Conflito de interesses
Juíza afasta provisoriamente docente da EEFE acusado de uso indevido de equipamento da USP
A ação judicial foi proposta pelo MPE-SP, que abriu novo inquérito civil para apurar possível fraude em bolsa de pesquisa
A pedido do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPE-SP), em ação civil por improbidade administrativa ajuizada em dezembro de 2016, a juíza Simone Viegas de Moraes Leme, da 15ª Vara da Fazenda Pública, afastou de seu cargo na Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP), em caráter provisório, o professor titular Antonio Herbert Lancha Junior, mestre e doutor em Nutrição Experimental e, desde 1991, coordenador do Laboratório de Nutrição e Metabolismo Aplicados à Atividade Motora (LabNutri), pertencente àquela unidade de ensino.
De acordo com a Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital do MPE-SP, o professor teria feito uso indevido de um aparelho adquirido com verba da Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapesp) e doado à EEFE. “No bojo da investigação”, diz a ação civil assinada pelo promotor de justiça Nelson Luis Sampaio de Andrade, “restou demonstrado que o demandado [Lancha Junior] usou o aparelho BodPod (Body Composition Tracking) em consultas particulares realizadas nas dependências da clínica médica Vita Clínicas Medicina Especializada S/A, vulgo Instituto Vita”.
Na ação, Andrade afirma ainda que “não restam dúvidas sobre o enriquecimento ilícito do demandado Lancha Jr. em decorrência do uso indevido de bem público para fins particulares”, levando em conta, inclusive, relatos colhidos no inquérito civil de que o BodPod teria sido utilizado como “moeda de troca” para o ingresso da empresa do professor na composição societária do Instituto Vita.
Lancha Junior e sua esposa são proprietários da empresa Quality of Life, que se tornou sócia do Instituto Vita. O professor e as duas organizações privadas figuram como réus na ação civil movida pelo MPE-SP e são igualmente acusadas de enriquecimento ilícito. A Quality of Life “também se beneficiou do uso indevido da máquina Bod Pod”. Os faturamentos referentes ao uso do equipamento pelos clientes do professor foram realizados por determinado período pela empresa e, posteriormente, pelo Instituto Vita. “Desta feita, em razão da efetiva absorção de ativos e lucros decorrentes do uso indevido da máquina para fins particulares, a empresa demandada praticou ato ímprobo que causou prejuízo ao erário, devendo responder pela violação”, diz o MPE-SP.
A sindicância 2016.1.128.39.0, instaurada pela EEFE com a finalidade de apurar eventuais irregularidades na aquisição e uso do aparelho BodPod, é uma das principais fontes do MPE-SP. A Comissão Sindicante concluiu que “há elementos suficientes para justificar um processo disciplinar que aprofunde, com todas as garantias do devido processo legal, a apuração da possível prática de ato ilícito por parte do Prof. Dr. Lancha Junior, envolvendo o uso remunerado para fins privados do BodPod”.
Os três “elementos probatórios principais” apontados pela Comissão: “afirmação categórica de Vita Clínicas […] de que havia uso privado do BodPod para atendimento de clientes particulares da clínica, gerando remuneração tanto para Vita Clínicas, como para Quality of Life”; “cópias de planilhas eletrônicas do sistema do Instituto Vita […] que indicam cobranças específicas, no valor de R$ 200, por ‘pletismografia’ realizada pelo ‘Dr. Lancha’”; “o depoimento, também categórico, da Dra. Desire [Ferreira Coelho]”, aluna de Lancha Junior e que trabalhara com ele no Instituto Vita.
Em 10/11/16, a EEFE finalmente instaurou processo administrativo-disciplinar para apurar o caso, conforme recomendado pela Comissão Sindicante. O prazo regular para conclusão dos trabalhos é de até 90 dias, mas o diretor da unidade, professor Valmor Tricoli, declarou ao Informativo Adusp que a Comissão requereu suspensão do prazo, porque o professor Lancha Junior encontrava-se em afastamento acadêmico no exterior.
