Três jornalistas serão julgados em 2/5 por difamação, em ação ajuizada por Guido Cerri, ex-secretário de Alckmin

No próximo dia 2 de maio, às 15h30, na 1ª Vara Criminal de São Paulo, três jornalistas profissionais serão julgados em ação criminal ajuizada por Giovanni Guido Cerri, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e ex-secretário estadual, que alega ter sido difamado por conteúdos publicados na edição 54 da Revista Adusp (de maio de 2013), cuja manchete de capa foi “Conflito de interesses na Saúde”.

Os réus são os jornalistas Pedro Estevam da Rocha Pomar, editor da Revista Adusp, e Tatiana Merlino e Débora Prado, autoras da reportagem intitulada “Empresário do setor, Secretário da Saúde ‘dá as cartas’ em duas OS”, que indica e documenta os vínculos que Cerri mantinha com instituições privadas ao tempo em que dirigiu a Secretaria de Estado da Saúde, entre janeiro de 2011 e agosto de 2013, no governo anterior de Geraldo Alckmin (PSDB).

À época, como ainda hoje, Cerri era membro do Conselho de Administração do Hospital Sírio-Libanês, além de “presi­dente licenciado” da Fundação Faculdade de Medicina (FFM), entidade privada que gere e controla as finanças do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.

Tanto a organização social de saúde (OSS) Instituto de Responsabilidade Social Sírio-Libanês (IRSSL), criada e mantida pelo Hospital Sírio-Libanês, como a FFM, também credenciada como OSS, mantinham diversos contratos de elevado valor com a pasta estadual da Saúde. A reportagem da Revista Adusp limitou-se a demonstrar que Cerri, ligado a ambas as entidades privadas ao mesmo tempo em que exercia o principal cargo público responsável pela palavra final em tais contratos, encontrava-se em clássica situação de conflito de interesses.

Por meio do Portal da Transparência do governo estadual pode-se obter a íntegra dos contratos e os respectivos repasses de recursos. Exemplo: o valor global do Contrato de Gestão entre a pasta da Saúde e o IRSSL, referente ao Hospital do Grajaú (e citado na matéria que deu causa à ação), assinado em 15/12/2011, com prazo de vigência de cinco anos a partir da data de sua assinatura (portanto até 15/12/2016), é de R$ 518.923.800,00. Mais de meio bilhão de reais, portanto (http://www.transparencia.sp.gov.br).

Do lado do governo estadual, tal Contrato de Gestão foi assinado por Cerri, embora fosse também membro do Conselho de Administração do Hospital Sírio-Libanês. A outra parte foi representada por Gonzalo Vecina Neto, diretor executivo do IRSSL e, coincidentemente, superintendente corporativo do Hospital Sírio-Libanês.

A reportagem da Revista Adusp, após mencionar contratos celebrados pela Saúde em 2012, relativos à gestão do Hospital Grajaú e do AME Interlagos, afirma que ao “firmar, autorizar ou permitir os novos contratos, Cerri incorreu em claro conflito de interesses, pois representava ambas as partes, como secretário estadual de Saúde e como membro do Conselho de Administração do [Hospital] Sírio-Libanês”.

A matéria também citou contrato de gestão do Instituto do Câncer (Icesp), firmado pela Secretaria da Saúde com a outra OSS à qual Cerri era ligado, a FFM. Entre 2008 e 2013, esse contrato determinou a transferência de R$ 1,134 bilhão para aquela fundação privada, da qual o secretário era “presidente licenciado”.

Sem conciliação

Foram realizadas três audiências de conciliação na 1ª Vara Criminal, sempre com a presença dos réus. Porém o autor da ação judicial, Guido Cerri, só compareceu à terceira delas, isso depois que a juíza Aparecida Angélica Correia avisou aos seus advogados que havia o risco de arquivamento por falta de interesse, conforme jurisprudência do Tribunal de Justiça (TJ-SP).

A partir da segunda audiência da fase de conciliação, os advogados de Cerri pressionaram os jorna­lis­tas para que se retratassem. Os jornalistas não aceitaram retratar-se e mantiveram o teor das informações da reportagem. Eles explicaram que, na fase de apuração da reportagem, por diversas vezes a equipe tentou ouvir Cerri — e que, ainda hoje, a Revista Adusp não se opõe a publicar uma carta do ex-secretário da Saúde, ou a realizar uma entrevista com ele, para que exponha seus pontos de vista.

