Defesa do Ensino Público
Reforma do Ensino Médio e desvalorização do professor
Em meio a grande debate e questionamentos, a Medida Provisória (MP) 746, que reforma o Ensino Médio, foi aprovada na Câmara dos Deputados, em 13/12. O primeiro ponto que chamou a atenção de educadores foi o caminho adotado para estabelecer as mudanças. A estrutura curricular do ensino médio é um dos temas mais complexos em educação, fazendo com que diferentes lugares do mundo discutissem durante anos possíveis modificações. No entanto, a tramitação via MP é uma das formas mais antidemocráticas de se fazer política, pois recusa o amplo debate público e ignora até mesmo os posicionamentos dos mais envolvidos, neste caso estudantes e professores. Para justificar tal iniciativa representantes do Ministério da Educação (MEC) se limitam a afirmar que a reforma não pode mais esperar!
As possibilidades para um currículo de Ensino Médio são muitas, não se limitando à discussão sobre se o percurso será único ou diversificado. A questão que antecede a qualquer opção é qual sujeito se pretende formar e para qual sociedade. No entanto, a única indicação clara dada quanto a isso é o desprezo à formação humanística, pois as primeiras componentes curriculares que deixarão de ter papel de destaque, incluídas no texto como “estudos e práticas” (ainda assim por meio de emenda), são justamente a Filosofia e a Sociologia, base para uma cidadania crítica. Maiores detalhes sobre a formação dos jovens são remetidos à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), mas sem nenhuma indicação sobre a possibilidade de discussão com alguma profundidade.
O projeto prevê que em cinco anos o Ensino Médio conte com 1.000 horas anuais, indicando-se que progressivamente os sistemas de ensino deverão buscar atingir a meta de 1.400 horas, com educação de tempo integral. Destas, 1.800 horas (considerando-se os três anos de ensino) serão definidas por meio da BNCC.
A “solução” para a educação brasileira é decidida à revelia de sua realidade concreta: falta de infraestrutura e precariedade da carreira dos professores, frutos do sub-financiamento da educação. Se especialistas das mais diferentes correntes indicam que a valorização do professor, em termos tanto de rendimentos quanto de formação, é uma peça fundamental no processo de melhoria educacional, o projeto se configura como um extremo retrocesso, em especial por criar a figura do professor com “notório saber”.
“Notório saber” 1
O artigo da MP 746 que define os profissionais da educação básica indica:
Art. 61._ Consideram-se profissionais da educação escolar básica os que, nela estando em efetivo exercício e tendo sido formados em cursos reconhecidos, são
[…]
IV – profissionais com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino, para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional atestados por titulação específica ou prática de ensino em unidades educacionais da rede pública ou privada ou das corporações privadas em que tenha atuado, exclusivamente para atender ao inciso V do caput do art. 36. […]
A princípio, a figura do professor com notório saber se refere ao inciso V do art. 36, também criado pela mesma MP, que diz respeito à formação técnica e profissional. Uma leitura é que tal professor poderia apenas ministrar aulas técnicas, simples, que não exigem formação específica. Essa interpretação — comum nos discursos dos que apoiam as numerosas, rápidas, violentas e profundas mudanças impostas ao país nos últimos meses — é a que tenta mostrar seu lado “positivo”: os detentores do “notório saber” seriam apenas professores das disciplinas técnicas dos cursos técnicos.
Supõe, por exemplo, que um engenheiro daria aulas das disciplinas técnicas de um curso de eletrônica de nível médio, ou que profissionais com formação superior na área de saúde (enfermeiros, médicos ou psicólogos) poderiam dar aulas nas disciplinas técnicas dos cursos de técnicos de enfermagem. Contudo, uma lei vale pelo que nela está escrito — e nada nela permite essa leitura. A nova redação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) sequer exige um curso superior para se conseguir o “notório saber”!