A juíza da 15ª Vara da Fazenda Pública deferiu a antecipação de tutela para afastar provisoriamente Lancha Junior do seu cargo de professor na EEFE, por entender “haver prova inequívoca suficiente para convencimento da verossimilhança da alegação, fundado receio de dano de difícil reparação e não haver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado”.
Segundo a ação ajuizada pelo MPE-SP, “enriquece ilicitamente o agente público ou o particular que recebe vantagem patrimonial indevida em razão de conduta dolosa, desde que existente o nexo causal entre o recebimento da vantagem e o exercício de cargo, mandato, emprego ou atividade pública em geral”. O uso de bem público, acrescenta, “configura ato de improbidade administrativa que enseja enriquecimento ilícito”.
No entender do promotor Andrade, no caso em questão estão presentes os requisitos necessários à caracterização do enriquecimento ilícito, tais como: uso indevido de bem público, ou seja, em desacordo com os institutos legitimadores de uso de bens públicos; uso em proveito próprio do agente; e com consequente vantagem econômica por prestação negativa.
“Trata-se de caso ímpar de ato ímprobo, tendo em vista que não há um acréscimo patrimonial típico, ou seja, não são adicionados bens ao patrimônio do agente. Diz-se que a vantagem econômica é negativa por deixar o agente de realizar uma despesa que seria necessária, evitando, assim, a diminuição do patrimônio do agente, com o seu consequente enriquecimento ilícito”.
Outro fato relacionado ao aparelho BodPod concorreu para essa acusação: “Não somente o seu uso em consultas particulares e programas televisivos demonstra a chamada vantagem econômica por prestação negativa, mas também os relatos de seu uso para ingresso no Instituto demandado [Instituto Vita]”. No entender do promotor, Lancha Junior “usou de sua condição de guardião do patrimônio público para, inclusive, ingressar na sociedade com o Instituto”.
Essa última afirmação baseia-se em depoimentos prestados ao MPE-SP, nos quais se diz que antes mesmo da importação do aparelho o professor já anunciava que ele seria levado para o Instituto Vita — e que, posteriormente, o BodPod foi negociado com essa entidade como uma espécie de “moeda de troca” tanto para o ingresso da empresa de Lancha Junior no quadro de acionistas como para sua saída.
O representante do Instituto Vita declarou no inquérito que “entre os anos de 2008 e 2009, o Dr. Antonio Herbert Lancha Junior comunicou que traria para as dependências do Instituto Vita o aparelho denominado BodPod. A notícia era de que esse aparelho seria utilizado por ele nas dependências da clínica, mais especificamente em uma sala anexa à sala em que o casal Lancha prestava atendimento”.
Além disso, prossegue a ação judicial, “se tem notícia de que a máquina foi utilizada como moeda de troca para o ingresso da demandada Quality of Life como sócia do Instituto”. O texto cita mensagem enviada pelo médico João Carlos Nakamoto, sócio do Instituto Vita, segundo a qual o BodPod seria de propriedade dessa instituição e, como forma de pagamento da saída de Lancha Junior, seria a ele devolvido.
Também são citadas na ação as declarações ao MPE-SP da doutoranda Patrícia Lopes de Campos Ferraz, da EEFE, segundo quem “uma vez o aparelho no Instituto Vita, quis o representado utilizar o aparelho para ingressar na sociedade do Vita; que o Vita investe em pesquisas, mas que o representado foi convidado para ingressar no Instituto como sócio; que para o ingresso como sócio, deve ser colocado um aporte monetário, que não sabe precisar quanto; que o representado tinha a intenção de utilizar o BodPod como pagamento para seu ingresso na sociedade”. Ainda, que “o papel principal do BodPod no Instituto Vita era parte do pagamento do representado para que ele ingressasse na sociedade”.
Em 13/1/17, extensa reportagem do telejornal SPTV reproduziu um vídeo que estaria circulando nas redes sociais desde 2011, no qual o BodPod pertencente à EEFE é visto com a logomarca do Instituto Vita na sua parte superior, como se pertencesse àquela organização privada.