A juíza considerou esclarecedoras as explicações e insistiu numa conciliação. Mas o advogado que acompanhava Cerri descartou essa possibilidade, caso não houvesse “retratação completa” e “publicação em jornal de grande circulação, como a Folha de S. Paulo”, o que foi rejeitado de imediato pelos jornalistas.

“Mordaça”

A ação de Cerri pretende enquadrar os jornalistas no artigo 139 do Código de Processo Penal (“Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação”), que prevê pena de “detenção, de três meses a um ano, e multa”. A lei penal considera crime a mera imputação, a alguém, de um fato desonroso, ou imoral, ainda que corresponda à verdade. Tal dispositivo do CPP constitui, assim, verdadeira “mordaça”. Qualquer pessoa dotada de poder econômico ou político, incomodada com a simples divulgação de fatos verídicos que lhe digam respeito e lhe sejam desfavoráveis, pode alegar “difamação” e processar judicialmente os responsáveis.

Não houve no caso, porém, animus diffamandi, pois os jornalistas não tiveram a intenção de atacar a honra de Cerri. Ativeram-se exclusivamente a cumprir os preceitos éticos do jornalismo profissional, de modo a apurar os fatos e, depois, tornar pública uma situação de conflito de interesses que fere os princípios da administração pública.

A propósito, o parágrafo único do artigo 139 reconhece: “A exceção da verdade somente se admite se o ofendido é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções”. Precisamente o caso de Cerri, que além de ser funcionário público de carreira ocupava, à epoca, um cargo público de destaque: o de secretário estadual da Saúde. Foi por exercer tal cargo que ele foi objeto da contestada reportagem da Revista Adusp.

Apesar das evidências em contrário, a 1ª Vara Criminal decidiu receber a denúncia. “Em que pesem os argumentos elaborados por época da defesa preliminar, verifico que eles não foram capazes de afastar a presente ação penal”, decidiu o juiz José Fabiano Camboim de Lima, autor do último despacho realizado no processo, em setembro de 2015. A seu ver, “a queixa preenche todos os requisitos necessários para o seu regular processa­men­to, não havendo nuli­da­des a declarar ou irregu­la­ri­dades a suprir, portanto, deve subsistir, a fim de que a instrução probatória forneça todos os elementos e circunstâncias importantes para a ampla apuração dos fatos”.

Por fim, acrescentou o juiz, “não é caso de absolvição sumária, nos termos do artigo 397 do CPP (com redação dada pela Lei 11.719/08), pois a tese da ilustre Defesa depende de colheita de provas, o que se fará, através do contraditório, respeitado o direito a ampla defesa e a todas as garantias constitucionais”.

Quem são os réus

Débora Prado, graduada em jornalismo em 2006 pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), recebeu em 2012 o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos — um dos principais do país — na categoria revista impressa, por haver coordenado edição especial da revista Caros Amigos sobre a Comissão da Verdade. Cursou especialização em Economia Urbana e Gestão Pública (PUC-SP). Trabalha atualmente no Instituto Patrícia Galvão (Pagu). Tem 31 anos.

Pedro Pomar, graduado em jornalismo em 1983 pela Universidade Federal do Pará (UFPA), é autor dos livros A Democracia Intolerante (Arquivo do Estado, 2003) e Massacre na Lapa (Perseu Abramo, 2006). Recebeu menção honrosa do Prêmio Vladimir Herzog, ao lado de outros colegas, pela publicação do caderno especial “Subsídios para uma Comissão da Verdade da USP”, na Revista Adusp 52 (2012). Em 2006 obteve o doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Tem 58 anos.

Tatiana Merlino, graduada pela Casper Líbero, foi vencedora, em 2009, em duas categorias do Prêmio Vladimir Herzog: revista — pela reportagem “Por que a Justiça não pune os ricos?”, publicada em Caros Amigos — e web, por “Uma missa para um torturador”, cuja autoria dividiu com uma colega. Em 2010 recebeu menção honrosa pelo reportagem “Grupos de extermínio matam com a certeza da impunidade”, também de Caros Amigos. É coautora do livro A Invasão Corinthiana (Livraria da Física, 2011); coeditora do livro Luta, substantivo feminino – Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à Ditadura (Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, 2010); organizadora e editora do livro Infância Roubada – Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil (Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, 2014). Trabalha no portal digital Ponte Jornalismo. Tem 39 anos.

EXPRESSO ADUSP


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