autoridade impetrada [a juíza], que, na forma do art. 310, inciso II do CPP [Código de Processo Penal], acabou por converter a prisão provisória em preventiva (ambas requeridas pelo mesmo delegado/vítima do roubo), ausentando-se de considerar as circunstâncias em que foram obtidos os ‘reconhecimentos’ fotográficos e pessoais com que aquela autoridade tenta incriminá-lo”.
“Estranheza”
A juíza do DIPO 3 reconheceu que acatava o pedido de prisão em decorrência do vencimento da prisão temporária: “excepcionalmente, estou apreciando este pedido, visto que o delito é grave, e [a] prisão temporária do investigado vence no dia de hoje”.
Ademais, a juíza chegou a afirmar sobre Gabriel: “Não comprovou possuir residência fixa no distrito da culpa e ocupação lícita”, desconhecendo, assim, “que a polícia vistoriou o local de sua residência por mais de uma vez e que o paciente foi preso em seu local de trabalho, trabalhando e no qual está registrado há mais de seis anos”.
Diante da argumentação contundente dos advogados, o TJ-SP concedeu em 20/7 o habeas-corpus, relatado pelo desembargador Freitas Filho, para quem, “analisando as circunstâncias peculiares em que a prisão preventiva foi decretada, o caso é de revogação da custódia preventiva”. No entanto, o rapaz foi mantido no CDP: o delegado Isshiki obteve nova ordem de prisão preventiva contra ele, expedida pela juíza da 16ª Vara Criminal.
A nova prisão preventiva foi decretada em mero despacho de dois parágrafos, ferindo claramente o CPP no tocante à essa modalidade de prisão: “O despacho impugnado é lacônico e genérico, ao mesmo tempo”, afirmam os advogados em novo e alentado habeas-corpus (impetrado no TJ-SP em 27/7), pois para se decretar uma prisão preventiva não basta apenas mencionar as hipóteses referidas no CPP.
Desenvoltura
Impressiona a desenvoltura com que o delegado federal Isshiki atuou no caso, descrita em detalhes no segundo habeas-corpus. Após individualizar os autores indicados por reconhecimentos feitos graças à filmagem do circuito de segurança da oficina, o delegado passou a investigar também a rede de relações dos identificados no Facebook. Depois de salvar em arquivo fotografias existentes nos perfis do Facebook dessas pessoas e de suas amizades (em geral, colhidas em festas), na sua maioria moradoras da comunidade onde residem os supostos autores do roubo de 2013, Isshiki passou a recolher BOs de outras ocorrências registradas nos distritos policiais do entorno da favela (relacionadas a roubos de carros e de celulares), e passou a associar as características físicas descritas pelas vítimas nesses BOs, às imagens colhidas nos perfis do Facebook. Os retratados parecidos com as descrições feitas nos registros policiais passaram a ser considerados suspeitos daqueles delitos e integrantes de uma quadrilha armada.
“A partir daí, as vítimas passaram a ser chamadas, para reconhecimento fotográfico nas dependências da PF-SP, onde eram-lhes apresentadas, pelo delegado/vítima, as fotos dos ‘suspeitos’ como ‘fotos constantes dos arquivos dessa especializada’, omitindo dos reconhecedores a origem verdadeira das fotos e a sua própria condição de vítima de roubo por alguns dos retratados”, registram os advogados de Gabriel. “Nessas condições, as vítimas acabaram por reconhecer os ‘suspeitos’ retratados no Facebook dos indicados como autores do roubo da oficina e os demais. Foi assim que, por esse mecanismo de incriminação dirigida, muitos meses depois dos fatos, o paciente acabou sendo reconhecido fotograficamente, por duas vítimas dentre os inúmeros BOs colecionados pelo delegado/vítima”.
Como resultado dessas investigações, Isshiki indiciou quase todos os “suspeitos” por envolvimento em roubo de carros e associação criminosa e requereu à 1ª Vara Federal Criminal a prisão temporária de todos os indiciados. O Ministério Público Federal pediu a prisão preventiva de Gabriel, que foi rejeitada. Neste momento a Justiça Federal se declarou incompetente para tratar dos crimes imputados ao grupo, e os autos do processo foram remetidos à Justiça Estadual. Mesmo assim, o delegado federal “continuou a presidir os mencionados inquéritos”, e ao dirigir-se à Justiça Estadual pedindo a prisão preventiva de Gabriel “foi atendido prontamente pela autoridade coatora no despacho impugnado”.
A professora Ianni Scarcelli, mãe de Gabriel, observa que, quando efetuou a prisão no local de trabalho do jovem, o delegado estava à paisana, não se identificou e intimidou os colegas de trabalho de Gabriel para que não avisassem ninguém: “A forma irregular de prisão — credenciais não apresentadas, ameaças aos trabalhadores do estabelecimento, utilização de carro de passeio para conduzir o preso — levou familiares e amigos a acreditarem tratar-se de um sequestro”.
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