O aparelho em questão teve sua aquisição solicitada por Lancha Junior à Fapesp em maio de 2007, como auxílio à pesquisa, por ele conduzida, denominada “Efeitos da Lipoaspiração e doTreinamento Físico no Metabolismo, Perfil Lipídico, Adiposidade e Distribuição de Gordura Corporal em Mulheres de 20 a 35 anos, Eutróficas e com Sobrepeso”. Comprado pela Fapesp pelo equivalente, em dólares, a 174 mil reais, o BodPod foi instalado na sede do Instituto Vita e não nas dependências da EEFE, como seria de se esperar.
Em 6/10/2008, antes mesmo da importação do aparelho, Lancha Junior registrou um Pedido de Alteração da Concessão Inicial, no qual solicitou à Fapesp que o BodPod “seja alocado no Instituto Vita”. Diz o resumo do pedido: “Justifica que as coletas biológicas (biópsia de gordura, lipoaspiração e drenagem pós-cirúrgica) acontecerão neste Instituto, e que isso garantirá a coleta de todos os dados e reduzindo portanto a probabilidade de perda de todos os sujeitos”.
De 2009 até o início de 2013, o aparelho permaneceu em pleno uso comercial no Instituto Vita, sem que Lancha Junior, que já exercia o cargo de vice-chefe do Departamento de Biodinâmica do Movimento Humano, sofresse qualquer questionamento de parte da EEFE ou de qualquer outra instituição pública. A situação mudou quando a Fapesp recebeu uma denúncia de autoria desconhecida e, segundo a ação judicial em curso, deu início a uma “investigação interna no bojo do Processo Fapesp 12.348-M”.
Em 25/2/13, a Fapesp encaminhou a Lancha Junior um ofício assinado por Alexandra Ozorio de Almeida, gerente da Diretoria Científica, solicitando a devolução do equipamento à EEFE: “Lembramos que a Fapesp autorizou a entrega e o uso do equipamento no Instituto Vita Care como a condição de que fosse devolvido à EEFE após a coleta das amostras para o desenvolvimento do projeto de pesquisa […] Dado que o auxílio por meio do qual o equipamento foi adquirido encerrou-se em 31/12/10, a Fapesp entende que o referido equipamento, adquirido com recursos públicos, deveria ter sido devolvido à instituição sede do processo, conforme compromisso estabelecido pelo pesquisador responsável no Termo de Outorga”.
De acordo com a ação civil, em momento algum se mostrou plenamente justificado o pedido de alocação da máquina no instituto demandado. “Relata o demandado, em sua resposta à Fapesp na sindicância instalada, que uma das justificativas seria de indisponibilidade de local apropriado para instalação do equipamento na EEFE. Isto, destaca-se, em nenhum momento restou comprovado ou demonstrado, sequer levantado como justificativa no pedido oficial realizado pelo demandado”.
De modo a regularizar a situação do equipamento e após a apresentação das justificativas por Lancha Junior, ele contou com o beneplácito da EEFE, que lhe deu cobertura institucional ao firmar uma “parceria acadêmica” com o Instituto Vita pelo prazo de dois anos (Termo de Convênio 33.306). “Também foi regularizada a situação patrimonial do equipamento”, informa a Promotoria na ação, mediante assinatura de Termo de Permissão de Uso, e posteriormente a investigação foi arquivada pela Fapesp.
Contudo, prossegue a ação, em que pese o arquivamento após a aparente regularização, a utilização do equipamento continuava adstrita à pesquisa acadêmica e científica. “Nestes termos é o já mencionado convênio firmado entre a EEFE e o Instituto Vita, que tem como objeto a ‘cooperação técnico-científica entre a Escola de Educação Física e Esporte da USP e o Instituto Vita, visando desenvolvimento de projetos de pesquisa na área de atividade física, nutrição e reabilitação’”.
Ainda: “O Termo de Permissão de Uso: Saída de Bens que regularizou a permanência do aparelho de mensuração no Instituto Vita no período de 22/3/2013 a 20/3/2015 é claro ao delinear que a finalidade do documento é ‘regularizar permanência no Instituto Vita para fins de pesquisa conforme convênio 33.306 e autorização na 111ª Seção Ordinária do CTA de 18/7/2013 autorizando a permanência de 22/3/2013 a 20/3/2015’”.