O fato de a redação incluir a expressão “exclusivamente para atender ao inciso V do caput do art. 36” não restringe, de fato, as atividades às disciplinas técnicas dos cursos de ensino médio. Caso fosse essa a intenção do legislador, a redação deveria ser explícita, algo como: “Os detentores do notório saber só podem ministrar aulas em disciplinas técnicas dos cursos técnicos do ensino médio”.
Outra interpretação favorável à lei pressupõe que as disciplinas técnicas são coisas simples e que se aprende com a prática, ou talvez atividades ligadas a habilidades inatas que algumas pessoas têm. Mas uma consulta às ementas das disciplinas técnicas dos cursos médios mostra que tais disciplinas são complexas e exigem professores tão bem formados como as demais disciplinas. Além disso, a MP não define o que pode e o que não pode ser considerada “área afim” e — certamente não por distração de quem a redigiu — sequer exige o curso superior.
“Notório saber” 2
A LDB afirma que o reconhecimento do notório saber é feito “pelos respectivos sistemas de ensino”, sem nenhuma especificação adicional quanto à formação de quem o recebe, do corpo que o concede ou das disciplinas que podem ser consideradas afins. “Porteira aberta”: cada sistema de ensino que decida como conceder o notório saber. O Estado de São Paulo já está tomando providências para sua regulamentação. O projeto de lei (PL) 839/2016, em andamento na Assembleia Legislativa (Alesp), afirma:
Artigo 1º – Os órgãos ligados à Secretaria da Educação e demais Instituições educacionais e privadas do Estado de São Paulo, compreendendo os segmentos das escolas regulares e/ou técnicas, no nível da educação básica, só poderão contratar profissionais definidos como de “NOTÓRIO SABER” que foram:
I – certificados por Instituições de Ensino Superior; ou
II – examinados por uma banca composta de no mínimo 03 (três) professores da rede estadual de ensino, sendo:
- um doutor na área de atuação do postulante;
- um doutor em Educação;
- um supervisor de ensino.
Artigo 2º – Para os casos contidos no artigo 1º, inciso II, a formação da banca fica sob a responsabilidade do Dirigente Regional de Ensino de cada região, que escolherá e convocará seus membros e expedirá o certificado de Notório Saber.
§ 1º – O certificado de Notório Saber passa a ser de obrigatória apresentação no ato da contratação.
§ 2º – O certificado de Notório Saber terá validade por todo o Estado de São Paulo, nas escolas públicas e particulares que ofereçam cursos nos segmentos de ensino da educação básica, regular e/ou técnica.
[…]
O parágrafo segundo do artigo segundo não deixa nenhuma dúvida: o notório saber terá validade por todo o Estado de São Paulo, nas escolas públicas e particulares que ofereçam cursos nos segmentos de ensino da educação básica, regular e/ou técnica. Assim, não se distingue com clareza as possibilidades de atuação deste professor, que poderá assumir diferentes atividades de ensino.
O projeto ainda prevê a possibilidade de formação complementar a pessoas que não tenham licenciatura e queiram lecionar por meio do inciso V do mesmo Art. 61 que indica a possibilidade de lecionarem: profissionais graduados que tenham feito complementação pedagógica, conforme disposto pelo Conselho Nacional de Educação.
A criação da figura de professor sem formação específica parece estar relacionada à PEC 55. Como esta PEC prevê a redução dos recursos para educação, isso implicará a deterioração ainda maior das condições de trabalho na educação básica. Assim, é necessário aumentar o número de pessoas legalmente autorizadas a dar aulas e portanto reduzir as exigências de formação, pois ambos os fatos contribuem para o rebaixamento da remuneração de uma profissão. A MP 746 e o PL paulista 839 fazem isso: reduzem exigências e aumentam a quantidade de pessoas autorizadas a ministrar aulas na educação básica.
Em ano de profundos retrocessos, a Educação, base de uma sociedade, foi alvejada. Mais do que vinte anos de retrocessos sociais “planejados constitucionalmente” por meio da PEC 55, a precarização da educação afetará gerações e poderá comprometer um século inteiro.
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