A ação judicial em curso na 15ª Vara da Fazenda Pública registra que “com vistas a se beneficiar do uso de tal aparelho”, o réu “utilizou de ardis e meios fraudulentos para impedir que o uso particular da máquina fosse de conhecimento das autoridades competentes, por meio de ameaças e embaraços impostos àqueles que tentaram utilizar o equipamento de forma regular”.
Somente no início de 2016, portanto cerca de seis anos depois de colocado à disposição do professor titular da EEFE, é que o BodPod finalmente chegou às dependências dessa unidade de ensino da USP.
Os conflitos entre Lancha Junior e outros docentes (e respectivos orientandos) que utilizavam o LabNutri tiveram início em 2015, dadas as crescentes dificuldades de utilização do BodPod para fins de pesquisa. Lancha Junior chegou a atribuir os problemas à existência de um litígio judicial entre ele e o Instituto Vita, que estaria restringindo o uso do aparelho. Frente aos inexplicáveis obstáculos para agendar o BodPod, docentes e alunos passaram a questionar o comportamento do coordenador do laboratório e a encaminhar às autoridades da EEFE denúncias relativas às irregularidades que vieram à tona.
Diante da reação dos prejudicados, o professor resolveu retaliar. Expulsou os colegas do LabNutri, comunicando-lhes por e-mail, em 19/2/16, que “devido aos fatos recentes o convívio seu e de seus orientandos no laboratório que coordeno ficou inviável”. Cerca de trinta pesquisadores foram atingidos pela medida. No mesmo dia, ele passou a impedir a entrada de todos no laboratório.
Em documento enviado em 3/3/16 à professora Edilamar Menezes, chefe do Departamento de Biodinâmica do Movimento Humano, os professores Bruno Gualano e Guilherme Artioli relatam: “Em 19 de fevereiro de 2016, sexta feira, aproximadamente às 18h — horário em que o setor de informática encerra suas atividades — a mando do professor Lancha Junior e à revelia deste departamento, foram descadastradas as digitais de ingresso ao Laboratório de Nutrição e Metabolismo Aplicados à Atividade Motora dos dois docentes deste departamento que subscrevem esta carta, bem como de todos os seus alunos e pós-doutorandos, impedindo-os de entrar em seu local de trabalho”.
Duas alunas que realizavam experimentos no LabNutri e ausentaram-se para jantar foram impossibilitadas de retornar a seus postos e impedidas de reaverem seus pertences pessoais (chave, carteira e dinheiro). “Apenas na madrugada de sábado, graças à presença de um terceiro professor, Hamilton Roschel, que possuía a credencial de ingresso no laboratório, as referidas alunas puderam reaver seus pertences e, finalmente, regressar a seus lares. Ressaltamos que o impedimento da entrada das alunas por pouco não redundou no dano ao equipamento HPLC, estimado em 75 mil reais, obtido com verba pública, que por elas era operado. Caso o professor Hamilton não tivesse aberto a porta, esse equipamento permaneceria funcionando dentro do laboratório durante todo o fim de semana, o que fatalmente lhe teria causado graves danos”.
Na ocasião em que a carta foi redigida, havia dezoito dias que alunos e docentes estavam impedidos de entrar no laboratório, “local em que conduzimos estudos científicos que possuem financiamento público e aval da direção da instituição para serem realizados”. Prossegue o documento: “Absurdamente, fomos também todos tolhidos de acessarmos a sala comum do departamento na qual se encontram os freezers onde armazenamos amostras biológicas. Tamanha a virulência deste caso que muitos dos alunos do próprio professor Lancha Jr foram por ele também impedidos de ingressarem no laboratório. Durante esse período de obstrução de trabalho, alunos estão precariamente alojados em nossas salas. É também em nossas salas que encomendas laboratoriais — muitas delas perecíveis — estão sendo acumuladas, e suplementos alimentares, os quais são administrados a voluntários de nossos estudos, estão sendo manipulados pelos alunos”.
Consta da ação judicial que existem “gravações, em mídia digital”, depositadas em cartório, que comprovam a atuação “ilegal e desonesta” de Lancha Jr.: “Sente-se ele o proprietário do laboratório da Faculdade de Educação Física da Universidade de São Paulo, determinando quem pode e quem não pode fazer uso dos instrumentos que o equipam — inclusive a máquina Bod Pod —, independentemente da existência de pesquisa em curso ou até mesmo da função exercida por aqueles que dependiam do acesso ao laboratório”.
O professor Guilherme Artioli, que se encontra em Nottingham, declarou ao Informativo Adusp que todos os projetos que estavam em andamento ou em vias de se iniciar foram severamente afetados pela atitude de Lancha Junior. “Tínhamos muitos equipamentos e reagentes que utilizávamos com frequência e que ficaram ‘presos’ no laboratório por meses. Sem mencionar diversos equipamentos que foram obtidos primariamente pelo nosso trabalho, mas que estavam sob a responsabilidade formal do Lancha. Muitos deles ele mesmo ou seus alunos não usam, e permanecem lá sem uso até hoje. Em diversos casos, tivemos de gastar dinheiro de nossos projetos (que não estava previsto) para adquirir novamente equipamentos. Um verdadeiro desperdício de dinheiro público que deveria ter sido evitado”.
Artioli citou como exemplo o equipamento HPLC, “adquirido com verba Fapesp e que ficou trancado no laboratório sem que pudéssemos acessá-lo por três ou quatro meses, represando pelo menos quatro projetos que dele dependiam”. A realocação desse equipamento, disse, causou danos que custaram 6 mil reais e novos atrasos nas pesquisas. “Menciono também o equipamento de gasometria sanguínea, que está sob responsabilidade formal do Lancha, embora ele não faça uso em suas pesquisas, ao qual perdemos acesso. Isso atrasou em oito meses o inicio de um projeto de pesquisa altamente inovador, inclusive com possibilidade de patente, em uma área altamente competitiva da nutrição esportiva. Tivemos de investir cerca de 30 mil reais em um equipamento similar, enquanto o outro ficava sem uso”.
As denúncias contra Lancha Junior foram encaminhadas também ao diretor da EEFE, professor Valmor Trícoli. No entanto, nem o Departamento de Biodinâmica do Movimento Humano nem a direção da unidade tomaram medidas para impedir a continuidade dos abusos. Questionado por Gualano em 4/3/16, por e-mail, Trícoli negou que as atitudes de Lancha Junior tivessem o aval da direção, mas se limitou a “lamentar” a situação: “O que fiz foi, como docente, intermediar e tentar resolver um impasse [sic]”. Alegou, ainda, que “este problema ainda está no âmbito departamental e não chegou oficialmente para uma intervenção do diretor”.
Tricoli disse ao Informativo Adusp que não recebeu os documentos que constam do processo judicial em tramitação na 15ª Vara da Fazenda Pública e que, por essa razão, não poderia se pronunciar sobre a decisão cautelar tomada pela juíza responsável pelo caso: “Não posso opinar, não sei o teor dos documentos. Nossa escola não foi notificada. O que vocês sabem é o que eu sei. Não recebi documento nenhum até agora”.
Quanto à aparente inação da direção da EEFE frente às diversas denúncias, e à troca de mensagens ocorrida em 4/3/16, Tricoli afirmou não ter “absolutamente nada a comentar” a respeito. Quando o repórter lhe indagou se não seria razoável que a direção da unidade tomasse alguma medida contra a expulsão de membros do LabNutri pelo coordenador, o diretor foi ríspido: “Não pretendo discutir esse assunto com você”.
Em 24/3/16, o pós-doutorando inglês Bryan Saunders encaminhou mensagem eletrônica aos professores Tricoli e Edilamar reportando o bullying de que fora vítima na semana anterior. “É com grande decepção que me sinto obrigado a informá-los sobre o assédio moral que sofri no Laboratório de Nutrição e Metabolismo da Atividade Motora na semana passada”, iniciou Saunders, que descreveu detalhadamente uma série de atos hostis do técnico encarregado.
Num dado momento, este último “entrou no laboratório acompanhado do segurança e empurrou um celular sob o meu nariz, interrompendo um telefonema que eu já estava fazendo, e disse que era Antonio Lancha Junior na linha”. Atendido por Saunders, o professor questionou o que o pesquisador “estava fazendo” no laboratório e desligou em seguida sem ouvir a resposta. As restrições de tempo de uso do laboratório impostas por Lancha Junior e executadas por seu auxiliar Vitor Procópio terminaram por comprometer totalmente os experimentos do pós-doutorando.
“Esse tipo de assédio não é tolerado de onde eu venho e não deve ser tolerado em qualquer país ou instituição por qualquer pessoa. Como membro da Escola de Educação Física e Esporte, tenho o direito de trabalhar sem o assédio psicológico que experimentei na última semana. Espero que alguma medida seja tomada pela escola contra estes indivíduos, Antonio Lancha Jr e Vitor Procópio. Se não, terei de recorrer eu mesmo a uma ação externa (judicial) contra eles e contra o laboratório”. Apesar da gravidade dos fatos relatados por Saunders, não há notícia de que a chefia do departamento e a direção tenham se sensibilizado com eles.
“Desconheço tais fatos e não tenho nada a declarar”, disse o técnico de laboratório Vitor Procópio, quando instado pelo Informativo Adusp a comentar as denúncias de assédio moral feitas por Saunders.
O Instituto Vita declarou ao Informativo Adusp, por meio do seu diretor Fábio Moriondo, que “colaborou e continuará colaborando com o Ministério Público”, confirmou o vínculo societário entre a entidade e a empresa Quality of Life, pertencente ao casal Lancha, mas só comentará o caso em juízo.
O Informativo Adusp encaminhou mensagens eletrônicas ao professor Lancha Junior, que se encontrava no exterior quando a mídia passou a abordar o caso. Ainda não recebemos resposta às questões formuladas. Também houve tentativas de contato por celular, sem sucesso. No dia 23/1/17, quando o professor já havia retornado ao Brasil, novamente a reportagem tentou conversar com ele. Depois de ligar para o celular do professor, o Informativo Adusp tentou o Instituto Vita e soube pela secretária que ele se encontrava lá, mas estava ocupado com uma ligação e pediu para voltar a ligar mais tarde. Na segunda tentativa, a secretária informou que Lancha Junior ainda estava ocupado e pediu o telefone do repórter. Até o fechamento desta matéria, porém, o professor não entrou em contato.
O episódio deixou sequelas no grupo de pesquisa perseguido por Lancha Junior e seus aliados. “Em 2016, vivemos em terror, com expulsão de laboratório, falsas acusações, assédio e ameaças de toda sorte. Agora, com o trabalho do MPE-SP e da sindicância interna que apurou todos os fatos que motivaram essas retaliações, apenas esperamos que a justiça seja feita exemplarmente, na medida da gravidade do caso, de modo a coibir novos casos como este”, resume o professor Bruno Gualano. Em razão de todo o assédio sofrido, o docente pretende se transferir para a Faculdade de Medicina (FM-USP), com seu grupo de pesquisadores. Já o professor Guilherme Artioli preferiu migrar para a Inglaterra.
“Estou afastado da USP e atualmente leciono na Universidade de Nottingham Trent. Tenho gostado da vida aqui e tenho aprendido muito com essa experiência até o momento”, revelou Artioli. “Eu tenho uma ligação muito forte com a EEFE. Foi onde sempre sonhei estudar, foi onde me graduei, fiz mestrado, doutorado, pós-doutorado e me tornei professor. Tenho muitos amigos e me sinto em casa quando estou lá. Tenho uma relação muito boa com os alunos, com funcionários e docentes. Voltar a dar aulas lá é algo que frequentemente passa pela minha cabeça. Mas tomarei essa decisão mais para frente”. Gualano lamenta a situação: “Perdemos um docente brilhante, um excelente pesquisador”.
Artioli considera correta a decisão da juíza Simone Viegas de Moraes Leme de afastar Lancha Junior: “Além das evidências que o Ministério Público tem das tentativas de intimidação de testemunhas, Lancha tem deliberadamente usado sua influência e engendrado esforços para obstruir nosso trabalho de diversas formas e nos prejudicar. Por exemplo, quando retiramos alguns materiais do LabNutri que foram comprados com verbas nossas e deveriam ser utilizados em projetos de alunos nossos, foi lavrado um boletim de ocorrência sobre ‘furto’ de materiais e equipamentos. Alguns dos itens ‘furtados’ haviam sido realmente retirados por engano. No entanto, o erro já havia sido esclarecido e eles já haviam sido devolvidos”.
Mesmo assim, continua ele, o boletim de ocorrência foi registrado, “numa clara tentativa de denunciação caluniosa”. Também foi aberta uma sindicância interna (processo 2016.2011.39.4), que concluiu que a acusação de furto era falsa. “Embora eu e meus colegas não tenhamos sido formalmente ou explicitamente acusados de participar do ‘furto’, isso estava nas entrelinhas de forma bem clara”.
Assim, Artioli diz lamentar “não apenas os atos ilícitos e a conduta anti-ética do Lancha, mas também a incapacidade que as instâncias internas demonstraram” no tocante à “má-conduta” do coordenador do LabNutri, uma vez que esta “foi frequentemente tratada como ‘briga interna’, ou até mesmo como ‘ingratidão’ nossa em relação ao Lancha”. Casos semelhantes já ocorreram, acrescentou, e têm sido sistematicamente encobertos. “Será que a USP sempre vai esperar que um problema se torne um escândalo na midia para que alguma ação efetiva seja tomada? Minha esperança é de que aprendamos com esse tipo de situação, e que ela sirva para aprimorarmos nossos mecanismos de controle de má-conduta”.
O professor Lancha Junior é alvo de outro inquérito civil na Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da capital, que apura eventuais irregularidades no uso de bolsa de pesquisa concedida pela Fapesp e foi instaurado em dezembro de 2016.
Entre 2013 e 2014, o professor da EEFE esteve na França para se dedicar ao projeto de pesquisa relacionado à bolsa. Nesse período, teria periodicamente viajado ao Brasil para realizar consultas particulares, o que fere as normas da Fapesp e da USP.
Na portaria de instauração desse inquérito, o promotor Nelson de Andrade destacou que ficou comprovado que Lancha Junior “realizou viagens para a França e de retorno ao Brasil durante todo o período em que deveria ter realizado a pesquisa”.
Não obstante o afastamento do professor por ordem judicial, a página digital da EEFE informa que Lancha Junior é o coordenador de um curso de especialização pago, programado para iniciar-se em fevereiro de 2017, com término previsto para junho de 2018. Intitulado “Nutrição aplicada ao exercício físico”, o curso, que está em sua quinta edição, custará aos interessados a quantia de 9.480 reais: inscrição de 120 reais e 18 mensalidades de 520 reais. Lancha e sua esposa, que não é docente da USP, figuram entre os cinco professores do curso, que em 2016 ofereceu 86 vagas.
O professor sempre possuiu influência no Departamento de Biodinâmica do Movimento Humano. Talvez por isso tenha conseguido ver aprovado sem contestação e por unanimidade, a julgar pela ata oficial, na reunião de 3/9/15 do Conselho do Departamento, seu pedido para “prestar assessoria junto à empresa Quality of Life Ltda”, da qual é o principal sócio-proprietário.
Outro exemplo da desenvoltura de Lancha Junior na EEFE é bastante atual: em ostensivo descumprimento da decisão da 15ª Vara da Fazenda Pública de afastá-lo do cargo, o professor presidiu banca de defesa de doutorado em 24/1/16, logo depois que retornou ao Brasil.
Também é controverso o seu regime de trabalho. Seu currículo Lattes, atualizado em 23/11/16, informa sucessivas mudanças de regime (em 2001, 2004 e 2007), sendo que desde “dezembro de 2007 exerce o Regime de Turno Completo (RTC)”. No entanto, sua ficha no Portal da Transparência da USP, competência dezembro de 2016, indica no campo “Jornada” o Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP). O exercício do RDIDP proíbe expressamente atividades profissionais “em empresas onde [o docente] figure como proprietário ou acionista”, como indicam as normas de credenciamento da Comissão Especial de Regimes de Trabalho (CERT).
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